Versão de Testes: os efeitos da psicoterapia

Diferente dos outros episódios da série Black Mirror, Versão de Testes não traz apontamentos e reflexões sobre questões sociais carregadas de interferências tecnológicas, pelo menos, não de forma clara. Mas, algo a se notar, é a sua analogia aos efeitos da psicoterapia na vida de um indivíduo. O episódio inicia com Cooper (protagonista) saindo de casa de maneira sorrateira, para que sua mãe não o veja. Logo, percebe-se que o personagem é um aventureiro, acostumado a viajar por diversos lugares do mundo. Chegando ao seu destino, na Inglaterra, conhece Sonja através de um aplicativo de encontros, com quem divide a cama por uma noite e, na manhã seguinte, os seus problemas familiares.

Quando decide voltar para casa, Cooper percebe que não há mais dinheiro em sua conta bancária. Ao procurar Sonja para ajudá-lo, ela lhe indica um aplicativo para procurar empregos. Logo, eles encontram uma vaga na Companhia Saito Gemu, uma empresa de jogos de terror, onde Cooper faria parte da fase de testes de um jogo, antes desse ser lançado. Aqui, inicia-se o tom de mistério do episódio e também as analogias implícitas à psicoterapia. Ao chegar na Cia, Cooper é impelido a firmar um compromisso em forma de contrato com a empresa, representada por Katie, com quem Cooper parece sentir-se a vontade. Nesse contrato, fica explícito que tudo o que ocorrer ali, ficará entre ambos.

Fonte: https://goo.gl/BxDxjZ

É nesse ponto que começa-se a observar o início do processo psicoterapêutico, firmado por um contrato, em que suas ações (do psicoterapeuta) diante do cliente são de grande importância para que o contrato não se restrinja a um conjunto de regras de trabalho (como horários, pagamentos, férias, dentre outras) e se constitua num dos momentos fundamentais da relação terapêutica, caracterizando-se pelo engajamento de seus protagonistas quanto a uma proposta específica, seja de promover mudanças, aliviar sintomas ou proporcionar o crescimento emocional do cliente (WOLBERG, 1967 apud NEUBERN, 2010).

O jogo que Cooper está prestes a testar não possui um mapa a ser seguido ou um objetivo específico a ser alcançado, exceto o de sobreviver aos próprios medos. Isso porque, através de um dispositivo chamado cogumelo que fora colocado em sua nuca, seus dados neurais foram carregados e implantados em um óculos de realidade virtual, pelo qual a mente de Cooper cria imagens e somente ele as vê, como se fossem reais no plano físico.

Fonte: https://goo.gl/XPMyzj

Retomando o contrato psicoterapêutico, há de notar-se que Cooper criou um vínculo com Katie (pode-se dizer que ela representa o papel de psicoterapeuta), uma vez que a primeira imagem que sua mente cria é ela ao seu lado indo para a casa no qual o jogo aconteceria e onde ele ficaria sozinho enfrentando seus medos. Outra criação da mente de Cooper mostra Katie lhe entregando um ponto auricular, pelo qual ambos manteriam a comunicação.

Agora, Cooper está sozinho dentro da casa, onde seus maiores medos começam a assombrá-lo, como aranhas e o valentão da época de escola, Josh Peters. A medida que o tempo vai passando (tudo apenas na mente de Cooper) as situações assustadoras vão se intensificando, como uma aranha gigante com o rosto de Peters, um homem assutador com o rosto de Peters e Sonja aparecendo na casa dizendo-lhe que ele está em perigo e que precisa sair dali, um pouco antes de esfaqueá-lo e se transformar em um monstro.

Isso tudo remete ao processo psicoterapêutico, no qual a pessoa que o procura passa a enfrentar os seus maiores medos e monstros internos, trazendo a tona conteúdos passados, que se misturam aos conteúdos presentes e formam a sua história e complexidade. E, obviamente, esse não é um processo fácil, mas contido de dor e algumas resistências.

Fonte: https://goo.gl/aeCc97

O ponto alto do episódio é quando Cooper quer sair da casa, mas Katie lhe diz que ele precisa primeiro encontrar o ponto de acesso, que fica em um quarto no andar de cima. Chegando à porta desse quarto, Cooper resiste muito em abri-la, temendo que irá ver sua mãe ou seu pai pendurados em uma viga. Quando finalmente a abre e pergunta onde está o ponto de acesso, Katie diz que estava apenas o pressionando para ver até onde ele ia. Esse fato mostra uma postura inadequada do psicoterapeuta, cuja pode provocar alguns danos para a pessoa.

O psicoterapeuta deve adotar uma postura de não julgamento, de empatia e de respeito, procurando validar o que o cliente sente e ajudando-o a integrar as novas possibilidades que se vão apresentando, transmitindo assim a segurança necessária para avançar para a mudança. O papel do terapeuta é ajudar a refletir e desafiar em certos momentos, sempre respeitando o ritmo do cliente e transmitindo-lhe responsabilidade pelas suas escolhas (Portal Psiquilibrios).

Como Katie não respeitou o ritmo de Cooper, esse enfrentou um medo para o qual não estava preparado no momento, que era perder suas lembranças por meio do mal de Alzheimer, assim como seu pai. Sua mente cria a imagem dele saindo da empresa e voltando para casa, onde encontra sua mãe chorando e dizendo que precisa ligar para Cooper para ver se ele está bem, não o reconhecendo.

Fonte: https://goo.gl/2Sh3cY

Assim que ela liga para Cooper, a cena se volta para ele, sentado na cadeira de testes se debatendo, chegando ao óbito por interferência da ligação no celular. Até aqui, além da postura inadequada do psicoterapeuta, há de se observar também a influência da participação (ou no caso, a falta dela) da família no processo psicoterapêutico. Cooper queria fugir dos problemas em casa e da falta de vínculo com a mãe, que não sabia nem onde ele estava no momento.

Em analogia ao processo psicoterapêutico, isso é um problema, pois a família é o lugar onde se forma a estrutura psíquica e onde a experiência se caracteriza, em primeiro lugar, por padrões emocionais. A função de socialização está claramente implícita nesta definição, mas a família não está a ser conceptualizada primordialmente como uma instituição investida na função de socialização. Ela é, em vez disso, a localização social onde a estrutura psíquica é proeminente de um modo decisivo.” (Poster,1979 apud BOARINI 2003).

Fonte: https://goo.gl/ExL7T6

Assim, quando ocorre a interferência da mãe de Cooper no meio do processo psicoterapêutico sem que ela tenha conhecimento desse e também procure por mudanças e autoconhecimento, tudo o que Cooper alcançou se desfaz em meio a esse contato, simbolizado pela sua morte. Com tudo isso, fica a necessidade de se refletir sobre esse processo, sobre os papéis desempenhados, tanto pelo psicoterapeuta, como pelo cliente e sua família, onde todos precisam se comprometer e adotar posturas que beneficiem e tragam mudanças significativas e positivas na vida dos envolvidos.

REFERÊNCIAS

BOARINI, M. L. Refletindo sobre a nova e velha família. Psicologia em Estudo, Maringá, n. esp., p. 1-2, 2003. Disponível em: https://goo.gl/4N4tqF. Acesso em 19 de agosto de 2017.

NEUBERN, M. S. O terapeuta e o contrato terapêutico: em busca de possibilidades. Estud. pesqui. Psicol. vol.10 no.3 Rio de Janeiro dez. 2010. Disponível em: https://goo.gl/trGtY7. Acesso em 19 de agosto de 2017..

PSIQUILIBRIOS. O que é a Psicoterapia? Disponível em: https://goo.gl/TxJP8E. Acesso em 19 de agosto de 2017.