Dia Mundial da Saúde Mental – o desafio da inclusão social

Dia 10 de outubro é comemorado o Dia Mundial da Saúde Mental. Nesta data importante o (En)Cena convidou a coordenadora do Colegiado de Coordenadores de Saúde Mental dos Estados e Capitais da Região Norte e também Gerente da Área Técnica de Saúde Mental Álcool e Outras Drogas da Secretaria Estadual de Saúde do Estado de Tocantins, Ester Cabral1, para expor as potencialidades e os desafios das políticas públicas em saúde mental.

Referência na militância da Luta Antimanicomial na Região Norte do Brasil, Ester conversou com o (En)Cena e indicou que os desafios da Rede de Atenção Psicossocial  estão para além das dificuldades de articulação entre os serviços de saúde e as demais políticas públicas. A entrevistada comenta que a percepção social do “louco” na comunidade ainda é um desafio central na conquista da dignidade para a pessoa com sofrimento psíquico. O dia 10 de outubro constitui um marco mundial fundamental na produção de outros olhares para a saúde mental que supere a marca preconceituosa da incapacidade produtiva e da periculosidade social.

Foto: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Ester, qual o principal desafio da inclusão social?

Ester Cabral – O principal desafio hoje é lutar contra o preconceito e a discriminação do doente mental, com informação e vivências.  É oferecer a ele as oportunidades de poder tratar seu sofrimento no território, de conviver com a família, de produzir espaços de trocas, de falar de seus desejos e sonhos, de poder estabelecer laços afetivos e novas contratualidades com seu meio social, de amar e ser amado, enfim, de ser cidadão.

(En)Cena –  E como a política nacional de saúde mental trabalha esta inclusão?

Ester Cabral – A Constituição Federal diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado. A Lei 10.216 de 2001 em seu artigo 4, § 1o,  é clara quando afirma que o tratamento da pessoa com transtornos mentais visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.

O Decreto 7.508 que regulamenta a Lei 8080/90, estabelece as Redes de Atenção à Saúde e uma das Redes Prioritárias é a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que  traz em seu conceito, a ideia do cuidado no território que, para além da criação de novos dispositivos, constrói vínculos e relações entre os indivíduos e instituições, numa produção de vida em seu conceito mais amplo, proporcionando às pessoas com transtornos mentais, espaços que promovem a inclusão e o empoderamento em suas relações sociais tão esgarçadas pelo preconceito e a exclusão.

O cuidar no próprio território através dos CAPS, a internação no momento de crise nos hospitais gerais sem espaços restritivos com a presença de um amigo ou familiar, o acompanhamento pelas equipes da Atenção Primária, o  acolhimento do SAMU em casos graves sem necessidade da força policial que amedronta e agrava a crise, os Serviços Residenciais Terapêuticos e as moradias sociais que resgatam a cidadania perdida nos porões dos manicômios e dos espaços restritivos de liberdade, e a possibilidade de novas contratualizações no mundo do trabalho através das Estratégias de Reabilitação, com as iniciativas de geração de trabalho e renda, Empreendimentos solidários e cooperativas sociais, são algumas das possibilidades que temos hoje para trabalhar a inclusão social da pessoa com transtornos mentais através desta Rede de Atenção Psicossocial.

(En)Cena –  As residências terapêuticas são uma boa opção? Como funcionam?

Ester Cabral – Os Serviços Residenciais Terapêuticos fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial. São moradias que tem como objetivo, acolher pessoas que passaram por longos períodos de internação em hospitais psiquiátricos e perderam os vínculos familiares, quer seja por abandono ou por falta de contratualidade afetiva com os mesmos. Essas pessoas passam a ter um espaço de moradia tutelada pelos CAPS através de profissionais de referencia, podendo resgatar sua cidadania e seus direitos sociais e civis, como a liberdade de ir e vir, estabelecendo novos vínculos, e reconquistando autonomia, a partir da inclusão social que o serviço propõe. Na residência Terapêutica o indivíduo volta a ter convívio social com a vizinhança, acessa os serviços públicos necessários à sua cidadania, e transita no território, utilizando os espaços de lazer, educação e vida, conforme a Lei 10.216/2001, no Artigo 5º.

(En)Cena –  Em qual área é mais difícil se conseguir a inclusão social? Escola, trabalho, família…

Ester Cabral – Promover a inclusão social do doente mental no trabalho, ainda é um dos maiores desafios, pois o preconceito produzido pela sociedade capitalista impede que o doente mental conquiste seu espaço laboral, alegando incapacidade. Muitos acreditam que o transtorno mental incapacita o individuo para quaisquer atividades laborais, o que é um mito. É importante que a sociedade o veja como parte do seu tecido social e o aceite como tal. Por vezes utilizam a justificativa da “periculosidade” como desculpa para impedir o exercício de alguma atividade produtiva por parte do doente mental, sem ao menos dar a ele a chance de provar quão produtivo pode ser dentro de suas limitações e de sua diferença.

(En)Cena – O senador Paulo Davim (PV-RN) propôs uma emenda para incluir a psicofobia, preconceito  e discriminatórias contra as deficiências e os transtornos mentais,  no projeto de lei de reforma do Código Penal Brasileiro. Como você avalia esta iniciativa?

Ester Cabral – É uma iniciativa, porém não creio que se resolve o problema do preconceito por força de lei ou decreto, mas sim com educação e informação. Qualquer tipo de preconceito ou discriminação só será amenizado na sociedade, quando as pessoas desmistificarem dentro de si, o próprio conceito de normalidade e puderem aceitar as diferenças. Sem este movimento, não haverá lei nem nome que mude a relação das pessoas com o diferente. Creio que a psicofobia seja apenas mais um nome, ou um novo código que reforça a psiquiatrização da vida.

(En)Cena – As barreiras para a inclusão de deficientes estão mais em nossas cabeças do que em problemas efetivos?

Ester Cabral – Sem dúvida; em relação ao deficiente, esta barreira está na forma como nos organizamos em sociedade para aceitarmos apenas o belo, o normal, o “sem defeito, o televisivamente correto”. Quanto a doença mental, a ideia de periculosidade e de violência que é atribuída erroneamente ao louco, só reforça o preconceito  e afasta as possibilidades de enxergarmos o mundo com outros olhos, o olhar da vida comum, da simplicidade do ser, da honestidade no olhar e do sofrimento que está presente cotidianamente na existência dessa pessoa que é tida como alguém que transtorna por não se enquadrar nos padrões de normalidade estabelecidos.

Nota:

1Ester Maria Cabral é Graduada em Serviço Social pela Universidade Católica de Goiás; Pós Graduada em Saúde Pública e em Saúde Mental pela ENSP/FIOCRUZ; é Coordenadora do Colegiado de Coordenadores de Saúde Mental  dos Estados e Capitais da Região Norte; e atualmente é Gerente da Área Técnica de Saúde Mental Álcool e Drogas da Secretaria Estadual de Saúde do Estado de Tocantins – SESAU.