A dança das cadeiras

A crise é o início deste texto. Não estrategicamente, tal como faz Deleuze, em sua entrevista (1), que retoma as reviravoltas da obra de Foucault apontando-o como um dos mágicos que mais ardilosamente se apossaram desse truque de encantamento. Talvez, escrever uma resenha seja defrontar-se com uma crise. O que dá corpo a um texto? Qual seria a sua alma? Seria eu capaz, com o recurso frouxo de poucas palavras, captar os tremores e vibrações de textos tão inquietantes? O que pode uma resenha? Nesta tentativa eruptiva, travo com os afetos a malha que dá voz e verbo as rachaduras que as palavras de Deleuze e suas visitas à obra foucaultiana me provocam.

Uma resenha tem a função de produzir um “duplo” com a obra já lida. Ou seja, cabe a este recurso textual defrontar-se com “a repetição, a duplicação e fatal dilaceração” referente a obra que toma como dobra. E é nestes momentos, nas dobras, que os “instantes instáveis” rompem-se do silêncio de uma leitura atenta. E a resenha busca, tal como fez Deleuze em seu livro sobre Foucault, agir como um prolongamento da obra foucaultiana, num movimento de inércia desta produção, que não só vê o autor e suas humanas “incoerências” (este último aspecto, epicentro do trabalho dos  críticos ou daqueles que leem uma obra complexa e densa tal como os que varrem a rua em dias de ventania), mas que tenta efetivamente manter as lutas vivas e vitais da obra já produzida.

Acaba se tornando estratégico, quando se estuda uma obra e uma “luta filosófica” (seria eu redundante aqui?) captar a obra por inteiro. Para isso Deleuze nos guia a percorrer bifurcações, brechas, aceitando avanços e momentos de estagnação, processos inerentes à “travessia” da crise que organicamente representa a vitalidade de uma obra filosófica (mas também de uma obra ética, estética, política e de concepções de vida e morte!).

Deve-se, pois, aceitar e aprender a ouvir a musicalidade da obra de Foucault. Seus acordes, tons e contra-tons. A ressonância e a intensidade de suas ondas sonoras que nos devem contrair os músculos (não menos os miocardiócitos, esses com ouvidos altamente sensíveis!) e nos mantem em resistência, na busca de outros caminhares.

Para Deleuze é isto, curto e grosso: aula boa, música boa. Incluiria uma boa resenha como integrante deste coro harmonioso. Ampliar a propagação da música, para que ela rompa muros, penetre pelas gretas das portas e tire o sono dos “pobres mortais” que acham que o travesseiro é o melhor dos companheiros de luta, mudo e maleável. Durmamos com as pedras, as do caminho e as que nos atiram, como bem lembra Drummond e Cora Coralina.

E de onde vem esta sonoridade? Esta música que arrepia o que nos é mais profundo, tal como observou o poeta Valéry, a misteriosa e sedutora pele: campo externo das profundezas e dos meandros do corpo. E é esta a proposta de Deleuze quando nos oferece a lupa para se varrer os micrômetros de queratina que nos cobrem de ponta a ponta do corpo: é a filosofia que vê a pele, que sente na pele, que não deixam de nos representar pelos meios,  que nos marcam em cicatrizes não nossas origens, mas nossa constante mudança, descamativa e invisível aos olhos mais galopantes.

E a pele não só registra, mas também traz o toque como a experiência primeira. A pele é crítica: arrepia, sangra, se engruvinha, fica azul quanto asfixiada. Não pode ser interpretada, nem as linhas das mãos são tão vagas mensagens de futuro, nem a cicatriz umbilical marca início ou começo. A pele é notadamente a corpórea vivacidade da dobra: as digitais, as rugas, as cicatrizes. Ela não É, ela CONTÉM.

A lição da pele, da crise e dos cancioneiros podem sinergicamente retratar a indignidade de falar pelos outros, como bem divulgaram Deleuze e Foucault. Não é tarefa do intelectual ser o universal, apontar as origens e as “verdades”. Talvez a figura do intelectual seja apenas uma “das vistas de um ponto”, a “fala da competência”, tal como fazem os físicos quando explicam os riscos das armas nucleares ou os médicos quando descrevem a fisiopatologia do câncer de mama. Contudo, sobretudo a esses últimos, “não há direito de falar em nome dos doentes”, bem como não são por isso encarregados de abandonar a necessidade de “falar como médicos sobre problemas sociais, políticos, jurídicos, industriais e ecológicos” (1). Somos compelidos, seja por intermédio de pronunciamentos, resenhas ou scraps do facebook a falar em nosso próprio nome!

Tal processo de nomeação, embriologicamente crítico, nos convida a “nomear as potências impessoais, físicas e mentais que enfrentamos e combatemos quanto tentamos atingir um objetivo, e só tomamos consciência do objetivo em meio ao combate” (1). Ou seja, fica claro que falar por seu próprio nome (e deixar que os outros façam o mesmo) é termos consciência de nosso Ser político!

E este ser político é capaz de criar sua obra de arte, sua “estética da existência”. E para isso, é tão importante entender que Foucault ao discutir o saber, busca entender as condições de possibilidade das forças e quando passa a estudar o poder, quer entender melhor a relação dessas forças com relações as demais, suas “duplas”. E finalmente, seu interesse pelo sujeito repousa na capacidade inegável das forças não só interagirem entre si, mas ter um estado de rotação, ou seja, de dobrar em si mesma, de criar relações de força não só com outras, mas consigo mesma, o ato de dar cambalhotas! E é nesta última abordagem que se pode ser mais criativo: cabe ao sujeito de voz própria inventar modos de existência e viver sua vida como “uma obra de arte”. Viver numa casebre diuturnamente visitado por rajadas de vento e abalos sísmicos, mas contudo, continuando a usufruir da brisa do mar e do por do sol vermelho-ouro.

Essas forças que constroem nossa “obra de arte”, nosso canto ou nos mantem em crise são nada mais nada menos que as “forças dos afetos” (3), tendo como afetos a concepção de Spinoza, que  conceitua o afeto ou pathema (paixão) do ânimo, como uma “ideia confusa, pela qual a mente afirma a força de existir, maior ou menor do que antes, de seu corpo ou de uma parte dele, ideia pela qual, se presente, a própria mente é determinada a pensar uma coisa em vez de outra” (3).

Portanto, quando se acredita na potência desses encontros, da força dos afetos, que por mais que nos garantam um estado de “servidão”, não deixam de nos impulsionar a viver uma vida não-fascista, que tenta a duras penas rachar palavras, muros, instituições para que palavras não calem multidões, ou mesmo que, vozes abafadas tenham amplificação e espaço de ressonância, zonas de perturbação. E retornamos à crise, que em si é a criatividade mas também fuga da estagnação, da “conduta mantida”, da delicadeza da experiência vital com o imponderável, a dobra entre a vida e a morte que o risco quer divorciar sem divisão de bens.

Referências:

1) In: DELEUZE, G 2000. Conversação. São Paulo: Editora 34 – Rachas as coisas, rachar as palavras, p. 105-117.

2) In: DELEUZE, G 2000. Conversação. São Paulo: Editora 34 – A vida como obra de arte, p. 118-126

3) SPINOZA, B 2010. Ethica – Edição Bilingue Latim-Português. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte. Editora Autêntica. 3ª Edição.