Durante à tarde do primeiro dia do CAOS 2021, acontecerá o evento Psicologia em Debate no qual serão exibidos vários documentários seguidos de discussões mediadas por excelentes profissionais da psicologia. Um desses documentários é Pandemia do Sistema (2020), dirigido por Naná Prudêncio e uma realização da Zalika Produções; o filme com duração de 31 minutos aborda fatores como o racismo, o desemprego, a insuficiência no atendimento de saúde nesses territórios e como todos esses elementos, com o agravante da pandemia, resultam em uma fórmula genocida.
A discussão a respeito desse documentário será mediada pela professora do curso de psicologia do Ceulp/Ulbra, especialista em Saúde Pública com Ênfase em Saúde Coletiva e da Família e mestra em Desenvolvimento Regional, Lauriane dos Santos Moreira.
(En)Cena – Sabemos que um dos principais temas abordados por você é Políticas Públicas de Saúde Mental, pois está incluído nas suas disciplinas de diferentes maneiras. O que são Políticas Públicas de Saúde Mental e qual sua relação com a Psicologia Social Comunitária?
Lauriane – A Psicologia, desde o início da formalização da profissão no Brasil, tem atuado em direção às demandas de pessoas, grupos e comunidades em situação de vulnerabilidade social. É uma perspectiva ampliada sobre a saúde mental quando se tem um olhar para as condições de vida da população, considerando os determinantes sociais envolvidos no sofrimento psicológico. Até o final da década de 1980, a atuação pelo viés da Psicologia Social Comunitária era prioritariamente voluntária, ou seja, sem remuneração, ou ainda a partir da docência no ensino superior, através de projetos diversos. Apenas com a Constituição de 1988, na qual a saúde passa a ser um direito de todos e dever do Estado, é que o Sistema Único de Saúde (SUS) pôde ser criado, sendo atualmente o principal local de trabalho para psicólogas e psicólogos no Brasil, conjuntamente com o Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Nessa trajetória, desde meados dos anos 1970 o movimento sanitarista e o antimanicomial andaram de mãos dadas, e graças à pressão popular oriunda deles é que diversas políticas públicas hoje vigentes no campo da saúde pública foram implantadas. Abordar a temática saúde mental sem considerar a violação de direitos diversos é culpabilizar a pessoa em sofrimento, através de um discurso meritocrático extremamente falacioso, que impõe ainda mais sofrimento. Ou seja, Política Pública de Saúde Mental envolve legislação, gestão, estabelecimentos de saúde, profissionais, práticas, equipamentos, discursos, usuários, participação social que levam a cabo a sua implementação, tendo como local principal de materialização de tudo isso os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), ordenadores do cuidado em saúde mental, que atuam articuladamente em rede setorial e intersetorial. Havendo para a Psicologia o viés teórico e técnico da Psicologia Social Comunitária nesse trabalho, o combate a biologização do fenômeno “psi” ganha força, justamente pelos motivos expostos acima.
(En)Cena – Qual a importância desse tema ser discutido dentro e fora do curso de psicologia?
Lauriane – Somos seres biopsicossociais. A OMS tem essa visão ampliada também acerca do conceito de saúde. A nossa espécie Sapiens é extremamente moldável às condições culturais, políticas, religiosas, econômicas, sexuais etc. nas quais está inserida desde o nascimento. Somos biologicamente seres sociais! Portanto, abordar saúde mental como se fosse fruto apenas de uma variável interna ao indivíduo, algo neurológico ou fruto da suposta “mente” não é suficiente quando se quer atuar a partir de uma Psicologia baseada em evidências e com compromisso social, justificando assim a importância desses temas serem discutidos no contexto de formação de psicólogas e psicológos, o que não se restringe à graduação, mas acompanha a trajetória profissional e pessoal.
(En)Cena – No documentário encontramos relatos de vivências diversas, várias famílias que precisam de assistência e devido ao Covid-19 tiveram os problemas sociais agravados. Como a psicologia pode intervir em situações semelhantes?
Lauriane – Além da perspectiva já exposta nas questões anteriores, destaco que o Conselho Federal de Psicologia, a partir do código de ética da nossa profissão tem como primeiro princípio fundamental a atuação da Psicologia embasada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Compreendendo o significado disso, não é suficiente encerrar sua atuação às quatro paredes de um consultório, mas lutar pela garantia de direitos para as pessoas. A atuação no cenário trazido pelo documentário, que é a realidade de muitos país afora desde antes do contexto pandêmico, pode ser: a conscientização de pessoas, grupos e comunidades sobre seus direitos, incentivando a mobilização social; viabilizar o acesso a esses direitos, orientando sobre os serviços e como chegar até eles; também pode fazer denúncias ao Ministério Público, por exemplo, no caso de violações diversas; ofertar escuta, acolhimento etc., mas sempre tendo em vista que apenas essa última estratégia não será o suficiente quando se tem insegurança alimentar envolvida, por exemplo. Citei algumas estratégias possíveis, mas podem ser tantas outras. A Psicologia não deve se engessar num único modo de atuar, mas caminhar conforme as demandas que se apresentam, e articulando entre serviços diversos e outras categorias profissionais para se alcançar o necessário em cada situação.
(En)Cena – Como você avalia o trabalho feito pela psicologia aliada às políticas públicas atualmente durante a pandemia?
Lauriane – Avalio que poderíamos ter sido, enquanto categoria profissional, mais engajados nas questões que envolvem vulnerabilidade social. Houve muita discussão em redes sociais e plataformas de videoconferência sobre a pandemia e o impacto sobre a saúde mental e outras questões, também houve um boom de atendimentos psicológicos online, inclusive gratuitos… Mas todos esses contextos são de privilégio, pois se precisa ter um dispositivo com acesso à internet para acessá-los. Hoje todo mundo tem um celular? Não! As pessoas estão passando fome… Nos primeiros meses da pandemia, ainda em 2020, diversos serviços fecharam as portas por muito tempo, deixando os seus usuários sem assistência suficiente no contexto da saúde, da educação, da assistência social, da justiça… Para as populações mais vulneráveis socialmente, como se retrata no documentário, o sofrimento que já existia, da invisibilidade social e suas consequências, se agravou sobremaneira. O medo do coronavírus coexiste aos demais. A Psicologia e o seu suposto compromisso social durante a pandemia chegaram até um determinado público, pois continuamos cegos para os contextos de maior vulnerabilidade social.
(En)Cena – Quais as suas expectativas para o CAOS 2021?
Lauriane – Em relação ao CAOS 2021 tenho a expectativa de que será uma oportunidade excelente para discutir sobre temas que não costumam fazer parte da atuação convencional ou rotineira da Psicologia, mas que são muito importantes. A pandemia da Covid-19 nos mostrou que é preciso ampliar nosso olhar sobre o que é ofertar cuidado em saúde mental e a gama de variáveis do contexto social que estão envolvidas, incluindo a atuação do Estado nesse manejo. Não cabe, nesse cenário, teorias e práticas elitizadas e acríticas, e vejo que o congresso contribuirá muito nesse sentido.