O (En)Cena reproduziu a entrevista com o ativista e mestrando em Antropologia pela UFMG, Mauro Baracho, para o curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra, sobre o tema Racismo Estrutural no Brasil, que dentre outros aspectos abordou sobre as consequências do racismo e machismo na sociedade, suicídio entre grupos negros e seus estudos com homens negros.
(En)Cena – Poderia falar sobre a ideia da existência de uma democracia racial no Brasil, da ideia que foi vendida, que foi feita dentro da estrutura estatal a partir de livros didáticos no passado, através de grandes esquemas ideológicos que tentam vender essa imagem de que as coisas são iguais para todos, de que não há preconceitos, não há racismo, não há discriminação.
Mauro Baracho – Por conta das manifestações nos Estados Unidos, as pessoas se questionam por que os negros brasileiros não se revoltam como os negros americanos. Nessa questão, entra uma série de apagamentos de revoltas negras ao longo da história, mas também entra o processo histórico de pós abolição do Brasil e dos Estados Unidos. E no Brasil, optou-se em maquiar as diferenças sobre ideia de democracia racial.
Vem dessa ideia do exterior que o Brasil é essa mistura de povos, e de fato é, que o Brasil é uma mistura de africanos, de europeus, de indígenas. Mas que na prática, no dia a dia isso não significa muita coisa, porque a discriminação está na aparência, na cor de pele. E ninguém leva isso em conta na hora de contratar na vaga de emprego.
O Brasil optou em criar uma ideia de que é um país mestiço, como de fato era, ela vai ser reforçada principalmente por obras. Para que isso funcione precisa de intelectuais pensando, produzindo obras para criar esse aspecto positivo, principalmente na obra de Gilberto Freire em “Casa-grande e senzala”, que eram muito fortes as ideias do racismo científico onde os mestiços eram considerados como raça degenerada, era a pior raça. Os brancos, os amarelos, os negros e depois os mestiços. Então, essa obra vem para dar um aspecto positivo na identidade mestiça do Brasil. Vem consolidar essa ideia de democracia racial no país, dizer que a escravidão não foi tão cruel, que era branda porque os senhores de engenho e as escravas se relacionam e em que circunstâncias aconteciam essas relações. Na abertura do livro, descreve que nasce uma nova nação, que é a mistura do branco, negro e indígena. Que o racismo não é institucionalizado, no sentido de não ter lei de segregação, mas sabemos que a segregação se deu por costume; nos Estados Unidos se deu por lei e aqui no Brasil se deu por costume. Isso foi um artifício para não se discutir racismo no Brasil, para dizer tem gente misturada, existe branco, negro e não precisa se falar em racismo.
A ditadura militar perseguiu vários blacks no Rio de Janeiro, por medo do pessoal se inspirar nos movimentos norte americanos, porque não queriam transparecer que existiam diferenças raciais no Brasil. O filme do Simonal mostra isso, quando ele é chamado pelos militares, e interpelam ele por uma letra, afirmando que não existe racismo no Brasil e pregar a ideia de que somos todos uma mistura.
(En)Cena – O antropólogo Munanga, fala em uma das suas obras que o racismo no Brasil, muito mais que qualquer parte no mundo, se dá numa lógica de crime perfeito. Porque dificilmente a gente conhece por vias institucionais, pela grande imprensa, quem são as vítimas, o rosto, a história de fato, e muito menos quem são os algozes. Porque isso cria a falsa sensação de que os crimes de racismo não ocorrem, porque eles também não são noticiados na mesma proporção.
Mauro Baracho – Eles até são noticiados, a gente vê muitos crimes de injúria. Mas é tudo pensado para não punir os agressores, principalmente na separação do que é injúria racial e racismo. Porque racismo é quando ofende um povo, e a injúria é uma questão individual […]. Ao pensarmos como povo, e se uma pessoa me ofende me faz uma injúria racial, o que impede dela cometer o mesmo crime com outra pessoa negra? Não é comigo, porque eu não tenho uma característica da cor da pele que ela vai fazer isso, ela pode fazer isso com qualquer outra pessoa. É um crime perfeito porque nesse sentido de quem comete, além de sair impune, quem denuncia sai como chato, o extremista. E ao longo da história, percebemos que a galera vai criando mecanismos para abafar essas injúrias raciais. Eu lembro da minha mãe, que é preta, ao chegar e contar para ela sobre episódios de racismo, ela dizer que isso tudo era cisma.
O jornalista Carlos Medeiros fala dessa questão da cisma, que as pessoas falam que racismo é cisma, ele fala que é ‘complexo de cor’ que é a ideia de que os pretos já são cismados, veem racismo em tudo. Então, essa questão de crime perfeito, a pessoa que sofre o racismo é vista como chata, extremista e ‘mimizenta’, e a pessoa branca, como liberdade de expressão, ou são brincadeiras.
(En)Cena – Vejo muito nas universidade um movimento crescente de descolonização das subjetividades, como eles chamam, principalmente os filósofos, sociólogos, e alguns psicólogos no sentido de fazer com que a gente repense a nossa linguagem. Que a nossa linguagem foi construída também em cima de uma lógica bastante excludente, de uma lógica de separação, de uma dualidade. Um exemplo, a casa onde mora o presidente dos Estados Unidos é a casa branca, nos contos de fadas vemos a Branca de Neve. Então, tudo que está relacionado a brancura, a branquitude coloca-se como aspectos positivos e tudo que está relacionado a negritude, normalmente eram associados a aspectos negativos.
Percebo que muitas pessoas se incomodam quando essas questões são levantadas, e o cuidado que deveríamos ter, eu imagino, é justamente nessa dimensão mais elementar que é na linguagem. Por isso, que talvez as piadas racistas, de fato, elas têm que ser confrontadas, mas tem um grupo crescente de pessoas que atacam o politicamente correto, elas querem ter o direito de rirem das outras pelas suas particularidades, inclusive são pessoas que consideram que o mundo está mais chato porque elas não conseguem, por exemplo fazer uma piada com um negro, um homossexual, um judeu. Como você vê isso? Pois, o tempo inteiro eu como professor escuto isso, de vez em quando, “eu não posso mais me expressar agora”. É como se a liberdade de pensamento e de fala estivesse acima de qualquer coisa, inclusive da integridade do outro, parece que há uma distorção.
Mauro Baracho – Sim. Tem até um documentário chamado ‘O riso do outro’, que fala exatamente disso. As pessoas falam que não podem se expressar, e quando você aponta algumas piadas racistas, elas se sentem cerceadas, então ela quer ter o direito de ser racista, direito de ser homofóbica, direito de ser machista.
Os Trapalhões, cresci nos anos 90 vendo o Didi fazer piadas racistas com o Mussum, e eu ia para a escola e os meninos reproduziam as piadas em mim e em outros meninos negros, e era brincadeira, era piada. E eu não gostava daquilo, e duvido que uma pessoa preta vai curtir esse tipo de piada. E se a gente reclamasse, seria o cara excluído, o cara chato; então, isso tem uma questão de socialização.
Quando a gente começa a falar que as coisas não são legais, as piadas racistas, homofóbicas, a galera começa a se sentir ofendida por não poder fazer mais.
Ouvi um comentário que estão acabando com a alegria do brasileiro, aí a gente vê que a alegria do brasileiro é diminuir mesmo, diminuir gente preta, diminuir pessoas gays, mulheres. Porque para eles, o humor é isso, é fazer piada com pessoas que já passam por um processo muito difícil por serem gays, por serem negras, por serem mulheres.
Tiveram pessoas defendendo as manifestações ‘charlotte’s view’ nos Estados Unidos em 2015, que defendia o ato como liberdade de expressão. Eles partem da ideia de que liberdade de expressão é falar o que quiser doa a quem doer, e o humor tem essa ideia deliberal também, que não pode ter tabu ou barreiras. E os meios que defendem isso são sempre os mesmos, Danilo Gentili, essa galera que nunca teve a menor graça mas só chegou onde chegou porque o Brasil é um país muito racista, muito homofóbico, muito machista e sádico. Que sente prazer em ver pessoas como Danilo Gentili, Léo Lins, Sílvio Santos humilhando pessoas. Sílvio Santos levava travestis no seu programa para fazer piadas da cara delas, em pleno domingo a noite no horário nobre. E essas pessoas só são permitidas a espaço na mídia se forem caricaturas, como Vera Verão, o Jorge Lafond. Porém, só era aceitável quando era pra fazer rir. Relação de poder é isso, você se afirma, diminuindo o outro.
(En)Cena – Sobre a questão da apropriação cultural. Acaba surgindo na imprensa alguns grupos que aderem a artigos que são da cultura negra, começam a ser colocados como moda, ou um estilo, tirando inclusive, as características iniciais que tem até uma conotação política … Fazem uma mistura geral para relativizar a ação. Achei interessante o seu post sobre o alisamento de cabelos.
Mauro Baracho – As pessoas usam isso quando a gente fala de apropriação cultural, primeiro que começam a achar que apropriação cultural é quem pode ou não pode usar turbante, quem pode ou não pude usar tranças. Porém, estamos discutindo processos históricos, de culturas que foram marginalizadas, dita como atrasadas, que tiveram seus processos culturais marginalizados no ocidente e hoje elas são legais desde que sejam em corpos brancos. Quando apareceram três atrizes brancas, Mariana Ximenes, na capa de uma revista usando turbantes. Então quando uma pessoa negra usa um turbante na rua é apedrejada, chamada de macumbeira, mas quando uma pessoa branca usa um turbante é a coisa mais descolada do mundo. As pessoas vem fazer essa falsa simetria de que se for por esse lado, pessoas pretas se apropriam da cultura branca quando alisam o cabelo, já partem para uma premissa totalmente errada, o cabelo é um traço genético.
E a questão das tranças é um elemento cultural no sentido que ela já foi usada para transmitir significados além do tempo, dizem que na época de escravidão as tranças eram usadas para desenhar rotas de fugas, e estamos falando de penteados e não de textura de cabelo. E as pessoas pretas não alisam os cabelos para apropriação da cultura branca, mas para serem aceitas, pois crescem tendo vários padrões de nariz fino, cabelo liso. Ninguém que alisa o cabelo toma o lugar de uma pessoa branca.
(En)Cena – Você que está dentro da universidade, eu percebo que dentro do cientificismo, que é aquela ciência mais dura, dentro daquelas ideias de pessoas que acreditam que a ciência é a única forma de explicar os fenômenos, há uma ciência patriarcal, de origem branca, muito influenciada pela língua inglesa, bastante liberal do ponto de vista econômico. Essa ciência tem uma tendência a se colocar como uma espécie de universalizante, no sentido de desconsiderar os outros saberes. A gente vê isso muito claramente no Brasil quando os saberes populares relacionados a medicina e a linguística, a dinâmica dos cuidados dos povos indígenas e povos negros foram totalmente excluídas dos debates públicos e também não foram considerados como ciência no sentido mais amplo. E isso eu ainda percebo no meio acadêmico, não sei se você também percebe isso no meio acadêmico, uma supervalorização do que seria o científico, mas sem entender de forma mais profunda de onde vem esse científico; se esse científico inclui esses saberes tradicionais ou se ele exclui os saberes tradicionais. Os estudos do francês Edgar Morin, apontam que não é mais possível explicar o ser humano a partir de um pressuposto, de um paradigma, por exemplo, o paradigma científico positivista; ou a gente se abre para outras formas de interpretar esse sujeito e entender esse sujeito ou a gente está fadado ao fracasso.
Mauro Baracho – Se tem uma falsa ideia de que a ciência é neutra, e a academia também não é. Ainda se tem essa resistência, principalmente pessoas pretas e indígenas quererem produzir outras narrativas. Eles gostam de pesquisar o negro, os indígenas, mas quando entra uma pesquisa de branquitude, as pessoas ficam receosas. A minha pesquisa é sobre masculinidade negra, pesquiso o primeiro grupo de masculinidade negra de Belo Horizonte, onde homens pretos se reúnem para discutir masculinidade negra, as questões que atravessam os homens pretos, porque até então a gente só via discussão de meninas pretas. E em Belo horizonte, já deve ter em torno de um ano e meio que eu pesquiso sobre o assunto, e fui muito guiado a pesquisar sobre isso por conta das minhas leituras de autoras negras. Quando eu entrei no mestrado, o grupo estava surgindo com dois homens pretos que foram em um encontro de masculinidade que só tinham homens brancos […]. O interessante foi que depois de um tempo, começaram a levar os pais, os filhos para debaterem.
(En)Cena – Você chama atenção para a construção de quilombos por parte da população negra. Quilombos que podem voltar a replicar estruturas hierárquicas. Do que você estava falando exatamente?
Mauro Baracho – Está na moda falar em construção de espaços, mas não se pode construir um espaço exclusivo para gente preta sem considerar uma série de coisas. Enquanto estiver replicando lá dentro estruturas hierárquicas, no sentido de por ter um título acadêmico, uma visibilidade maior, você tem mais prestígio que outras pessoas pretas. E isso é um cuidado que a gente deve ter nessas estruturas e várias áreas da nossa vida.
A gente tem que considerar uma série de coisas, por exemplo questões de autoestima, saúde mental. Eu criar um quilombo, um grupo de pessoas pretas para reunirem, ou criar uma roda de conversa para reproduzir hierarquias no sentido de que eu posso falar porque tenho um título acadêmico, como se eu tivesse mais prestígio, sem fazer violência psicológica, afinal a maior parte dos suicídios é em população negra.
(En)Cena – Você falou de uma questão que ocorre no Brasil que é a quantidade de ideação suicida seguida de suicídio da população negra, principalmente os jovens, algumas pesquisas mostram que são de 2 a 3 vezes maior a ocorrência nessa população. Me fez lembrar também de alguns dados que são levantados, de vez em quando, sobre a solidão entre as mulheres negras, principalmente entre as mulheres a partir da meia idade. Esse é um fenômeno que aliado ao próprio fenômeno do racismo estrutural, acaba ceifando vidas, pelo menos do ponto de vista psicológico, afetando muito a saúde mental dessas mulheres. Você conhece algum projeto em Belo Horizonte, ou no Brasil, ou algum autor que trabalha essa questão da solidão entre a população negra em especial as mulheres ou a população em geral?
Mauro Baracho – Sim. Essa questão da solidão é pautada pelas mulheres pretas na década de 80, Laura Moutinho, Sueli Carneiro, Claudete Alves, Ana Cláudia Pacheco; são todas autoras que produziram sobre a solidão da mulher negra. Que não se dá somente na área afetiva ou sexual, a solidão no sentido também mais geral. A medida que tem aquela pirâmide que coloca a mulher preta como a base da pirâmide, e outra, não acredito que em quilombos não se discuta a solidão da mulher preta. De fato, existiu a solidão da população negra no ocidente como eles gostam de colocar, e a solidão da mulher preta implica em todo o estado da pirâmide. E é um assunto que todos nós deveríamos refletir, e não deve ficar só restrito nas meninas pretas debatendo as mulheres pretas. Então, quando eu comecei a falar sobre isso, a galera curtiu porque tinham poucos homens falando sobre isso, tocando nesse assunto. De fato, isso não é um assunto fácil de ser falado, é um constrangimento, isso toca em algumas coisas, vai nas feridas. No livro da Claudete Alves, vai discutir essa questão de os homens negros que ascendem porque casaram com mulheres brancas. Ela quem traz essa implicância com os homens negros. Então, a solidão da mulher negra é um mix de machismo e racismo.
(En)Cena – Você fez um post que me chamou atenção falando sobre as pessoas que são vítimas de racismo, como elas paralisam diante do racismo. Como isso ocorre? Já que você relatou que já foi vítima de racismo.
Mauro Baracho – Eu fiz aquela reflexão baseada em um livro. A gente estuda o racismo mas não espera por ele. Essa paralisia se dá por conta do encontro que temos entre a ideia de nós mesmos com a percepção das pessoas em relação a nós, você se vê objetificado e isso nos paralisa.
(En)Cena – Qual sua opinião pessoal sobre o futuro do nosso país em relação a um debate como esse, quais são suas perspectivas? Você acha que a gente está trilhando um caminho onde a gente vai amplificar essas vozes, muitas pessoas ficaram decepcionadas com os rumos políticos que tomamos nos últimos quatro ou cinco anos com uma virada para a extrema direita. Onde conquistas sociais que foram alcançadas nos últimos 20 anos foram postas em xeque, foram desafiadas, e a gente vê muitas pessoas desanimadas, são militantes e outros que veem esse cenário todo como um combustível para continuarem mais militantes ainda.
Mauro Baracho – Eu também estou um pouco pessimista, mas também não é algo que me faz desistir. Porque essa ascensão da extrema direita é uma tendência mundial, também não tenho perspectivas boas no Brasil, de que as coisas vão melhorar. Acho que tendem a se manterem. Independente de quem seja, vai continuar difícil. Talvez a gente ache que um governo mais progressista ajuda para que caminhem melhor. O genocídio da população negra se intensificou nos 13 anos de PT, enquanto não se colocar o debate racial como centro do racismo e da escravidão as coisas vão continuar, não vão mudar muito. Então, para gente vai continuar difícil.
(En)Cena – Agradecemos por sua participação.