Parágrafo único: O homem confiará no homem, como um menino confia em outro menino. Thiago Mello – Estatuto do Homem (Ato Institucional Permanente), Santiago do Chile, abril de 1964.
É muito fácil falar em humanização, também é comum conceber o conceito de Humanização da Política Nacional de Humanização (PNH) partindo da visão culturalmente difundida em acordos mudos de nossa sociedade sobre o que é “ser” homem em nosso tempo.
Dada a breve história de vida da PNH (dez anos), ao falarmos de humanização, a primeira visão que temos é a de que – acredito não ser essa uma visão restrita apenas do senso comum1, mas também à academia – precisamos, enquanto técnicos, fazer o bem aos usuários dos serviços de saúde. Sob essa ótica, a concepção popularmente difundida de humanizar é: não desrespeitar, não ignorar, não negar, não punir, não agredir, não magoar, e todos os outros nãos que se pode imaginar.
Culturalmente, estamos acostumados ao “Não”, por medo da punição. Na academia, o médico aprende que não pode praticar eutanásia para não ir preso, o psicólogo a não revelar o sigilo do cliente para não perder seu diploma, o enfermeiro a não receitar um medicamento, fora os que são preconizados pelo Ministério da Saúde, pelo processo legal, etc. É incomum ver o contrário: um ensino pautado no amor – digo de amor porque sou otimista, e prefiro acreditar na possiblidade de mudança, sempre – no bem, na filantropia, no altruísmo, e ainda assim, quando praticamos tais ações visamos a aprovação da plateia, muito mais que a satisfação do ato.
O status “Co” – comum, comunitário, conjunto e compartilhado – sempre foi idealizado como habilidade necessária e almejada pelos cidadãos em nossa cultura. O que é um ideal, senão algo que nunca poderá ser alcançado? Mas será mesmo? Para além do reducionismo do termo, eu acredito na potencialidade das possibilidades. E se algo existe é por que ele é real, talvez bem mais do que ideal.
E foi assim que nasceu a PNH. Há menos de trinta anos atrás, quem ouviria falar em participação popular, cogestão, e interface de um programa de melhoria do sistema de saúde com demais programas do governo? De 1964 até 1988 não se ouviria falar na efetivação de uma Política Nacional de Humanização, muito menos em um Sistema Único de Saúde.
São coisas tão novas, tão utópicas e ao mesmo tempo tão reais. O que era sonho, hoje é palpável e agora está ao alcance de todos, porque ele é de todos e para todos. A PNH não é Humanizada porque se pauta na Transversalidade, na Indissociabilidade entre atenção e gestão e no protagonismo, na corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos coletivos. A PNH é humanizada porque é feita por homens e para os homens. Em seu modelo, que só é possível mediante uma prática, é a práxis da comunidade casada com a academia, mais o corpo técnico de profissionais da saúde inseridos que nos é o que garante essa tal humanização.
O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro (BOFF, 1999, p.33).
Se rompermos com a visão mecanicista, cartesiana e reducionista de um homem concebido apenas a partir de fatores biológicos, psicológicos e sociais, que também sofre uma influência direta da cultura na qual estão imersos, chegaremos ao campo das possibilidades.
O campo das possibilidades está para além do reducionismo, buscando o extremo contrário: a ressignificação – respeitando o que precisa ou não ser mudado, o que precisa ou não ser significado – sempre considerando as potencialidades particulares e coletivas. Seria utópico dizer que isso nasce da noite para o dia. Se a PNH nasceu, foi porque se percebeu que práticas como o acolhimento, a gestão participativa, a ambiência, a clínica ampliada e a defesa dos direitos do usuário eram práticas que já vinham acontecendo e davam certo. Nessa lógica, se antes do conceito vem a ação, devemos ter claro que antes da humanização sempre vem o homem.
Referências:
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
Nota:
1 – Em momento algum pretendeu-se desmerecer o saber produzido pelo senso comum. Do contrário, de minha parte ele é respeitado e até mesmo incentivado, como um dos vários meios de se produzir conhecimento.