Distanciamento social e sensação de desamparo: (En)Cena entrevista a psicóloga Hareli Cecchin

Durante uma das “lives” transmitidas pelo perfil da Psicologia no Instagram (@psicologiaceulp), no período de realização das atividades acadêmicas de forma remota, uma das entrevistadas do projeto PsicoLive foi a egressa do Ceulp/Ulbra, psicóloga Hareli Cecchin, que conversou com o prof. Sonielson Sousa sobre as suas impressões acerca da sensação de desamparo acentuada pelo distanciamento social.

O bate-papo/entrevista contou com a participação de vários acadêmicos de Psicologia e da comunidade como um todo, e durou cerca de 1h. Dentre os principais temas discutidos por Hareli, que é da Gestalt-terapia e da Fenomenologia Existencial, além de servidora da UFT e doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, eclodiram assuntos como ideação suicida, singularidades subjetivas, vida acadêmica, dentre outros. Confira este e outros aspectos no bate-papo/entrevista abaixo.

(En)Cena – Sobre o seu percurso acadêmico, que caminhos você seguiu?

Hareli Cecchin – Eu fiz Psicologia no Ceulp/ULBRA e lá tive a oportunidade de trabalhar como monitora do Laboratório de Medidas Psicológicas (LAMAP), e de trabalhar com o Projeta de Iniciação Científica, na época a Profa Irenides (coordenadora do curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra) foi minha orientadora, e uma vez orientadora, sempre orientadora, não existe ex-orientadora. Já nessa época me interessei bastante pela pesquisa, e que possivelmente eu gostaria de continuar nesse caminho da pesquisa e talvez pensar num mestrado, doutorado, e assim que eu me formei tive a felicidade de conseguir um trabalho, comecei trabalhando no CRAS de um município do interior do Tocantins, lá trabalhei bastante com as mulheres beneficiárias do programa Bolsa-Família, e foi daí que surgiu a minha ideia de fazer um mestrado, trabalhei a questão de gênero, questão de empoderamento, fui pesquisar as mulheres do Programa Bolsa família para entender os efeitos do programa e se de fato conseguia empoderar as mulheres.

(En)Cena –  Então no mestrado já conseguiu fazer a interface com a Psicologia?

Hareli Cecchin – Sim, a interface com psicologia com a proposta do programa, que é o desenvolvimento regional, porque não temos mestrado de psicologia aqui no Tocantins, eu também não tinha condições de sair do estado, e a interface também com o que eu estava trabalhando, que era meu cotidiano de trabalho, a minha experiência profissional porque acho que devemos estar alinhados com nossa experiência enquanto profissional. Depois passei num concurso da UFT no campo de Miracema em 2014, comecei a trabalhar lá como psicóloga, lá eu comecei a atuar diretamente com os acadêmicos, dando suporte aos estudantes, e lá eu comecei a me deparar com as angústias dos estudantes, nós tivemos alguns casos na UFT de suicídios, o que nos deixou muito abalados, aí eu pensei que fosse o momento de ir pro doutorado com a proposta de construir um programa de prevenção ao suicídio para os estudantes, como uma maneira de dar minha contribuição.

(En)Cena –  Eu queria que você me explicasse um pouco a questão da ideação suicida. Como que a gente pode abordar esse tema tão delicado, sem que a gente ative alguns disparadores?

Hareli Cecchin – A questão da ideação suicida é tema muito delicado, às vezes até a mídia tem um certo cuidado em abordar. Eu tive uma amiga que ficou em depressão durante muito tempo, e ela disse que durante a campanha do setembro amarelo que falava do “Não ao suicídio”, ela só conseguia enxergar a palavra suicídio, não conseguia enxergar a palavra não; A grande proposta é a gente trabalhar a ideia de valorização da vida, como uma ideia do comportamento suicida como um todo, a ideação, a tentativa. Tem uma psicóloga que gosto muito especialista na área, Karina Fukumitsu, ela comparava as pessoas às plantas, como se cada pessoa fosse uma planta, e uma planta quando começa a morrer a gente percebe, porque as folhas vão ficando amarelas, a planta vai ficando diferente, então quem convive com a planta diariamente percebe. Nesse processo de morrência a planta não morre de um dia para o outro, leva um tempo, um processo é reversível. Então a grande questão é valorizar a vida, talvez perceber esse processo de morrência das pessoas, e atuar nele antes que a pessoa entre em crise, digamos assim.

(En)Cena – Você me fala isso e me lembra uma área da psicologia, a psicossomática, que, de certa forma, aborda esses sinais que vamos dando a partir do corpo. Você falou das plantas, das cores, das variações, eu imagino que quem convive com alguém numa situação que exija mais cuidado pode colaborar observando esses movimentos feitos pelas pessoas, ás vezes são até movimentos mais explícitos da forma como a pessoa se comporta, o aparecimento de algumas patologias recorrentes, por exemplo dores crônicas. Nesse contexto a gente sabe que tem uma pandemia em curso, antes mesmo da atual pandemia, essa do momento ela é biológica muito embora reverbera na condição psicológica também, mas já vinha uma pandemia, apesar de algumas pessoas não quererem admitir isso, relacionada a questões psicológicas. De que forma uma coisa pode agravar a outra nesse momento?

Hareli Cecchin – A grande questão da pandemia é que se alastrou, porque o mundo hoje é globalizado, as pessoas viajam e tudo mais, então a gente percebe que cada vez mais as coisas estão conectadas, uma coisa que começou lá na China chegou aqui no Tocantins. Mas ela afetou as pessoas de maneiras diferentes, então é importante levar isso em conta, aí muitas vezes, esse isolamento social pode ter agravado algumas situações que já vivíamos anteriormente, aí o distanciamento social só aprofundou, então a gente tem que observar que o isolamento ou distanciamento social para algumas pessoas é possível o home office, algumas pessoas não, algumas pessoas moram sozinhas outras tem filhos em casa. A atual situação afeta as pessoas de maneira diferente e talvez tenha aprofundado situações específicas. Eu tenho, por exemplo, um amigo que mora sozinho e sempre se dedicou muito ao trabalho, muitas horas, aí agora com essa questão do isolamento social e não poder ir ao trabalho, ele começou a ver e perceber o quanto o trabalho ocupava um tempo muito grande da vida dele.

(En)Cena – E até negligenciava outras áreas, provavelmente.

Hareli Cecchin – Isso, e as vezes até usava o trabalho como uma zona de conforto, e as vezes como forma de ter um tipo de recompensa, e com o isolamento social, ele começou a ficar muito incomodado de ter muito tempo em casa sozinho e a solução que ele encontrou foi pegar a chave da sala dela e ir para o ambiente de trabalho dele, a instituição permitiu pelo menos algumas horas por dia, porque ele disse que precisava se manter ocupado, e também nesse momento a gente não tem como fazer visita, ter um contato social, estar com grupos…

(En)Cena – Pelo menos é o que se espera, a gente sabe que algumas pessoas quebram, talvez seja justamente uma inabilidade de lidar consigo próprio.

Hareli Cecchin – Exatamente, essa situação dele de dar muita atenção para o trabalho isso já existia, mas a quarentena talvez aprofundou a situação e ajudou ele a perceber, de alguma forma.

(En)Cena – Eu não te perguntei qual a abordagem da psicologia você se identifica mais, ou abordagens, no plural. Tem como você falar um pouco sobre isso? A gente sabe que são muitas vertentes da psicologia, algumas podem passar por um processo de “hibridização”.

Hareli Cecchin – Eu sempre gostei bastante da Gestalt e da Fenomenologia Existencial, mas agora estudando os programas da prevenção ao suicídio eles comportam multi-teorias, a gente pode usar mais de uma desde que elas nos ajudem a dar soluções para o problema. A gente tem uma área aí que seria do Viktor Frankl, que estuda o sentido da vida, e ele é bastante estudado para fundamentar alguns programas de prevenção ao suicídio. Então eu tenho uma certa abertura teórica para aprender novas coisas.

(En)Cena – Isso é interessante. Inclusive, eu estava conversando com o Ulisses, que antes de tudo, nós somos preparados para sermos psicólogos, e o psicólogo ele, pelo menos essa é a minha concepção tem que estar aberto e essa abertura tem que ser com o olhar no cliente/paciente, tentando evitar essa rigidez, esse dogmatismo, eu acho isso bastante interessante. Claro que temos que nos preocupar em seguir uma linha mestra, um fio condutor, mas na medida do possível dialogar com outras áreas, não é nenhum problema. Então pegando o gancho, o Viktor Frankl fala muito que a maioria dos nossos desesperos contemporâneos estão relacionados com a ausência de sentido, e ele observa isso nos campos de concentração, ele já trabalhava com a Logoterapia antes, mas ele testifica suas teses quando ele mesmo é submetido ao confinamento nos campos de concentração. Eu percebo que a Logoterapia, que tem aspectos da psicanálise, mas tem muito da fenomenologia, ela é muito negligenciada, principalmente nos meios acadêmicos, eu percebo que tanto a Logoterapia quanto a Psicologia Analítica do Jung, que eu sou adepto. Você acha que se a gente desse mais um enfoque na questão da busca do sentido poderia amenizar muito os problemas que a gente vem passando hoje?

Hareli Cecchin – Sim, com certeza. Pois um dos grandes problemas do isolamento social é algumas pessoas não conseguem entender a importância do isolamento, e algumas pessoas também observa a questão de não ter um prazo para terminar essa quarentena, então construir um sentido mais amplo em relação a esse isolamento tem levado as pessoas a uma certa dificuldade. Eu estava assistindo uma outra live aí uma pessoa comentou que em geral, as nossas demandas elas são sempre externas, é demanda do trabalho, é a demanda da escola, a demanda da faculdade, é a demanda dos amigos, aí agora a gente se deparou com um momento que a demanda é interna: o que eu vou fazer com o meu tempo, o que vou fazer com tanto tempo livre, que sentido eu vou dar para esse momento, para esse tempo. E aí é uma coisa que as pessoas precisam se reorganizar e isso leva um tempo, até para se redescobrir: qual é o meu hobbie, quais são as coisas que eu gosto, coisas que eu gostaria de aprender que agora eu tenho oportunidade de aprender, de fazer um curso, de desenvolver um hobbie, então é um momento das pessoas olharem para dentro. Eu tenho inclusive alguns amigos que começaram a fazer meditação, psicoterapia, que é um momento de olhar para si próprio.

(En)Cena – Do ponto de vista da psicodinâmica, esse momento força, digamos assim, a fazer uma regressão da libido, no sentido de investir em nós mesmos, mesmo que isso represente um período depressivo, onde não tenho tanto contato com o mundo, Imagina se de fato a gente conseguir ver um sentido nisso, um sentido existencial, há muitos ganhos, ganhos primários, ganhos secundários. Com a sua experiência que você tem na UFT, em atendimento a acadêmicos, sua experiência na área de pesquisa, quais estratégias, você acabou colocando algumas aí como meditação, terapia, mas para as pessoas que não tem o perfil da meditação ou não tem como se submeter a um processo terapêutico, você teria algumas outras dicas para que essas pessoas enfrentem o isolamento/distanciamento que tem influência no desamparo?

Hareli Cecchin – A primeira seria a pessoa construir uma rotina e tentar seguir essa rotina todos os dias, isso nos ajuda muito a nos organizarmos, evitar passar o dia inteiro de pijama em casa, para algumas pessoas ajuda bastante quando a pessoa vai desenvolver alguma atividade de trabalho colocar uma roupa que seja mais parecido com aquele que usava no trabalho ou na faculdade, fazer algum exercício físico, intercalar atividades que a pessoa está mais sentada, está mais inativa com outras mais ativas, procurar também manter o contato com familiares, com os amigos, porque muitas vezes a distância geográfica não significa uma distância emocional, graças à Deus a gente tem a tecnologia, a gente pode se comunicar com as pessoas.

(En)Cena – Hoje o ambiente propicia muito esses encontros, são outras formas de encontro. Eu estava até vendo uma live da Teresa Amorim, da Gestalt Terapia do Rio de Janeiro, ela falando dessas novas formas de contato, que também é contato, pegando essa linguagem da Gestalt.

Hareli Cecchin – É o contato possível no momento. A gente precisa também investir sempre nas redes comunitárias de cuidado, então a UFT, por exemplo, desenvolveu o programa Escuta solidária, 10 pessoas se cadastram e estão fazendo ligações para pessoas idosas, para conversar com eles porque em geral eles tem dificuldades de fazer uso da tecnologia, são grupo de risco, as pessoas mais aconselhadas a ficar em casa, alguns moram sozinhos ou com o companheiro, então para que a gente possa oferecer esse cuidado, oferecer esse carinho para os nossos familiares, e para as demais pessoas, que a gente possa dar esse amparo para as pessoas.

(En)Cena – Esse serviço é voluntário, eu imagino.

Hareli Cecchin – É, ele está sendo feito com os estudantes da UFT e com idosos que foram cadastrados pela Secretária de Saúde.

(En)Cena – Mas ele não envolve um estágio, né?

Hareli Cecchin – Não, ele foi criado para tentar fazer frente na questão da quarentena.

Fonte: Arquivo pessoal.

Sonielson Sousa – Entendi, e acaba mobilizando os dois lados, os acadêmicos que entram na dinâmica de um trabalho com forte apelo social e os idosos, obviamente, que são os grupos que precisam de nossa atenção nesse momento. A Muriel (professora do curso de psicologia do Ceup/Ulbra) escreveu aqui: “Soni, só complementando o que você disse sobre a Logoterapia, o quanto as pessoas confundem quando Viktor Frankl disse sobre a espiritualidade com a religiosidade”. Isso Muriel, tanto Viktor Frankl quanto Jung na Psicologia Analítica, ou mesmo Groff na Psicologia transpessoal, eles trabalham a espiritualidade do ponto de vista da ciência da religião, não a religião como confissão de fé, não tem proselitismo nesse sentido. Então são áreas que a psicologia como ciência pode e deve se aproximar, respeitando os limites éticos, com abertura para a pesquisa, para o contraditório, sem negar, obviamente, a dimensão espiritual do sujeito, porque é como se a gente fosse lidar com o sujeito que está amputado… se a gente observar somente os aspectos psicológicos, culturais e biológicos. Então tem uma dimensão aí, a partir dos anos 80 a ciência clama também por essa outra dimensão da existência humana, que é a dimensão espiritual que está muito além, que é também como você falou Muriel, de uma questão meramente religiosa.

Hareli Cecchin – E muitas vezes a questão espiritual ajuda as pessoas a darem um sentido para a vida, para dar um sentido para os acontecimentos, a gente viu aí várias pessoas se reunindo para fazer orações, para pedir a um ser superior por uma certa ajuda, para que possa olhar para a humanidade. Então a questão da espiritualidade e da religiosidade, de certa forma, ajuda as pessoas a darem um sentido, e isso deve ser respeitado e deve ser levado em conta.

Sonielson Sousa: Deve ser acolhido dentro do processo, e valorizar dentro da existência de cada um, afinal de contas é a experiência dele ou dela que está em jogo.

Hareli Cecchin – Sim, e muitas vezes é uma experiência que traz uma sensação de pertencimento, uma coesão para o grupo, então tudo isso tem que ser observado, a gente precisa considerar isso e ter respeito em relação a isso.

Sonielson Sousa: Perfeito. A Irenides está colocando aqui se você puder falar um pouco também, essa pausa faz a gente olhar para si próprio e isso às vezes dá medo. A gente não está muito acostumado a olhar para a gente mesmo, a gente vive numa sociedade que é muito para o externo, se a gente fosse usar um termo analítico seria uma sociedade voltada para a extroversão e não para a introversão.

Hareli Cecchin – Exatamente, a Karina Fukumitsu fala bastante de um termo chamado morada existencial, que da mesma maneira que a gente mora numa casa e que uma casa tem vários cômodos e as vezes na nossa casa a gente tem o quarto da bagunça, que tudo que estraga a gente coloca lá, ou um presente que a gente ganhou e não gostou, ou foi de uma pessoa com quem a gente não se dá bem a gente coloca lá, e as vezes a gente tem o quarto da bagunça que chega um dia e a gente não consegue nem entra no  quarto, porque a bagunça tá muito grande, porque a gente adiou algumas decisões, a gente precisava ter desapegado de algumas coisas. Então da mesma maneira que a gente tem uma morada física a gente tem uma morada existencial, e aí as vezes a gente se envolve muito com trabalho, com várias demandas externas e deixa de olhar algumas questões internas, aí esse momento tá levando as pessoas a fazerem uma faxina na morada existencial, faxina é sempre muito difícil, é demorado, é desgastante, mas chega um dia que a gente precisa fazer. De repente a pessoa pode começar pela morada física mesmo, pelo guarda-roupa, pelos armários, e com isso também já fazer uma faxina emocional.

Sonielson Sousa – Isso mesmo. Eu imagino que tem alguns livros que podem nos auxiliar nesse processo, na fenomenologia existencial tem vários, na Logoterapia, eu me lembro muito do clássico inicial, o livro do Viktor Frankl, Em busca do sentido, que pode servir de um norte para que a gente consiga estabelecer uma conexão mais autêntica com o que estamos passando. No doutorado que você está fazendo, ou mesmo no percurso da sua construção da tua identidade profissional, teve algum livro que te marcou ou te marca até hoje?

Hareli Cecchin – Sim, eu sou muito apaixonada por todos os livros de Carl Rogers, mas pra quem não é da psicologia acho que O jeito de ser é um livro que qualquer pessoa pode ler, foi um livro que me marcou muito, me emocionou demais, acho que é um livro que pode ajudar as pessoas a olhar para si próprio, a pensar a respeito do se conectar com sua potência interior, com ser você mesmo, e a importância de respeitar o outro como ele é, acho que é um livro fantástico e muito fácil de entender. Eu tenho alguns amigos também que tem me ligado e falado assim: “Hareli, hoje eu sonhei com tal coisa”, “Hareli, sonhar com cobra é ruim? ”, porque agora como eles estão dormindo mais, estão sonhando mais. E estão incomodados com o sonho, eu falei olha vai ler o livro do Jung, O homem e seus símbolos, é um livro bastante fácil de ler, de entender. Aí você vai perceber que aqueles manuais de interpretação dos sonhos que a gente acha na internet não tem nada a ver. Que os símbolos vai depender de quem o sonhou, do que cobra significa pra você, do que cobra significa pra mim, e a questão dos sonhos, de se observar, de observar os símbolos ajuda muito também as pessoas se entenderem, é um livro que eu considero fantástico.

Sonielson Sousa – Eu gosto muito também. Hareli, a Lauriane colocou uma questão aqui sobre os grupos vulneráveis socialmente, como é possível evitar a sensação de desamparo, ou como a psicologia pode ajudar nesses aspectos em que há dificuldade de prover o básico para esses grupos.

Hareli Cecchin – Então, a grande questão da quarentena aqui no Brasil é que nós somos um país de uma desigualdade social, algumas camadas da sociedade não conseguem ter uma reserva financeira, então são pessoas que a partir do momento que param de trabalhar e param de receber, elas entram em uma situação de vulnerabilidade social e, às vezes, até de insegurança alimentar, e aí o que que acontece? Os profissionais da saúde, os profissionais que trabalham em hospitais e nas outras instituições de saúde, eles têm sido muito elogiados, mas a gente também tem os profissionais que trabalham na política pública de assistência social, que tem feito um trabalho primoroso para dar um suporte para essas famílias, principalmente para não deixar que essas famílias cheguem a passar fome. Nós temos psicólogos que estão atendendo gratuitamente algumas pessoas, que eu achei uma atitude muito bonita, e talvez também a gente precisaria se ajuntar para dar um apoio pra essas famílias que estão precisando de ajuda, e não só uma ajuda no sentido de consolo emocional, ajuda também no sentido de alimentos. E os profissionais hoje em dia, os psicólogos que trabalham no SUAS tem feito um trabalho maravilhoso, alguns, às vezes, até tentando fazer um acompanhamento familiar à distância já que não é possível estar visitando as famílias e tudo mais.

Sonielson Sousa – Que bom que tem essas práticas, também tenho colegas que trabalham no SUAS, tanto na área da psicologia quanto do serviço social, e eu vejo que o pessoal vem se movimentando bem aqui em Palmas, tentando atender as demandas. O Ulisses falou uma coisa interessante e eu gostaria que você comentasse um pouco, as vezes a questão semântica, como as palavras têm um peso, aí eu não tinha parado para pensar sobre isso, ele disse que tem procurado utilizar o termo recolhimento ao invés de isolamento. Como você pensa?

Hareli Cecchin – Seria uma opção interessante, porque a gente não precisa ficar isolado socialmente, talvez a gente pode até usar o termo recolhimento ou até uma distância social, mas a gente não precisa ficar isolado, porque a gente tem a tecnologia hoje em dia que nos ajuda a conversar com as pessoas, a ter algum tipo de contato, acho que essa talvez seja a grande diferença de outros séculos que a gente também teve grandes epidemias, e a gente lidou com isso de uma forma diferente, digamos assim.

Sonielson Sousa – A Muriel falou aqui novamente, ela coloca como sugestão um livro mais popular, é um livro de filosofia de linguagem bem acessível, do Leandro Karnal, O dilema do porco espinho, como encarar a solidão. É uma sugestão interessante, ele fala dessa dualidade que vem lá desde Schopenhauer, que nós somos seres que nutrem o aspecto interno, mas que ao mesmo tempo se relaciona, socialmente falando. Então por que esse nome o porco? Os porcos espinhos, no inverno, têm que dormir juntos, muito próximos, para poder conseguir manter-se aquecidos, e conseguirem ultrapassar aquelas noites mais difíceis. E sempre que eles se aproximam muito eles começam a se espetar. Então se eles ficarem separados eles vão morrer de frio, e se eles ficarem muito juntos eles também podem ter prejuízos. Me lembra aquelas questões da fronteira de contato. Se você puder falar um pouco.

Hareli Cecchin – Então, estudando um pouco de desenvolvimento pessoal, tem alguns vídeos da Gisela Vallin e do mentor dela, não estou me lembrando o nome, assim que eu lembrar eu falo. Eles falam o seguinte, da questão da distância saudável, dizem que em todos os relacionamentos a gente precisa encontrar qual é o tanto da distância saudável, e que em alguns momentos não é desprezo, é distância saudável pra você conseguir conviver bem com a pessoal, conseguir desejar que a pessoa viva em paz, viva feliz, sem tanto atrito. E aí a gente tem que ter certo cuidado com as distâncias porque quando a gente está longe demais de alguém a gente não consegue percebe-lo. A Karina Fukumitsu fala até assim, que quem está longe julga e quem está perto compreende. Então quando a gente tá muito longe a gente não consegue perceber os motivos da pessoa de ter feito aquilo, mas também quando a gente tá muito perto, as vezes a gente fica um pouco míope, as vezes muito perto a visão também embaça e a gente não consegue perceber o outro, algumas coisas vão passando meio desapercebidas. Então saber calibrar essa distância, saber lidar com isso é essencial. Nem perto demais, nem longe demais. Talvez essa quarentena está fazendo com que as pessoas lidem com isso, porque as pessoas estão convivendo mais proximamente, e estão tendo que resolver seus problemas. Eu tenho uma amiga que é advogada de família, disse que nunca teve que intervir tanto nas situações de tantos casais como agora. Ela falou que tem um casal que os dois são médicos e assim, estão brigando homericamente, ela falou assim: “se eu fosse juiz eu não deixava os filhos com nenhum de vocês dois, porque vocês dois estão doidos”. Mas por quê? Os dois trabalham muito e conviviam pouco, agora estão trabalhando pouco e convivendo muito, aí começa a ter uma percepção mais aguçada e mais aprofundada dos defeitos e das qualidades do outro. Então exercitar essa paciência, e muitas vezes é possível, mesmo que você está no mesmo ambiente da pessoa, exercer uma distância saudável também, isso é necessário dentro de uma família, e talvez também as pessoas terem uma oportunidade de passarem um tempo sozinhos, essa convivência o tempo inteiro não precisa ser algo forçado.

Sonielson Sousa – Algumas pessoas têm mais dificuldade disso, de fazer esse percurso interno, de olhar mais para dentro de si, observar quais aspectos estão incomodando ou que aspectos potencializam. E nesse sentido é como você falou, a quarentena, a gente não tá bem assim numa quarentena, seria mais uma recomendação geral, há um distanciamento social, mas inclusive a imprensa usa esses termos, quarentena, e ela acaba nos colocando diante dessa mudança, que é basicamente aquilo que a Irenides falou, as vezes ela pode gerar medo. Eu tenho um amigo também que ele vem quebrando de certa forma, a recomendação de isolamento social, ele vem se encontrando com outro amigos, ele me falou inclusive recentemente, justamente porque ele não tinha parado pra pensar nesses aspectos que ele pode obter a partir do auto apoio. E aí, agora, ele percebeu que é o momento de ele voltar-se para isso e construir isso, ele teve esse insight.

Hareli Cecchin – Então, por exemplo, os astronautas, alguns deles, quando eles vão em missões espaciais sozinhos, eles recebem um treinamento para não enlouquecer, porque as vezes passar muito tempo sozinho, parece que não, mas pode ser uma experiência enlouquecedora. Então, as pessoas precisam trabalhar nisso, e a medida do possível que a gente puder dar suporte para pessoas que moram sozinhas, amigos e tudo mais. E essas pessoas que moram sozinhas conseguir passar um tempo consigo próprio, olhar para si mesmo e pedir ajuda se for necessário, todos nós precisamos não só cuidar da nossa saúde física, mas também da nossa saúde emocional.

Sonielson Sousa – Verdade. E a gente também foi colocado diante de um cenário onde a gente tem que fazer isso por nós e pelos outros. Eu acho que ficou muito claro essa dimensão social da saúde, da psicologia, da política, que já é um pré-requisito, um pressuposto. Você me falou desse caso dos astronautas e eu também me lembrei de uma pesquisa que saiu no final do ano de 2019 e início do ano de 2020, eles pesquisaram a variação do tamanho do cérebro das pessoas que passam uma temporada mais longa na Antártica, com interações mais restritas e com poucos estímulos já que é um continente branco, não tem a variedade de estímulos visuais que nós temos. E o cérebro diminui um pouco de tamanho, então a gente vê a frequência desse cenário todo na parte psicológica, mas também na parte orgânica. Então vejo pelo o que você falou, o ideal seria que as pessoas busquem ajuda também quando elas estiverem se sentindo um pouco mais sufocadas, não há problema em pedir ajuda, algumas pessoas têm dificuldade em pedir ajuda. Como você vê isso?

Hareli Cecchin – Assim, aqui no Brasil a gente não tem uma cultura da prevenção, então em que momento as pessoas procuram um médico? Geralmente quando elas estão passando mal, não são todos, mas a maioria, não aguenta mais aí procura um médico sendo que poderia ter feito todo um trabalho de prevenção, toda uma correção de comportamentos, de rotina, e se isso acontece para a saúde física imagina para a saúde emocional. Então geralmente as pessoas procuram um psicólogo quando o copo está praticamente derramando, muitas vezes com o transtorno mental já instalado, já com depressão, já com transtorno de ansiedade. Aí nós psicólogos ficamos pensando “nossa seria tão bom se essa pessoa tivesse nos procurado meses antes, antes do transtorno mental se instalar”, então é importante que as pessoas invistam nisso, a gente desmistificar a questão que terapia é para a gente louca, para a gente doida. E a psicoterapia também é uma maneira da pessoa se conhecer, aprofundar o conhecimento, e ter um momento na vida pra ela, dedicado exclusivamente à ela, porque, em geral, as pessoas estão sempre cuidando da família, dos filhos, do trabalho, de várias outras coisas, e as vezes esquece de olhar para si próprio.

Sonielson Sousa – Perfeito. É desenvolver aspectos de autocuidado, afinal de contas eu só posso oferecer algo se eu conseguir fazer algo por mim, é uma via de mão dupla. Hareli, a gente tá chegando próximo do nosso tempo, eu queria saber se você queria enfatizar algo em especial que você acha que ficou pra trás, ou que você pensou que poderia ter falado, enfim, se você considera os principais pontos que a gente acabou reverberando aqui no nosso bate-papo.

Hareli Cecchin – Então, eu só gostaria de agradecer o convite e deixar uma mensagem para as pessoas de que nesse momento é normal se sentir um pouco preocupado, sentir um pouco de medo, a gente precisa acolher esse sentimento, a gente não vai estar feliz o tempo todo. A gente só não pode deixar que esse medo se transforme em pânico. Mas as vezes a gente pode ficar um pouco triste também, a gente precisa acolher esse sentimento e entender  que as vezes ele faz parte da vida.

Sonielson Sousa – Perfeito, nos compõe.

Haréli Cecchin – Não tem como ser feliz o tempo todo.

Sonielson Sousa – Hareli, eu queria te agradecer muito pelo tempo que você dispôs a estar aqui conosco, fazer esse contato, esse contato possível. Foi um prazer te conhecer. Você com certeza é um dos orgulhos que temos na Ulbra como egressa. Que bom que você deixou aqui sua mensagem, contribuiu conosco.

Hareli Cecchin – Eu que agradeço o convite, o Ceulp fez toda diferença na minha formação, encontrei pessoas incríveis lá, não trocaria o ensino presencial pelo à distância porque a gente aprende pelos exemplos. Agradeço o convite , e estou à disposição para o que precisarem.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.