“The Man in The High Castle”: a banalidade do Mal e os mundos quânticos

A série dá uma particular atenção de como a propaganda ideológica sedutora nazista (a propaganda política japonesa é figurada como ainda muito rudimentar, baseada apenas no terror imperial) tornou amoral ou natural toda a barbárie do Terceiro Reich

Mundos paralelos quânticos nos quais encontramos as melhores versões de nós mesmos e a permanência da estrutura que reproduz a banalidade do Mal, não importa o mundo ou o governo que ocupe o Estado. Com esses temas a série da Amazon “The Man in The High Castle” amarra a narrativas das três temporadas anteriores e encerra com o episódio final “Fire from the Gods”. Baseada no livro homônimo no escritor gnóstico sci-fi Philip K. Dick, a série figura um mundo alternativo no qual o Terceiro Reich e o Império Japonês ganharam a Segunda Guerra Mundial e mudaram a face da História. Mas há um fantasma que assusta os vencedores e inspira a Resistência: a descoberta da existência de mundos quânticos paralelos onde a História foi diferente e encontramos nossas próprias versões alternativas que tomaram decisões diferentes. Mas há algo que permanece: nossas almas permanecem prisioneiras na banalidade do Mal.

Neste mês chegou na plataforma de streaming da Amazon a temporada final da série The Man in The High Castle (2015-19), baseada no livro homônimo do gnóstico escritor de ficção científica Philip K. Dick. As temporadas anteriores já foram discutidas aqui no Cinegnoseclique aqui.

Foram 40 horas de duração em episódios distribuídos em quatro temporadas nos quais a equipe de roteiristas liderada pelo criador da série Frank Spotnitz teve que estender a estória para além das 240 páginas originais de K. Dick. Claro que expandir dessa maneira o romance mais bem estruturado da carreira do escritor norte-americano, pode resultar em muitos problemas narrativos: a última temporada corre muito rápida na qual parecia não haver tempo suficiente para amarrar as pontas soltas de forma satisfatória e dar conta do arco de personagens das três temporadas.

Mas não satisfeito, Spotnitz ainda acrescente novos personagens na temporada final: o grupo Rebelião Comunista Negra, uma espécie de Panteras Negras com a liderança carismática da ativista Bell Mallory (Frances Turner). Suas táticas de guerrilha armada, atentados e sabotagens sistemáticas farão o Império Japonês desistir e se retirar dos “Estados do Pacífico” (a Costa Oeste dos EUA), acelerando os eventos que culminarão numa crise política interna do Terceiro Reich.

Mas o saldo final foi positivo: uma estimulante combinação entre ficção científica, espionagem, política e thriller. Por isso, além do imenso arco de plots e personagens, a série levanta para abre um leque de temas que vai da hipótese quântica dos Mundos Paralelos (a chamada “Interpretação de Muitos Mundos – em inglês MWI, feita em 1957 por Hugh Everett – clique aqui) passando pela questão filosófica e moral da banalidade do Mal até a questões de Ciência Política – “uma coisa é derrubar um governo, outra coisa é ser governo”.

Para discutirmos esses temas é necessário fazermos um pequeno resumo das temporadas anteriores: Essencialmente a história se passa em um mundo alternativo onde as potências do Eixo venceram a Segunda Guerra Mundial e dividiram os Estados Unidos em dois: o Grande Reich do Leste nazista e o Estado Pacífico japonês no Oeste

Há uma zona neutra entre os dois ao longo das montanhas rochosas e fornece um refúgio para um crescente movimento de resistência. Portanto, enquanto as ações de controle e repressão do império e da resistência da rebelião se revezam entre as cidades de Nova York, Denver e São Francisco, abrangendo homens e mulheres de ambos os lados do conflito de uma maneira bastante realista, o elemento de ficção científica da história entra em cena – surge uma série cópias de filmes de alguém chamado “O Homem do Castelo Alto”.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

São filmes mostrando que realidades alternativas ou mundos paralelos foram descobertos. Nesses mundos as forças do Eixo foram derrotadas e EUA e URSS foram os vencedores, iniciando a Guerra Fria e a corrida armamentista nuclear tal como conhecemos em nosso mundo. Mas esses filmes mostram a possibilidade de vitória sobre os imperiais nazistas e japoneses, encorajando a rebelião. Mas também sugerem a possibilidade para viajar fisicamente entre mundos.

E é aí que entra a protagonista Juliana Crain (Alexa Davalos). Ela é uma espécie de mulher fora do tempo e do lugar, o ponto crucial da rebelião (e da própria narrativa) e a chave para a guerra entre os mundos. Ela leva três temporadas para dominar a capacidade de viajar entre mundos.

A última temporada

A quarta temporada começa exatamente onde a terceira temporada parou, com Juliana Crain (Alexa Davalos) sendo baleada pelo obergruppenführer John Smith (Rufus Sewell) no momento em que ela foge para o mundo alternativo em que os Aliados venceram a guerra.

Enquanto Juliana passa um ano no mundo alternativo, as mudanças de poder entre o Reich e os Estados japoneses do Pacífico deixam uma abertura para Smith consolidar seu poder. Essas mudanças são em parte graças à atividade eficiente e crescente da Rebelião Comunista Negra, uma facção recém-introduzida dos combatentes da resistência. O Homem no Castelo Alto, Hawthorne Abendsen (Stephen Root), ainda está sob custódia nazista, sendo forçado a negar o trabalho de sua vida na forma de protagonista de uma campanha de propaganda para desmoralizar a Resistência.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

 A última temporada se divide entre dar mais alguns detalhes (muito rápidos e que depende da concentração do espectador) sobre os pontos de contato entre os mundos paralelos: enquanto alguns personagens como Juliana e Togomi (o ministro do comércio do império japonês) possuem a habilidade de se deslocar pelos mundos através de estados alterados de consciência, os nazista precisam de uma pesada parafernália tecnológica – uma espécie de túnel subterrâneo baseado em mecânica quântica.

A ambição nazi será agora conquistar todos os mundos paralelos – espiões são enviados para trazer novas tecnologias e sabotar as potências que venceram os alt-nazistas. É o projeto “Die Nebenwelt”.

Fica evidente o porquê centenas de cobais foram sacrificadas no experimento: nem todos conseguem passar para os outros mundos – a não ser que a sua versão alternativa não exista ou tenha morrido. É o paradoxo do Doppelganger: duas versões alternativas não podem ocupar a mesma dimensão.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

Metafísica, a banalidade do Mal e Política – alerta de Spoilers à frente

Mas há um interessante tema que a temporada acrescenta: aprendemos que as duas versões de John Smith (a nazi e a de um humilde vendedor) têm certas tendências em comum – no caso de Smith a atração pelo Poder. Sua versão alt resistiu a esse appeal, abandonando o Exército. Enquanto John Smith virou “a pior alternativa de si mesmo”, como confessa amargamente no monólogo final do último episódio.

The Man in The High Castle tangencia um tema metafísico abordado originalmente no seminal filme gnóstico Cidade das Sombras (Dark City, 1998) – aliens aprisionam humanos em uma cidade artificial na qual, diariamente, as identidades de todos os habitantes são trocadas enquanto dormem: os aliens querem descobrir no experimento nossas “almas”, isto é, a essência humana permanente por trás das múltiplas identidades que assumimos nas várias existências.

Mais perturbadora, outra questão levantada é a banalidade do Mal, expressão criada por Hannah Arendt (1906-1975), teórica política alemã. Acompanhamos nas quatro temporadas os dois algozes de cada lado dessa Guerra Fria alternativa: do lado japonês, o inspetor Kido, da polícia dos Estados japoneses – a Kempeitai; e do outro o obergruppenführer John Smith. Ambos são pais de família, sinceramente preocupados com suas esposas e filhos.

Fonte: encurtador.com.br/dfNOR

Principalmente na Nova York nazista, vemos o cotidiano da família de Smith: refeições, levar os filhos para a escola… e gerir projetos de Eugenia com o propósito de exterminar raças “inferiores”. São vilões que “administram” o Mal como mais uma atividade cotidiana, ao lado da agenda dos compromissos familiares.

Acompanhamos os führers alemão Himmler e o americano Smith em jantares com suas esposas, discutindo aspectos banais da vida conjugal, ao mesmo tempo em que decidem estratégias de conquista e extermínio. Uma assustadora combinação de amor, delicadeza e barbárie.

A série dá uma particular atenção de como a propaganda ideológica sedutora nazista (a propaganda política japonesa é figurada como ainda muito rudimentar, baseada apenas no terror imperial) tornou amoral ou natural toda a barbárie do Terceiro Reich.

Porém, a novidade da temporada final e que alterou a correlação de forças entre o Eixo e a Resistência é a entrada em cena da Rebelião Comunista Negra, que vive um dilema existencial: combater o império japonês, porém sem querer retornar à pátria da bandeira estrelada norte-americana – uma sociedade que era racista e intolerante, tal como os atuais algozes.

Após a vitória, fazendo recuar o império japonês e bater em retirada do Oeste americano, a máfia Yakuza aparece para colocar na realidade os idealistas líderes negros: “Uma coisa é derrubar o governo, outra coisa é ser o governo”, vaticina o líder da máfia japonesa Yakuza, em San Francisco, Taishi Okamura.

“Vocês vão precisar de nós para restaurar a eletricidade, a água e o oleoduto…”, alerta Taishi. Grande verdade histórica: toda revolução é uma revolução traída! Ocupar o Governo é uma coisa: é a fachada pública ou midiática do Poder. Outra coisa é conquistar a máquina do Estado, controlada pelo lobby de verdadeiras máfias de setores financeiros e infraestrutura.

Algo como tematizado pelo documentário brasileiro Democracia em Vertigem (2019) – não importa qual governo ocupe o poder: o Estado sempre será bancado pelos bancos, famílias proprietárias da mídia e as construtoras de infraestrutura (clique aqui).

E no Estado do Pacífico japonês, a máfia Yakuza, preparada para “negociar” com os novos ocupantes do Estado – a liderança comunista negra.

No final, a série The Man in The High Castle termina fiel ao espírito da obra de Philip K. Dick – podemos até encontrar versões melhores de nós mesmos em outros mundos quânticos, mas a estrutura que reproduz a banalidade do Mal continua incólume: de um lado, a Guerra Fria entre EUA e URSS; e do outro a Guerra Fria entre o Grande Reich e o Império do Japão.

Título: The Man in The High Castle (série)

Criador: Frank Spotnitz

Roteiro: Frank Spotnitz, Wesley Strick, Jihan Crowther

Elenco: Alexa Davalos, Joel de la Fuente, Jason O’Mara, Rufus Sewell

Produção: Amazon Studios

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2019

País: EUA

Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi. Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.