“Praia do Futuro” e o desafiador amor entre homens

Uma das grandes surpresas no mercado cinematográfico deste ano, “Praia do Futuro” (que recebeu apoio institucional de empresas brasileiras e alemãs), dirigido pelo argelino-brasileiro Karim Ainouz, recebe o nome de um dos mais famosos cartões postais de Fortaleza, e que apesar de fazer parte da cena gay da cidade, de quebra, mostra uma faceta ainda comum nas cidades brasileiras: a impossibilidade de se viver a homoafetividade publicamente, condição que embora seja permitida por lei é sufocada por uma visão de mundo predominantemente heteronormativa (Veja aqui como foram “convencionados” os modelos de família), que execra qualquer demonstração de amor entre pessoas do mesmo sexo (especialmente entre homens).

Já no início, “Praia do Futuro” mostra o salva-vidas Donato (Wagner Moura) resgatando o piloto de motovelocidade Konrad (Clemens Schick), que havia parado no local para se refrescar nas agitadas águas do mar cearense. Acompanhado de um amigo, que não teve a mesma sorte e acabou morrendo afogado, Konrad vê sua viagem, de uma hora para outra, tragicamente interrompida com o fatídico acontecimento. Este é o “primeiro ato” do filme, que mostra o envolvimento de Donato com Konrad e, já de cara, apresenta uma estética erótica “perturbadora” por desvelar uma condição que muitos preferem não admitir: a atração entre homens pode acontecer em qualquer lugar, e já não há mais estereótipos a serem seguidos/apontados/imaginados. Trata-se da pulsão de dois homens que agem e se apresentam como “homens mesmos”, e que – provavelmente e – justamente por isso é alvo de espanto.

 

No meio desta estória, há o irmão mais novo de Donato, Ayrton (Jesuíta Barbosa), que vê no salva-vidas uma personificação de um herói, um “acqua-men”. E é neste clima de “divisão de atenções”, de intensa paixão, de medo e de culpa que Donato tem que escolher entre a possibilidade de experimentar sua sexualidade livremente, e viajar para Berlim com Konrad, ou permanecer em Fortaleza próximo do mar e do amor da família, mas sem possibilidade de “ser quem realmente é”. Ele aponta para a primeira opção, e como quem quer começar do zero, literalmente “esquece” do passado – cortando completamente as relações parentais – para iniciar uma efusiva vida amorosa com Konrad, na Alemanha. Esse é o segundo ato do filme.

 

 

No terceiro ato, “Um fantasma que fala alemão”, o expectador é instado a acompanhar o reencontro e o “acerto de contas” de Donato com o passado. Ayrton cresce, aprende a falar alemão, e ainda inconformado por ter sido abandonado pelo irmão vai até o país europeu em busca de “respostas”. Neste ínterim, o filme acaba por mostrar outra forma de relacionamento entre homens, de cunho mais fraternal, mas que contém em si a “paixão” e o apego que, a princípio, parece estar associados apenas aos enlaces que envolvem o erotismo. É uma abordagem sobre o amor que transcende a questão de gênero e que realça a “dinâmica dos afetos”, sempre intenso, revelador e, por vezes, explosivo. E, mais que isso, que supera qualquer tentativa de definição da ternura, se revelando como uma espécie de “idolatria”.

 

Na Alemanha, Ayrton encontra um irmão que experimenta a liberdade sob a sombra de uma cidade “cinzenta”, quase monocromática, coberta por nevoeiros… como que quisesse dizer que, afinal de contas, Donato não poderia ter tudo. Ayrton faz a “ponte” com o passado, e possibilita que Donato, finalmente, se reconcilie e “exorcize” as lacunas que, vez por outras, resultava nos arroubos de melancolia, de dúvida. É um reencontro que começa barulhento e, aos poucos, vai se arrefecendo. Exatamente o contrário da dinâmica de Donato com Konrad.

 

 

Na “reconciliação”, o diretor quase que funde os três personagens com as imagens de belas estradas amplas, sinuosas e com pouca visibilidade (devido às condições climáticas). Sob suas motos, eles apenas seguem adiante. Uma metáfora para a própria contingência da vida, para a beleza do imprevisível, que apesar de aparentemente aterrador é o combustível para o crescimento, já que dá margem para que se exerça a mudança.

A ida de Donato para Berlim também faz lembrar o célebre livro de Leonardo Boff, “A águia e a galinha”, onde o grande teólogo tupiniquim demonstra que, para alçar voo (no caso da águia que foi criada como galinha), é preciso se afastar do lastro parental (consanguíneo ou “escolhido”) que força o proponente a permanecer nos mesmos círculos viciosos. O afastamento, portanto, provoca o distanciamento necessário para que as verdadeiras transformações ocorram.

Brasileiro recalcado

A exibição de “Praia do Futuro” em dezenas de salas espalhadas pelo país trouxe novamente à tona um tema que vem dividindo a sociedade brasileira, numa espécie de “guerra cultural” ao estilo norte-americano, onde alguns apoiam abertamente a expressão de amor entre pessoas do mesmo sexo, e outros acreditam que os homossexuais devem permanecer com restrição de direitos. Durante os primeiros dias de exibição, várias pessoas saíram “revoltadas” das salas com a cena de sexo protagonizada já nos primeiros minutos do longa pelos personagens de Wagner Moura e de Clemens Schick.

Em entrevista ao jornal carioca O Dia, o cineasta e professor de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernando Salis, disse que as reações foram decorrentes de uma “quebra de expectativa provocada com a presença do ator Wagner Moura em um personagem homossexual”. Para ele, “Wagner construiu um capital simbólico nos últimos anos pelo reconhecimento do trabalho dele e pela projeção que os filmes Tropa de Elite tiveram. O Capitão Nascimento encarna uma série de estereótipos do que seria o desejável para o comportamento masculino na visão da sociedade”.

De acordo com o professor, a atuação de Moura em “Praia do Futuro” acabou gerando um “curto circuito” no expectador, cujo imaginário ainda era povoado pela “representação do masculino encontrada nos filmes do diretor José Padilha”. Ao jornal O Dia, Salis acrescenta que, “de repente, em ‘Praia do Futuro’, ele [Wagner Moura] aparece com outro tipo de comportamento também masculino, sem estereótipos, em que as posições sexuais não estão definidas”. Esta “indefinição” da figura do masculino é o que causa inquietação no público expectador mais conservador. “Isso é algo que, ainda hoje, é resolvido pelo tabu e pela proibição do exercício do desejo”, finaliza o professor.

Mesmo sem ser este o objetivo – como apontou o diretor Karim Aïnouz em algumas entrevistas –, o filme acabou por levantar uma bandeira contra a intolerância, e o mote “#Homofobia não é a nossa praia” ganhou as redes sociais e a adesão de milhares de brasileiros e alemães. Além de excelente, o filme contribuiu positivamente para o debate político-social em curso sobre direitos humanos e igualdade.

Referências:

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da propriedade privada e do Estado; tradução Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2012 (Coleção Grandes Clássicos da Filosofia)

PLATÃO. O Banquete. Disponível emhttp://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action=&co_obra=2279&co_midia=2 . Acesso em 20/05/2013.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Tradução de BACKES, Marcelo. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

YALOM, Marlyn. Como os franceses inventaram o amor. São Paulo: Editora Prumo, 2013.

‘Profecia’ de Wagner Moura se cumpre: espectadores abandonam sessões de Praia do Futuro– Jornal O DIA. Disponível em http://blogs.odia.ig.com.br/lgbt/2014/05/22/profecia-de-wagner-moura-se-cumpre-espectadores-abandonam-sessoes-de-praia-do-futuro/  – Acessado em 03/06/2014.

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

BOFF, Leonardo. A Águia e a Galinha. Petrópolis: Vozes, 2006.

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

PRAIA DO FUTURO

Direção: Karim Aïnouz
Duração: 90 minutos
Gênero: Drama Nacional
Países de Origem: Alemanha e Brasil
Ano produção: 2014

Não recomendado para menores de 14 anos

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.