O (En)Cena conversou com Márcio Loyola de Araújo sobre a experiência de acompanhar os pacientes do Instituto Philippe Pinel em uma ala na escola de Samba Porto da Pedra no carnaval do Rio de Janeiro. Márcio é Psiquiatra, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2003). Participou da implantação e supervisão dos CAPS no Rio de Janeiro. Atualmente atua como professor de psiquiatria na Faculdade Pestalozzi e é supervisor de estágio no Hospital de Custódia Henrique Roxo.
(En)Cena – Márcio, como se deu o seu envolvimento com a psiquiatria e com a saúde mental?
Márcio – Minha formação na UFF foi bem interessante porque durante a faculdade eu ficava questionando para que aprender aquelas coisas? Como é que eu ia aplicar isso nos pacientes? Eu estava na ginecologia na época, eu vi que não tinha muita haver aquilo com o que eu queria fazer. Eu queria ajudar o paciente, não só fazer um diagnóstico e prescrever alguma coisa. Fiz um estágio em um hospital psiquiátrico que tinha em Niterói e lá eu tive a oportunidade de participar de várias atividades, e viver uma experiência como eles. Quando terminei medicina decidi fazer psiquiatria. Passei para o Instituto Philippe Pinel. Vivi uma experiência interessante em ser residente e morar dentro do hospital, ao conviver com os pacientes. Morei em um lugar interessante que era um centro de referências que questionava a forma de tratamento apenas hospitalar, não existia ainda os serviços substitutivos que a gente chama de CAPS. O que tinha era o Hospital Dia, onde eu tive a oportunidade de trabalhar no segundo ano, com terapia ocupacional.
(En)Cena – Como era a rotina de trabalho nesses hospitais psiquiátricos?
Márcio – Na prática, os trabalhos eram plantões… Terminando a residência eu acabei indo para a aeronáutica. Com o passar do tempo comecei a ver que com o meu trabalho eu não estava conseguindo produzir algo interessante, passei a criticar o trabalho que eu mesmo fazia. Aquilo de apenas silenciar o sintoma com o remédio não me satisfazia. Quando comecei a fazer mestrado em psicologia, passei a questionar tudo que tinha aprendido na psiquiatria.
(En)Cena – O que mais te inquietava?
Márcio – Durante o mestrado comecei a pensar: “se estava questionando aquilo que eu fazia, então eu deveria parar de ser psiquiatra e me tornar psicólogo?” Mas isso não era apenas virar outra coisa? Eu pensei: “Não! Espera aí! O importante é o papel que eu executo no lugar que eu estou. Eu posso ser psicólogo e ter o pensamento da mesma forma, e continuar reduzir a pessoa a uma técnica qualquer… Não é só a medicina que reduz a pessoa ao objeto, qualquer ciência, qualquer disciplina pode fazer isso”.
(En)Cena – E como foi ter acompanhado e coordenado o grupo de pacientes que desfilaram no carnaval do Rio de Janeiro?
Márcio – Uma situação transformadora para mim foi ter sido convidado para desfilar para a Escola de Samba Porto da Pedra com os pacientes psiquiátricos do Pinel, isso também foi muito importante para o trabalho que hoje eu estou fazendo. Ensaiar com os pacientes para podermos desfilar na apoteose às duas da manhã tem seus riscos. Tivemos que escolher, entre os pacientes, aqueles que tinham melhores condições… Confesso que durante os ensaios ficamos com receio do que poderia acontecer. Eu nunca tinha desfilado, mas eu sabia que a experiência evocaria diversas emoções nos pacientes. Pensamos uma equipe bem estruturada, para dar suporte caso houvesse alguma eventualidade. Estávamos no chão junto ao último carro, quando entramos todos estavam gritando “é campeão, é campeão” e cantando a música da escola. Acho que é a mesma emoção de fazer um gol no Maracanã! Muito legal! E todos os pacientes ali dançando, se divertindo, integrados… Então alguns dos técnicos do serviço de tão alegres, pularam na grade, e gritaram, naquela alegria, e um dos pacientes que estavam dançando passou por mim e falou: “olha lá, estão queimando nosso filme”.
(En)Cena – Você não esperava esse inversão de papéis, esse comentário do paciente “louco” sobre a atitude do técnico do serviço “normal”?
Márcio – Vejo a loucura como um estigma em uma sociedade que não consegue manter uma relação com a diferença. Tem-se que encontrar uma forma de existência que não reduza a pessoa a uma “coisa”. Quando você está em um serviço substitutivo, ou em uma atividade com os pacientes, você não consegue diferenciar quem é o paciente de quem é o técnico. Já no hospital é possível diferenciar bem quem é quem. Agora, em uma atividade, como essa do carnaval, quem é o normal? Eu costumo dizer que o louco, na sociedade, é a pessoa que fala a verdade, é aquele que revela aquilo que está escondido. E é claro que a sociedade não suporta isso.
(En)Cena – Márcio, como você enxerga essa relação que a gente estabelece com a loucura, inclusive com a loucura em nós, e de que forma as intervenções na cultura podem transformar isso?
Márcio – É… Bem, não seria solução desfilar todo ano com os pacientes. Isso depende muito da conjuntura, da situação, da relação, não é fazer um mundo especial para eles, mas sim, possibilitar um mundo em que nós possamos lidar melhor com a nossa própria loucura. Temos a dificuldade é de lidar com o diferente em nós mesmos, como é que podemos conceituar que o outro tem um desvio quando o padrão diferente do nosso de normalidade? Eu me lembro de ter lido textos muito interessantes sobre a história do Brasil que, na época do império, as pessoas consideradas loucas vendiam bilhetes para sorte, andavam livremente pelas ruas, existia-se uma integração da loucura com a cidade. Os andarilhos, aquelas pessoas que falavam coisas engraçadas, que divertiam… Tem uma história do… Eu acho que chama Obar, O Rei Obar, que ia conversar com Dom Pedro II e era recebido pelo imperador… Quando é então que a loucura foi reduzida a uma doença? Com a entrada do capitalismo, com a entrada da obrigação ao trabalho… A loucura tem a ver com o que não serve ao capitalismo, isso historicamente. Hoje ela foi captura e agora serve ao capitalismo.
(En)Cena – De que maneira a Loucura serve ao capitalismo?
Márcio – Quando eu descrevo a loucura como um conjunto de sinais e sintomas, eu consigo colocar ela dentro do diagnóstico que hoje se chama CID 10, ou do DSM IV, eu consigo articular o sintoma com o diagnóstico e ao tratamento. Nesse tratamento geralmente são usados psicotrópicos que são comercializados, também as pessoas quem produziram esse diagnóstico têm interesses na venda desses remédios. Eu vejo a loucura como uma forma de obter lucro, seja com os hospitais psiquiátricos ou até mesmo com os CAPS, que questionam hoje esse processo ao mesmo tempo em que se utilizam desse diagnóstico. Há uma dificuldade de questionar isso… Mas não podemos negar que o doente mental tem uma existência, como questionar essa existência? Eu acho que o caminho mais interessante é a arte.
(En)Cena – Qual o papel dos CAPS nesse processo?
Márcio – Eu acho que os CAPS tem uma importância muito grande nesse processo. Acontece que pela quantidade de pacientes e pelo pensamento de que os CAPS irão substituir os hospitais, corre-se o risco de apenas transferirmos o serviço de um lugar para outro, sem mudar o tratamento. Precisamos que questionar isso… Nós temos que pensar que o contrário do hospital é a rua, é a vida, e tem outras formas mais interessantes de viver, que não se reduzem a uma inserção social, dentro de uma sociedade que, no meu entendimento, está com muitos problemas. É importante também questionarmos a sociedade em que vivemos, essa reflexão pode ser intermediada pela cultura e pela arte.
(En)Cena – O adoecimento mental é fruto do capitalismo?
Márcio – Em uma família, a mãe e o pai trabalham cada vez mais e se tornam ausentes na relação com a criança, não só com a questão do tempo, mas na qualidade. Há uma cobrança cada vez maior para fazer dela um mini-adulto; ela tem que produzir, ela tem que ter nota, tem que fazer vários cursos etc. E aí o déficit de atenção é da criança, a escola naquele molde tradicional via Pink Floyd, The Wall, falando que a gente molda as crianças e deixamos todo mundo igual para servir ao mercado de trabalho. O diagnóstico ele tem sido feito para adaptar a pessoa ao mundo que alguns querem. Eu vejo o adoecimento mental, a depressão, a ansiedade, como sintomas da falência desse mundo normal, não como uma doença em si, fruto de uma fragilidade genética ou de uma alteração bioquímica cerebral, cujo remédio é a solução.
(En)Cena – Como você percebe a saúde mental hoje no Brasil?
Márcio – Essa pergunta é difícil de responder… O Brasil é muito grande, têm várias características, eu vejo lugares diferentes produzindo coisas diferentes. Não é destituindo o que se tem que você vai construindo uma política boa de saúde mental, é utilizando o que se tem. Na saúde mental o centro da discussão é a construção dos CAPS. Eu, particularmente, penso que a gente não precisa construir CAPS para transformar a realidade, a gente precisa é transformar a sociedade. O CAPS é um instrumento, mas esse papel de responsabilidade com o transtorno mental não pode ser só a saúde, por exemplo: “você vai fazer internação compulsória do cara, você vai obrigar o cara a se tratar, você vai colocar na saúde a responsabilidade sobre o uso de drogas?” É a sociedade que é responsável. Então, como incluir o profissional de saúde nessa discussão? Temos que ter uma política que integre vários elementos na atividade da saúde. Em primeiro lugar, deve-se investir na educação para a população. Sem educação eu não vejo como evoluir esse processo, e educação incluindo a arte do local. Além de estimular a pesquisa, não só na área tecnológica, mas na área humana.
(En)Cena – Márcio, para encerrar, na sua concepção, como superar estigmatização que se fez da imagem do louco?
Márcio – Eu acho que a gente tem que receber melhor o estranho. Estamos olhando para o nosso próprio umbigo e não estamos valorizando os espaços na rua, por exemplo. Tratar uma pessoa que você não conhece, com mais respeito, com mais carinho, é importante. Continua tratando bem do teu amigo, teu filho, proximidade, mas recebe bem também o estrangeiro, cuida de quem você não conhece. O estranho, a pessoa que está na rua, não é seu inimigo. Estamos recebendo uma quantidade de informações, e buscando nos defender demais do outro. A gente está se perdendo nisso, a maior violência não está na rua, está dentro de casa, é aquela que fazemos contra nós mesmos e contra as pessoas com quem vivemos.
Transcrição: Ruam Pedro Francisco de Assis Pimentel
Edição: Hudson Eygo