Cultura e Identidades através das Festas Religiosas no Tocantins: Um Olhar Multidisciplinar

Giselle Carolina Thron: giselle.thron@ceulp.edu.br 

A cultura de um povo é fundamentada através de diversos elementos como comportamentos, crenças, valores e linguagem, ou seja, tudo que une um povo pode ser considerado cultura. Em um país de grande diversidade como o Brasil vemos várias expressões culturais que são próprias de cada região. Entendendo que expressões culturais são tão diversas, procuramos, neste momento, um elemento que pudesse traduzir este sentimento e chegamos à tradição das festas religiosas no Estado do Tocantins. As festas religiosas são eventos carregados de tradições locais, que na maioria das vezes nos trazem elementos dos povos colonizadores, e celebram divindades importantes para a cultura local.

Neste contexto, o EnCena entrevistou o professor Valdir Aquino Zitzke, natural de Pelotas, RS. Cursou Licenciatura em Geografia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Rio Grande do Sul em 1995 onde também fez Mestrado em Educação Ambiental em 1998. Em 2007 fez doutorado em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Hoje, é professor do curso de Geografia da Universidade Federal do Tocantins (UFT), trabalhando com Geografia Cultural e das Religiões, também atua com Educação Ambiental e Educação do Campo com ênfase em Pedagogia da Alternância.

(En)Cena: Como você entende/avalia como o cotidiano religioso do Tocantins interfere na vida/cotidiano das pessoas?

Valdir Zitzke: Nós temos uma predominância de pessoas que se afirmam cristãos: católicos, pentecostais e neopentecostais e uma pequena parcela se identifica ou participa de cultos e doutrinas de outras matrizes. Podemos perceber que as religiões querem interferir ou interferem, em maior ou menor intensidade, o cotidiano das pessoas no sentido de mudar comportamentos, atitudes e a imposição de valores um tanto questionáveis. Aqui é preciso diferenciar religião de fé e espiritualidade: enquanto a religião é uma construção humana, dependente da fé ou da crença das pessoas e vivenciada no coletivo, a fé e a espiritualidade independem da religião e podem ser vivenciadas na intimidade. As religiões interferem no cotidiano das pessoas no sentido de prendê-las àquela igreja e aos valores morais que ela defende e tenta impor, mas não se preocupam com a realidade social das pessoas uma vez que não se preocupam em divulgar valores sociais ou éticos em relação aos demais: são irmãos entre si, na igreja, mas não são irmãos dos outros. Um exemplo dessa interferência no cotidiano das pessoas pode ser observado nos comportamentos das igrejas, no Tocantins, com a “arminha” tão presente nas fotos divulgadas nas redes sociais, a ira e raiva ao se referir a certos candidatos políticos, seja na defesa ou seja na acusação, e a falta de empatia com ao mais necessitados, considerando que o Brasil apresenta milhões de pessoas passando fome. Não se vê campanha nas igrejas para isso e nem obras sociais para amparar essas pessoas.

(En)Cena: Sobre o profano e o sagrado, o quão profano existe nas festas religiosas no Tocantins?

Valdir Zitzke: Em toda festa religiosa o profano está na mesma medida que o sagrado: no centro da festividade está o sagrado, representado pelo santo ou santa (imagem ou bandeira) e tudo que está ao seu redor é considerado profano, uma vez que não está no centro: as comidas, as bebidas, os corpos, as danças, os leilões, os adornos das festas, o luxo etc. As festas brasileiras, desde o Brasil Colônia, se caracterizam pela abundância de comida, bebida e dança, por isso a denominação de Festa, e não procissão: a devoção ao santo se faz, também, com alegria. 

(En)Cena: Você, enquanto geógrafo, consegue perceber aspectos psicológicos nos devotos das festas religiosas no Tocantins? Quais?

Sim, principalmente nos atos de devoção e fé. Um exemplo disso é a fila que se forma para “beijar” a bandeira do Divino Espírito Santo na saída e na chegada das folias: as pessoas aguardam sob sol forte a oportunidade de ajoelhar, agradecer, pedir, fazer promessas. A demonstração da fé ali acontece a cada ano e é muito esperada pelos devotos. Em termos mais específicos, se observássemos pelo viés das emoções, verificamos a alegria nas saudações; a tristeza (choro) por um ente que partiu mas que está “sob os cuidados do Divino”; a determinação para organizar as festas, que não são baratas; a gratidão em contribuir para fazer as comidas e as bebidas (licores). Outro aspecto é a participação das famílias nos eventos: existem famílias tradicionais que “formam” foliões; famílias que se organizam para preparar as comidas; famílias que se envolvem na parte estética das festas (decoração, elementos, adornos específicos, cores, etc.). As festas se constituem, além de reverenciar o santo, num acontecimento social, onde as famílias se aproximam, também, para trocas sociais: negócios, namoros, manutenção da ordem e a organização social. Podemos perceber um entrelaçamento de muitas dimensões, como as emoções envolvidas nos diferentes atos da dramatização da festa; das necessidades que as pessoas possuem de participar na forma de devoção e fé e de pagamento de promessas por uma graça recebida, ou mesmo, pedir uma graça; nos comportamentos e atitudes demonstradas na festa, como respeito, resignação, dedicação; na tradição que muitas famílias e pessoas demonstram  e na força desta tradição para, anualmente, realizar a festa e a memória, individual e coletiva, de um grupo social envolvido, direta ou indiretamente. Memória e tradição são duas categorias muito fortes nas festas e delas decorrem muitas emoções e sentimentos por parte das pessoas, promovendo mudanças ou alterações psicológicas.

(En)Cena: Você consegue perceber mudanças nos aspectos religiosos com o advento da modernidade nas festas religiosas? Quais?

Valdir Zitzke: É perceptível que a modernidade, principalmente as redes sociais, tem interferido diretamente sobre os jovens fazendo com que eles não se interessem pela manutenção da tradição das festas. Este fato gera, muitas vezes, conflitos familiares, pois, os pais desejam que seus filhos ocupem a mesma função que eles desempenham, e que herdaram de seus pais e avós. Algumas funções, antes masculinas, estão, aos poucos, sendo ocupadas por mulheres, mesmo com resistência, pois os jovens da geração atual não querem mais participar.

 

(En)Cena: Sendo as festas no Tocantins, em sua maioria, de tradição católica, quais aspectos de papéis de gênero são percebidos?

Valdir Zitzke: As festas religiosas são predominantemente católicas, no contexto do catolicismo popular. Sendo uma religião que polariza o masculino e o feminino, define, também, as funções e atribuições de cada gênero. Exemplos: cabe às mulheres a elaboração da comida, mas aos homens a função de abater e limpar os animais e a manutenção dos fornos para assar pães, bolos e biscoitos; apenas homens compõem as folias e os Congos; apenas mulheres compõem as taieiras nas festas de Nossa Senhora do Rosário; as cortes real e imperial são compostas por casais.

(En)Cena: Qual o atual cenário relacionado ao respeito à diversidade religiosa, em sua opinião?

Valdir Zitzke: Ainda se percebe muita intolerância em relação a religiões de matriz afro-brasileira, como umbanda e candomblé. A falta de interesse de entender seus rituais e devoções gera a intolerância e a condenação a partir da fé de quem ignora. Esse movimento de intolerância é percebido muito mais nas igrejas pentecostais e neopentecostais, que tem numa interpretação muito específica de Deus, muitas vezes, com predomínio das leituras do Velho testamento, que aborda muito mais a história do povo hebreu na sua origem, do que na mensagem de amor, tolerância, humildade, empatia e respeito pelo diferente disseminada por Cristo. E, mesmo, não cumprindo a essência contida nas mensagens do Cristo, se autodenominam Cristãs.

(En)Cena: Do ponto de vista do monoteísmo e do politeísmo, qual o modelo que tenderia a ampliar mais a flexibilização mental de seus praticantes?

Valdir Zitzke: É difícil considerar o politeísmo num país de formação católica desde sua ocupação, o predomínio do politeísmo, mesmo se considerarmos os orixás do candomblé e da umbanda: são divindades, não são deuses. A falta de compreensão desta premissa gera confusão. Acredito que, pela tradição brasileira, com forte predomínio católico e, atualmente, pentecostal e neopentecostal, todos autodenominados cristão, seria muito difícil, do ponto de vista psicológico, substituir um universo religioso que possui um único Deus, por outro onde estão presentes diversos outros Deuses.