Heloysa Dantas Martins – lolo@rede.ulbra.br
A primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) foi fundada em dezembro de 1954 na cidade do Rio de Janeiro, que na época era a capital do Brasil. Caracteriza-se por ser uma instituição responsável pelo cuidado com os deficientes intelectuais e múltiplos e tem como missão a promoção e articulação das ações de defesa de direitos e prevenção, orientação, prestação de serviços e apoio à família, direcionadas à melhoria da qualidade de vida da pessoa com deficiência e à construção de uma sociedade justa e solidária. O trabalho com os deficientes intelectuais e múltiplos é algo de extrema importância mas bastante negligenciado e desconhecido, devido às dificuldades e falta de conhecimento sobre essa área poucos profissionais decidem por essa atuação. Devido a sua importância porém pouca visibilidade decidimos entrevistar parte da equipe multiprofissional da saúde da APAE de Paraíso do Tocantins. Convidamos a Terapeuta Ocupacional Talita Dias, formada pela facudade PUC do Goiás, e ingressou no mercado de trabalho na área dos cuidados com pessoas especiais, através da Apae de Paraíso há mais de 10 anos, e no ano de 2022 abriu sua clínica particular Integrar Paraíso (@integrarparaiso) que é um Centro de Reabilitação Infanto Juvenil, composta por uma equipe multidisciplinar com o intuito de trabalhar com esse mesmo público. Também entrevistamos a Psicóloga Savanna Ferreira Dala, formada pela faculdade Ceulp/Ulbra de Palmas – TO, já trabalhou na Secretaria da Educação como Psicóloga Escolar e atualmente trabalha com o público de deficientes intelectuais.
(En)Cena: Como vocês chegaram até a Apae?
Savanna: Quando eu cheguei na apae eu já tinha uns dois anos de formada e trabalhava na Diretoria Regional de Ensino, na parte de psicologia educacional. Após perder o emprego, a presidente da época me convidou para vir trabalhar aqui, eu não conhecia o trabalho das APAEs e nunca nem tinha trabalhado com crianças especiais apesar de trabalhar na área da educação, era voltado para crianças de ensino regular.
Talita: Me formei em Goiânia na PUC, após 6 meses que eu estava desempregada recebi a proposta aqui de paraíso, na época eu nem sabia que existia essa cidade, eu vim através da Dona Daura que era presidente na época e isso já faz 16 anos. Eu costumo dizer que caí aqui de paraquedas, já conhecia o trabalho das APAEs através de estágios na faculdade mas nunca tinha tido um contato tão profundo.
(En)Cena: Como funciona a atuação profissional na APAE?
Savanna: O trabalho da psicologia aqui é bem versátil, tem muitas áreas da psicologia aqui que a gente trabalha aqui dentro, dois exemplos que podemos citar é a psicologia escolar e clínica porque a gente trabalha com orientação de professores, a parte cognitiva das crianças, a aprendizagem e também questões emocionais, familiares, orientação de pais, entre outros. Já tentamos algumas vezes fazer grupo de pais mas não é algo muito fácil de ser realizado porque eles não aceitam e não aderem ao trabalho, às vezes vem e param de vir mas o foco acaba sendo também a família e não somente o aluno.
As crianças que têm o entendimento para trabalhar o emocional, atividades voltadas para o convívio social a gente trabalha e as crianças que não tem esse desenvolvimento cognitiva a gente acaba trabalhando esse desenvolvimento cognitivo de aprendizagem, raciocínio, atenção, concentração, muito voltado para essas duas vertentes, então depende muito do desenvolvimento e do comprometimento cognitivo de cada um, a patologia e o CID que cada um tem.
Talita: Eu trabalho a parte cognitiva de forma lúdica, a reabilitação física de membros superiores e trabalho a parte de AVDs (atividades da vida diária).
(En)Cena: Quais os maiores desafios que você enxerga em relação ao seu trabalho?
Savanna: Eu vejo que uma grande dificuldade é a falta de aceitação dos pais em relação à realidade do filho, porque quando o pai aceita, adere e abraça o história do filho, vê as dificuldades que o filho tem, aceita que aquilo é uma realidade e que se não ajudarem a criança pode não evoluir, se eles aceitam temos um tratamento mais eficaz e uma evolução melhor, mas quando o pai não aceita encontra-se muitas limitações, tanto emocionais quanto de fazer o que se pede, porque precisamos lembrar que o tratamento não é só aqui dentro, muitas vezes orientamos a uma mudança de rotina ou uma atividade diferenciada em casa pra dar continuidade ao que é ensinado aqui, tem pais que fazem e abraçam e tem pais que não. Outra questão que eu vejo também é a frustração que temos como profissional, no começo eu ficava bastante assim, porque o paciente, algumas vezes, não tem a evolução que esperamos devido a patologia, muitas vezes o paciente consegue atingir algo em uma semana e na próxima semana ele já regrediu novamente e quando eu cheguei aqui eu me cobrava bastante achando que eu ficaria a vida inteira trabalhando a mesma coisa sem alcançar uma evolução mas depois eu comecei a entender que é uma área diferente de atuação dentro da psicologia, não é como trabalhar em uma escola regular ou atender um paciente na clínica particular com uma criança sem deficiência intelectual, é totalmente diferente e por isso a gente entende que qualquer ganho é positivo. Eu vejo também que por causa desses fatores para trabalhar aqui é necessário ter um gosto pelo trabalho porque se não, dificilmente o profissional vai permanecer.
Talita: O maior desafio aqui na clínica são os pais que não ajudam, a equipe multidisciplinar na clínica orienta os pais a dar continuidade no tratamento dentro de casa, e consegue-se enxergar nitidamente diferença da evolução dos pacientes em que a família dá esses suporte daqueles que não possuem esse suporte familiar. Outra dificuldade que temos aqui é a questão financeira, porque às vezes precisamos de um equipamento, algo que é mais caro, mas que a instituição não pode comprar e acaba tendo que passar por licitações que acaba sendo demorado ou nem chega. Tem coisas que vão além do que fazemos aqui, um exemplo disso é o desfralde, eu não consigo trabalhar um desfralde sem a ajuda de um pai, ou a seletividade alimentar também, são coisas que não podemos fazer sem a cooperação dos pais no processo.
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(En)Cena: Já aconteceu de um paciente estagnar nas respostas terapêuticas?, Se sim, como proceder?
Savanna: Chegar ao ápice do desenvolvimento não é algo que acontece, o que pode acontecer é da família não aceitar que o paciente chega em uma certa idade em que ele não vai passar daquilo. Que ele já alcançou na parte cognitivo porque dentro da idade que ele possui para conseguir ir além. Vai ser em passos mais lentos do que já foi até o momento presente. Por exemplo às vezes o paciente tem trinta anos e não conseguiu falar, e a mãe quer que ele fale ou o responsável quer que ele leia, e o desenvolvimento cognitivo dele mostra que ele não vai ser capaz de ler fluentemente. Ele pode até reconhecer letras mas não consegue ler. Pode ser devido a idade ou questões cognitivas mesmo. Esse impasse existe muito e na maioria das vezes a família não aceita, então se a gente tira determinado paciente do tratamento para dar oportunidade para alguém que tem cinco anos de idade e que a gente sabe que vai conseguir desenvolver melhor porque ela ainda tem essa flexibilidade no cérebro de desenvolvimento. A elasticidade ainda está boa para aprendizagem e por isso ela vai conseguir e já um cérebro de trinta anos já se encontra com mais dificuldades, então acaba sendo melhor dar oportunidade para o paciente de cinco anos, sempre relacionando isso sobre as vagas, porque o atendimento na instituição é bem concorrido. Mas é claro que se pudéssemos atender a todos, essa seria a nossa opção.
Outra coisa que a gente busca fazer é manter em sintonia com a área pedagógica da instituição, por que às vezes a professora vai conseguir evoluir com ele algumas coisas que seriam trabalhadas aqui com a gente, e isso acaba abrindo vaga para os novos pacientes aqui na clínica.
Talita: Chegar ao ápice da evolução nunca aconteceu dentro da terapia ocupacional, o que aconteceu foi que o paciente conseguiu alcançar tudo o que eu tinha listado e de certa forma não tinha mais o que fazer. Teve um caso aqui na instituição em que a minha paciente já tinha alcançado tudo na parte sensorial, ela também tinha relações cognitivas para serem tratadasmas ela já estava em outra escola e instituições que trabalhavam as mesmas coisas, então para dar vaga pra outros eu acabei dando alta pra ela. Nesse processo a gente chama a família, orienta, explica os motivos da alta que estamos dando, isso acontece bastante nas crianças da estimulação precoce, quando elas conseguem alcançar os marcos principais como, subir escada, caminhar, correr, pular então nós chegamos nós pais e avisamos aquilo que ele já conseguiu fazer e damos alta orientando a família nos próximos passos a serem feitos.
(En)Cena: Quais os ganhos para vocês como profissionais trabalhando aqui na instituição?
Savanna: Na minha visão, vejo que abriu nossa mente para essa área do desenvolvimento, seja ele infantil, cognitivo, de que tem crianças lá fora que precisam da gente também. Tanto que acabei expandindo e abrindo um consultório particular nessa área.E aqui abriu muitas portas pra mim profissionalmente por que eu vejo que aprendi muita coisa que nem sabia que existia. E com o tempo eu aprendi coisas que não aprendi na faculdade, porque a gente acaba não aprendendo tudo lá, a gente fica mais no campo da teoria, mas na prática, a realidade é mais trabalhando mesmo e eu considero que eu fiz outra faculdade aqui.
Talita: Entre tantas coisas que eu posso pontuar aqui, eu vejo que meu olhar clínico foi muito aguçado e melhorado ao decorrer dos anos., Hoje a gente que trabalha nessa área da avaliação já consegue identificar com mais facilidade pessoas que possuem traços de atraso no desenvolvimento, claro que tem aquelas crianças que te deixam dúvida, mas a maioria dos casos é bem certeiro mesmo, e isso é muito bom até porque quanto mais cedo algo é identificado, mais cedo o tratamento pode ser iniciado e mais eficaz ele vai ser. Com todos esses anos aqui eu também tive meus olhos e desejo abertos para estudar mais esse mundo do autismo, que tem sido uma queixa que tem crescido cada vez mais. A gente acaba buscando muita qualificação fora da instituição, porque a gente sabe que muitas vezes a realidade da instituição não consegue proporcionar formações mais eficazes pra gente. muitas vezes por uma questão financeira mesmo, de tantas demandas. Eu estou aqui já há dezesseis anos e pra mim é quase uma vida e eu realmente pude aprender muito.
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Que dica você deixa para algum estudante ou profissional formado que gostaria de seguir nessa área?
Savanna: Olha, eu digo que essa área é apaixonante para aqueles que pegam gosto, e essa área em especial não tem como ser feito sem amor, nao tem como fazer por obrigação ou pelo dinheiro, porque os desafios são diversos, não que em outras áreas de atuação não tenha desafios, mas quando se trata de crianças especiais a gente sabe que tudo tem que ser e dobro, a paciência, o amor, a dedicação. Então eu digo que primeiramente precisa existir um gosto mesmo pela área de atuação para conseguir vencer todos os obstáculos que vem pela frente quando se decide por essa prática, é claro que eu também digo que é necessário, assim como todas as áreas de atuação dentro da saúde, buscar um conhecimento fora daquilo que é falado na faculdade, porque a gente sabe que o conhecimento que a faculdade nos passa é só a ponta do iceberg de um mundo de conhecimento que nós vamos precisar na hora da prática, então acredito que sempre buscar mais conhecimento é essencial também, e por último eu diria para não ter medo de praticar, sempre com muito respeito e zelo pela vida que está sendo confiada a você.