“Olha, eu tenho uma resistência a falar sobre estes assuntos de sexo, penetração, pênis, porque eu já fico achando que você vai me encaixar numa teoria. Eu não estudei psicanálise, mas sempre ouço falarem da inveja do pênis, e tal; eu quero falar, mas não quero que você me encaixe numa teoria.”
(Maria Rita Kehl, Deslocamentos do Feminino, 2008).
Freud deparou-se com diversos impasses teóricos ao querer definir a mulher. Suas postulações teóricas sofreram influências da cultura vigente da época, na qual, o lugar destinado a mulher, era da ordem do privado (NUNES, 2000). Mesmo tendo influências culturais em seus Estudos sobre a Histeria, o pai da psicanálise propiciou um lugar de escuta à mulher, permitindo assim que a mesma tivesse voz e desse sentido ao que estava por completo domínio do controle social que demarcava lugares distintos ao homem e a mulher.
A cultura se organiza em torno de vários ideais esperando-se do homem coerência de acordo com o ideal da cultura vigente. Toda manifestação humana é cultura – Família, Estado e Sociedade são os grupos nos quais o homem aloja-se (SANTOS, 1983). Tratando-se de nós, humanos, seres de afeto, o sujeito traça suas relações definindo seus lugares a partir das exigências da sociedade (ex: raça, sexualidade, valores, conduta etc.). Assim nos apropriamos de Foucault (1979), para enfatizar a predominância existente no corpo social, das relações de poder que normatizam e referenciam os discursos perpassados socialmente.[…] em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso (p.179).
O problema do homem com relação à sociedade é totalmente subjetivo. O ser humano achava que a civilização traria a felicidade, proteção. Mas é justamente na sociedade que o sofrimento se desencadeia, pois o grupo e as leis estabelecidas pedem que renunciemos as nossas pulsões, renunciando a nossos desejos. O princípio da racionalidade faz com que o sujeito esteja sobre o governo administrativo, econômico e estético e coube a cultura nos retirar do lugar de animais irracionais e nos posicionar de forma precisa, uma vez que a cultura é quem outorga a precisão, os papéis a serem exercidos na sociedade. Sendo assim, os papéis exercidos socialmente podem nos reconciliar com os limites internos existentes, aceitos ou não pelas normas e ideais estabelecidos (FREUD, 1930).
A cultura é imprescindível, pois é através dela que discursos circulam e permanecem nas sociedades atravessando gerações e fazendo-se parte constituinte de um grupo de pessoas (SANTOS, 1983). A cultura cria em nós o sentimento de culpa que fazem de nós seres humanos. Sendo assim, o aparelho psíquico é decorrente da mesma, nos ajuda a viver restringindo nossos desejos e a vida só é possível enquanto uma vivência cultural.
Questões que caracterizavam a época na qual foi concebida a psicanálise se diferenciam das configurações atuais. Mudanças ocorreram ao longo dos anos, direcionando a desconstrução total ou parcial de modos de ser e posicionar-se frente aos ditames sociais. A história dos atores sociais tomou novos percursos com o desenvolvimento industrial e com o avanço tecnológico permitindo a mulher o início de sua trajetória rumo à independência. Invenções como a pílula anticoncepcional, fecundação in vitro possibilitaram a mulher o controle sobre seu corpo.
À medida em que a sociedade industrial triunfa, ela promove a dissolução de sua moralidade familiar, dos destinos vinculados aos posicionamentos estanques de gênero, aos tabus relacionados à sexualidade e até mesmo à crescente reunificação da domesticidade e do trabalho remunerado (SPINK, 1999, p. 10).
Desde o momento em que nascemos, somos inscritos pela marca da diferenciação sexual carregada de significações imaginárias e marcadas por determinadas posições na ordem simbólica devido às formações de linguagem. Não há possibilidade de escolhas. Seremos meninos ou meninas acolhidos pela mínima diferença sexual de nossos corpos e é com essa diferença que teremos de nos haver para enunciarmos nossa presença no mundo e nossa inscrição enquanto sujeitos de desejo, constituídos pela linguagem passada por nossos pais através da cultura (KEHL, 2008).
O destino do homem é traçado pela busca do objeto perdido na castração, a posse da mãe, seu primeiro objeto de amor. Mas esse objeto nunca será completo, a estrutura do ego se dá pelo manejo dessa perda. A falta é a força motriz do ser humano. É a falta que mobiliza o seu jeito para se reaver com o objeto que o impulsiona a avançar em seus ideais. A angústia vivenciada pelo sujeito é porque perdeu algo, algo que busca na civilização. E não encontra, pois não existe. Contudo, é através da procura que o sujeito encontra a satisfação pela sublimação do objeto, pois, já que não encontra o objeto fica então com o objeto substituto, satisfazendo-se parcialmente (FREUD, 1930).
A função do pai é central na questão edípica, pondo-se em vista, que o Inconsciente nos revela o Complexo de Édipo através de desejos recalcados, desejos primordiais e sempre presentes na história subjetiva do sujeito. Na infância os desejos precisam ser reprimidos diante do exercício provido da lei, processo esse, realizado pela função paterna que cinde a relação simbiótica mãe-bêbe e proporciona um movimento psíquico complexo e persistente na trajetória de vida do indivíduo. Segundo a psicanálise, fatores das experiências infantis repercutem ao longo da vida do sujeito sendo favoráveis ou não a suas vivências subjetivas consigo e com o outro. Outro que sempre estará presente, na medida em que lidar com o eu é se deparar com o que o outro espera do meu eu. Consecutivamente, lidar com o outro é relacionar-se com o que espero do meu eu. Processo contínuo do exercício psíquico em uma atuação cíclica.
Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder (FOUCAULT, 1979, p. 180).
A compreensão das ordenações psíquicas foi proporcionada pelo arcabouço teórico construído por Freud através do entendimento da histeria. Apesar de não ter inventado o modelo de histeria foi Freud quem operou sobre o modelo sensíveis transformações, e assim, foi capaz de acolher as novas questões da cultura de sua época, as quais eram trazidas a ele pelos tipos clínicos prevalentes (mulheres insatisfeitas, que buscavam compreender melhor sua singularidade). Assim, podemos dizer referenciados por Pinheiro (2003), que as postulações da metapsicologia freudiana tem sua base no modelo feminino da histeria.
O processo de subjetivação da mulher passou a ser tema de problematização na psicanálise desde a construção fálico-édipica. Indagações de Freud em sua clínica que tiveram como arcabouço teórico as histéricas permitiram a concepção da psicanálise. A literatura e as diversas manifestações artísticas dão voz ao artista sem que o mesmo precise pronunciar uma palavra, pois sua expressão artística fala do mais puro que há em seu interior, a arte em sua diversidade dá lugar a voz do inconsciente. Voz que Freud proporcionou as mulheres de sua época ao estudar as histéricas. Que se expressavam por palavras escritas e endereçadas ao sigilo de seus diários, que eram como depositário de angústias utilizado pela mulher que não tinha usufruto da livre expressão. Seu falar estava outorgado a ditames sociais dirigidos ao espaço privado e ao controle político do sujeito-mulher que não podia ir contra à representação de poder da época- o homem.
Coforme Kehl (2008),
A histeria é a ‘salvação das mulheres’ justamente porque é a expressão (possível) da experiência das mulheres, em um período em que os ideais tradicionais de feminilidade (ideais produzidos a partir das necessidades da nova ordem familiar burguesa) entraram em profundo desacordo com as recentes aspirações de algumas dessas mulheres enquanto sujeitos (p.182).
Freud não só escutou a histérica como também a leu, pois foi a partir de uma histérica que se iniciou a associação livre e houve a articulação de saberes. A mulher passa a ser inscrita na psicanálise, passando a ser re/pensada não apenas no viés daquela inscrita na falta fálica, mas a partir dos construtos que envolvem o desenvolvimento da menina em mulher e passaram a ser articulados de modo que o feminino pudesse adentrar no contexto social.
Em 1931, Sigmund Freud apresentou seus estudos subsequentes da sexualidade feminina, a qual é recoberta por uma série de indagações teóricas, por não haver algo que a defina com a precisão necessária para o campo científico como é visto no caso da sexualidade masculina. As lacunas existentes no estudo a respeito da mulher podem ser referentes ao investimento teórico-metodológico, aos inúmeros trabalhos realizados com foco no sujeito masculino e ao descaso com o feminino deixando-o fixado ao espaço privado, como sendo o único lugar por direito e dever da mulher.
A complexidade no desenvolvimento da sexualidade feminina é compreendida pelo fato de que a menina terá que abandonar o clitóris, sua principal zona genital, pela vagina, onde o abandono se faz necessário pelo vínculo que há entre pênis e clitóris (pênis defeituoso). Consecutivamente, a troca de objeto original também é realizada e a mãe é substituída pelo pai. Os vínculos mútuos dessas tarefas ainda não estão claros (FREUD, 1931).
Segundo Freud (1931), os efeitos do complexo de castração na mulher são diferentes dos efeitos nos homens. Ela se reconhece como inferior ao homem por ser castrada, e assim, coloca o homem numa posição de superioridade. Três linhas de desenvolvimentos são decorrentes dos efeitos provocados pelo complexo de castração: na primeira a atividade fálica e sua sexualidade são abandonadas, na segunda se detém a esperança de em alguma ocasião conseguir um pênis e na última, caso seja a linha seguida, será atingida a atitude feminina normal na qual o pai é tomado por objeto no lugar de seu objeto original- a mãe, dando início ao complexo de Édipo feminino, que é resultado de um processo bastante demorado e de modo algum superado pela mulher.
Há muito tempo, por exemplo, observamos que muitas mulheres que escolheram o marido conforme o modelo do pai, ou o colocaram em lugar do pai, não obstante repetem para ele, em sua vida conjugal, seus maus relacionamentos com as mães (FREUD, 1931, p. 239).
Em 1924, pela primeira vez, Freud inicia a identificação da diferença no curso do desenvolvimento da sexualidade em meninos e meninas. A identificação das diferenças permitiu a produção de seus artigos direcionados ao feminino: A Sexualidade Feminina (1931) e Feminilidade (1933). Freud deparou-se com dificuldades ao falar de mulher já que seu referencial era o masculino. Concordando com Kehl (2008), situamos que: “[…] para o criador da psicanálise as mulheres permaneceram atadas a este ‘estado de natureza’ pela força das representações das funções reprodutivas do corpo materno […]”. Em contrapartida, a esperança de ser promovido ao estatuto de “seres da razão” é oferecido ao homem pela psicanálise. O modelo fálico-edípico reverberou as concepções de masculino e feminino, proporcionando reformulações importantes relativas às subjetividades masculinas e femininas (CAVALCANTI, 2009), permitindo assim, a mulher adentrar a um novo espaço de compreensão na psicanálise.
Mesmo com o passar dos tempos, ainda é possível observar dificuldades na conquista de um posicionamento sexual na atualidade, as mudanças passaram a ser decorrentes do revolucionário movimento feminista que veio possibilitar o início do apagamento das diferenças sexuais até então vigentes, deslocando a mulher da posição social a qual estava submetida na época em questão. (PINHEIRO, 2003).
Em seu texto Feminilidade (1933), Freud afirma que através da história o enigma da natureza feminina tem feito pessoas quebrarem a cabeça, concluindo que o que constitui a masculinidade e a feminilidade foge ao alcance da anatomia, pois aquilo que lhes é constituinte é uma característica desconhecida. “No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar de pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica.” (p.128) O autor pontua que o desejo do pênis é por excelência um desejo feminino.
Por enquanto, quero chamar a atenção para a inexistência, na cultura em que Freud viveu, de um lugar social para a fala e a produção discursiva de algumas mulheres não suficientemente identificadas com os “ideais de feminilidade” de seu tempo (KEHL, 2008, p.256).
Freud em seus textos não levou em conta o lugar ocupado pela mulher na cultura em que vivia ou sugeriu a restrição ao espaço doméstico e suas extensões, onde em função das limitações da referida “natureza feminina” seria o espaço doméstico o seu “habitat natural”. O discurso sobre as características da mulher na teoria freudiana fundamentam-se na concepção de uma natureza feminina determinada totalmente pelo corpo, ou seja, pelos órgãos genitais da mulher, hipoteticamente impossíveis de simbolização (KEHL, 2008).
Para Freud, existe uma disposição bissexual na mulher já que a mesma, diferente do homem que carrega consigo um único órgão genital, a mulher obtém dois: um análogo ao masculino, o clitóris e o feminino, a vagina. Derivam desse ponto as diferenças do desenvolvimento sexual, pois a mulher no primeiro momento sentiria prazer pelo clitóris, posição masculina, e, no segundo momento o prazer seria sentido pela vagina, endossando à mulher a posição feminina, já que o prazer foi deslocado do órgão tido como ativo para o passivo. Assinalado por Freud (1933) a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher, mas indaga como se dá o desenvolvimento da criança provida da disposição bissexual em mulher. Porquanto, descrever o que é a mulher trata-se de uma tarefa difícil de cumprir.
Há pelo menos dois aspectos, porém, que poderíamos considerar intrigantes, os quais Freud não consegue explicar. Inicialmente seria o fato de que na época apareceram muitos relatos de mulheres que possuíam impulsos vaginais desde a primeira infância, diferentemente do que pensava o autor, pois este acreditava que tais impulsos somente aconteceriam na puberdade. Além disso, chamava atenção o fato de que muitas mulheres ainda na idade adulta continuavam sentindo prazer pelo clitóris, fato que ele confessa não conseguir compreender (CAVALCANTI, 2009, p. 99).
O deslocamento de zona erógena da mulher, pontuado por Freud, enfatizava o exercício do papel social da mulher. “Para tanto, o orgasmo vaginal e a sexualidade passiva se adequavam como uma luva aos ditames da maternidade.” (CAVALCANTI, 2009, p. 99). E dessa maneira, a expectativa dirigida à função da mulher de sua época era atendida.
Mais adiante em seu texto de 1933, Freud atribui algumas características femininas que viabilizam a manutenção do casamento e do lar como sendo próprias das mulheres. “Um casamento não se torna seguro enquanto a esposa não conseguir tornar seu marido também seu filho, e agir com relação a ele como mãe” (p. 132-133). Salientando que, grandes números de mulheres mesmo em idade madura continuam dependentes de um objeto paterno, ou propriamente do pai real. A ambivalência vivenciada na fase edípica é de suma importância para as escolhas realizadas pelas mulheres na fase adulta e para a permanência nessas decisões mesmo estando as mesmas fadadas ao fracasso (FREUD, 1933).
Enfim, pelas diferentes configurações da inibição sexual, da histeria e da virilização, as mulheres estariam inscritas nos campos da anomalia e até mesmo da franca patologia libidinal, afastando-se decididamente do encontro com a plena feminilidade, que apenas se daria com a assunção da maternidade (CAVALCANTI, 2009, apud, BIRMAN, 2001, p.25).
O fato do pênis se destacar como suporte corporal para encarnar a função do falo, dá ocorrência à diferenciação produzida pelos efeitos simbólicos na menina e no menino. Na própria teorização da sexualidade construída por Freud a constituição sexual se dá a nível simbólico e não biológico. (PINHEIRO, 2003). Segundo Birman (1999) a crença maior da arrogância masculina em relação às mulheres é acreditar ser portador de um poder superior pelo fato de obter o pênis como atributo do falo. Contudo, não ter o pênis como atributo do falo seria a fonte proverbial de sua inveja, sendo o signo maior da inferioridade das mulheres.
O repúdio dos homens e das mulheres diante da feminilidade vem testemunhar a perda dos emblemas fálicos e narcísicos, pois esta experiência, que se apresenta além da regulação do falo, implica justamente a suspensão do autocentramento da subjetividade, sustentado pelo referencial fálico, onde os homens e as mulheres se protegeriam dessa experiência de inquietação face à sua fragilidade e incompletude (NÉRI, 2005, p.220).
Ao finalizar o texto de 1933, Freud menciona que descreveu as mulheres na medida em que sua natureza é determinada por sua função sexual e que suas contribuições estão fragmentadas e incompletas, deixando claro que cabe ao leitor aguardar até que a ciência possa dar informações mais profundas e coerentes. Mais coerentes por sua contradição ao descrever a mulher tomada pela referencia de sua função sexual de procriar, onde anteriormente, conclui que o que constitui masculinidade e feminilidade foge ao alcance da anatomia. Portanto, cabe salientar que a feminilidade é alcançada pela mulher como enfatiza o próprio autor, quando o deslocamento de zona erógena é realizado do clitóris para a vagina. (FREUD, 1931).
Neste texto, podemos observar alguns pontos que localizam a mulher na teoria freudiana, bem como a construção de feminino para Freud. A importância da cultura foi essencial por a mesma demarcar o lugar a ser ocupado pela mulher, de maneira que ao ser construído o conceito da teoria referente à sexualidade feminina sistematicamente a cultura da época esteve presente diretamente e indiretamente em seus efeitos no modo de ver e compreender a mulher e no discurso vinculado ao feminino.