A importância das lendas para a formação sociocultural

A história é a verdade que se deforma, a lenda é a falsidade que se encarna – Jean Cocteau

Curupira, o grande protetor das florestas; Fonte: Imagem de Alieide por Pixabay.

Desde que o mundo é mundo compartilhamos inúmeras histórias, advindas de vários povos cada um em seu canto, e essas histórias perpassam as pessoas, fazendo delas o que são; a história de cada povo, sua cor, sua linguagem, suas crenças e valores, o que comem, suas vestimentas, suas preferências musicais, suas expressões artísticas, como se manifestam no amor, na guerra ou na dor. Isto tudo nos faze únicos e diversos em nossas culturas e o que comumente chamamos de diversidade cultural. Além destes elementos que são inúmeros, é esta dita diversidade que nos denomina. Ela pode dizer das diferenças, da pluralidade e da multiplicidade, ou seja, é a diferenciação dos indivíduos e de suas várias formas de ser no mundo.

Dentre os tipos mais importantes de diversidade, podemos destacar as étnicas, socioeconômicas, biológicas, cultural, religiosa e social. O Brasil é tido como destaque em diversidade étnica, somos uma grande explosão de indivíduos que fazem de nós uma variedade de povos, variedade esta pouco encontrada em outros lugares. Acompanhando nossas inúmeras diferenças de crenças, culturas e costumes, temos também um arcabouço enorme de folclore do nosso povo e que são de uma riqueza sem igual, são manifestadas através de histórias narradas (lendas), danças típicas, linguagens, superstições, catira, crenças, culinária, dentre outras.

E é sobre estas lendas que o texto tem intenção de dissertar, procurando levar ao leitor a importância que elas carregam, bem como a relevância de passarmos às gerações futuras o conhecimento das mesmas, pois esquecê-las, seria perder nossas memórias, nossas tradições e nossa identidade. Além disso, é uma forma rica de as crianças e ou/adultos, fazerem descobertas através da imaginação e ir construindo o seu nicho de realidade dentro das histórias. Estarmos inteirados do mundo que nos cerca de uma forma lúdica, também nos aproxima da construção do mundo real. O ato de imaginar nos possibilita criar formas onde no mais recôndito do nosso ser, floresça o melhor que há em nós.

Saci, o rei das travessuras; Fonte: Imagem de dinhochiz por Commons.wikimedia

Nossas lendas são histórias narradas que tem como propósito explicar eventos místicos e de onde eles surgiram, elas expressam nossos valores históricos, nos transportando para além da narrativa, causando em nossa imaginação o poder de estar naquele momento do acontecido. Os povos mudam, o tempo passa, mas nossas lendas permanecem (ou deveriam permanecer), e são passadas de pais para filhos, numa eterna e prazerosa reedição, passando assim como um telefone sem fio, com algumas mudanças aqui e ali, mas sem jamais perder a sua essência primeira, se tornando parte do enriquecimento de nossa cultura.

Clarice Lispector em sua riqueza literária faz os seguintes questionamentos:

Uma lenda é verossímil? Sim, porque assim o povo quer que seja. De pai para filho, de mãe para crianças, é transmitida uma fabulação de maravilhas que estão atrás da História. Como ao redor de uma fogueira em noite escura, conta-se em voz sussurrante um ao outro o que, se não aconteceu, poderia muito bem ter acontecido nesse imaginoso mundo de Deus. E assim oralmente se escreve uma literatura plena e suculenta, em que o espírito secreto de todo um povo vira criança e brinca e “faz de conta”. Brinca? Não, é muito a sério. Pois o que é que pode mais do que um sonho? (…) […]. As lendas são uma potência. Elas procuram nos transmitir alguma coisa importante que se passa na zona penumbrosa e criativa popular. E o que não existe passa a existir por força mesmo de seu encantatório enredo. Nos grandes centros culturais brasileiros, as lendas infelizmente se perdem, menosprezadas por uma civilização que luta pela vida real. (LISPECTOR, 2015, p. 3-4)

Sim, Clarice está certa, o povo quer que suas histórias tenham um total cunho de verdade, e tem. Quem nunca viu um redemoinho que surge do nada, arrastando papeis, terra e poeira em seu movimento em espiral, e pensou: Olha o Saci com suas brincadeiras; se nossa imaginação for fértil, podemos até vislumbrá-lo em meio ao espiral de poeira.

Para os que não têm conhecimento, o Saci Pererê é uma lenda que surgiu no Sul do Brasil, entre os índios Tupi-Guarani por volta do século XVIII. Trata-se de um menino negro de uma perna só, que faz arruaça por onde passa e não era um só, existiam mais versões do moleque, sendo elas: Saci-Cererê, Matimpererê, Matita Perê, Saci-Saçurá e Saci-Trique, todas as versões usavam um short vermelho e um gorro da mesma cor. Após sua morte, ele virava um cogumelo venenoso.

O Saci ganhou grande fama ao ser agraciado pela escrita de Monteiro Lobato, dando-lhe visibilidade no mundo inteiro. Além de tudo isto ele tem seu próprio dia, 31 de outubro. A data é fruto do Projeto de Lei Federal n.º 2.479, que foi elaborado pela Comissão de Educação e Cultura, em novembro de 2013, pelo deputado federal Chico Alencar e pela vereadora Ângela Guadagnin. A intenção é a valorização de nossa cultura e se justifica da seguinte forma,

Entendemos que a comemoração anual do “Dia do Saci” permitirá um contato sistemático com a variedade e a beleza das tradições do País, de modo a fortalecer o processo de consolidação da identidade nacional bem como a autoestima do povo brasileiro. (Projeto de Lei Federal n.º 2.479, 2013.).

Podemos através deste projeto de lei vislumbrar a importância que nossas raízes tem para todos nós, e o quanto precisamos, todos, resgatar essa fonte inesgotável de criatividade, do fazer refletir acerca de nossos valores e tradições. Repassar essas tradições é uma forma de perpetuar nossa cultura. É isso que continuaremos a fazer por este mágico passeio pelas lendas e entendê-las um pouco mais.

Em algum momento vocês já vislumbraram um moço bonito saindo de um rio a noite (pois sim, o Boto tem hábitos noturnos), e pensaram, que quem sabe aquele maroto garoto, poderia ser um boto disfarçado de moço, que saiu para encantar alguma bela donzela? O Boto é tido na lenda como um vilão, pois sua magia encanta as jovens que se entregam a ele, e ele as abandona. Dizem as más línguas, que as mães solteiras foram visitadas pelo Boto. Esta lenda tem origem no Norte do Brasil.

Boto em forma humana seduzindo uma bela donzela; Fonte: Imagem de Gordon Johnson por Pixabay

Há um canto sereno e profundo que encanta os pescadores, quem conhece sabe que é de Iara, a linda moça das águas que seduz e leva os homens para o fundo do rio. Esta moça é de rara beleza, metade mulher e metade peixe, é rica, linda e dona de uma voz encantadora. Por ser muito bonita, seus irmãos tinham inveja dela e a tentaram matar, mas ao contrário disso, ela que matou seus irmãos; como castigo seu pai a jogou no rio negro, e os peixes a salvaram e ela se transformou em sereia. Apesar de ser grandemente propagada por todos nós, esta lenda tem origem europeia, e foi espalhada entre nós através dos índios, que a tem como a mãe d’água.

Iara atraindo os navegantes com seu canto; Fonte: Sergei Tokmakov, Esq. https://Terms.Law

E para não perdermos o fio da meada, que moça não teria medo de encantar-se por um lindo padre (Hoje em dia temos uns belíssimos) e virar uma mula sem cabeça, em alguns casos será que valeria o risco? Na lenda reza que a moça que se encantava por um padre e acabava cedendo aos desejos carnais, fatalmente virava uma mula sem cabeça e saía louca e desvairada agredindo a quem passasse. O padre? Não, ele não era castigado, diziam que o castigo deles seria no plano divino. Acredita-se que esta lenda era contada como um sossega leão para as moçoilas mais afoitas, tipo um reforço para a prevalência dos “costumes morais”.

Invariavelmente as mães cantam para seus bebês dormirem, apesar do carinho na voz, soa como uma ameaça: Dorme neném que a Cuca vem pegar. Quase todas as crianças têm certa intimidade com a Cuca, com o boi da cara preta, o bicho-papão, o Tutu marambá. Deste jeito de carinho em forma de monstros imaginários as crianças foram cristalizando em si, as histórias de nosso povo. São tantas as manifestações culturais em forma de lendas que elas se tornam primordiais no resgate de nossas raízes a fim de tornar robusta nossa identidade. É necessário e urgente falar, contar, incentivar nossas crianças no contato com este acervo riquíssimo, para não incorrermos no risco de perdermos nossa origem cultural, como salienta Clarice no final de sua citação, seria um prejuízo enorme, seria o fim do diálogo com nossa ancestralidade. Segundo Roque Laraia (2001), antropólogo, “A cultura é uma lente através da qual a gente vê o mundo”.

Seria interessante que o folclore fosse uma matéria obrigatória para nossas crianças, com o intuito do desenvolvimento de espírito de nacionalidade, de pertencimento, uma maneira de descobrir-se como alguém dentro do universo, mais que isso, um cidadão do mundo, um conhecedor de suas raízes, identificando-se dentro de seu grupo, dentro de sua comunidade. Além do respeito às diversidades, o que indubitavelmente o faria um cidadão cônscio de seus direitos e deveres, um cidadão empático, tolerante e acima de tudo, respeitando a si mesmo e as pessoas que o cerca. Convido-os a saber mais sobre os personagens que não me aprofundei em suas histórias. Vale a pena passear por este mundo místico e encantado, sempre é tempo de libertarmos esta criança que existe dentro de todos nós. Permita-se.

Podemos começar assim: Era uma vez…Quanta imaginação cabe nesta simples frase, através dela podemos criar o que quisermos, deixar fluir nossa criatividade e revisitar todas estas histórias; e replicá-las aos nossos pequenos, para que eles não percam a magia e dentro dela se faça tão repleto de beleza, que sinta a necessidade de replicar e replicar, sem que nunca se perca essa linda forma de perpetuar nossos contos.

Era uma vez um gato xadrez que pelo simples fato de ler, de uma só vez levou cultura para mais de três. Seja como o gato Xadrez, replique de forma que as histórias se instalem de vez, porque alguns autores assim como Clarice, vê as lendas se extinguindo e junto a elas lá se vão nossas raízes, e nosso imaginário ficando mais pobre dia a dia. Replique.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Andréa. 2019. Personagem folclórico que vive na floresta. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/artes/saci-perere. Acesso em10/02/2023

BEZERRA, Juliana. 2011. Cantigas de ninar – Folclore. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/cantigas-de-ninar/. Acesso em 10/02/2023

SILVA, Santos Dias Filipe.2021. MANIFESTAÇÕES CULTURAIS POPULARES. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/602304/2/eBook_Manifestacoes_Culturais_Populares.pdf. Acesso em 10/02/2023

SILVA, N. Daniel. Boto-cor-de-rosa. (s.d.) Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/folclore/boto-corderosa.htm#:~:text=Trata%2Dse%20de%20um%20cet%C3%A1ceo,%C3%A0s%20festas%20para%20seduzir%20mulheres.. Acesso em 15/02/2023

WANDERLEY, Araújo Naelza. 2021. “Os adultos como eu, também criam lendas”: Clarice Lispector. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/116725. https://doi.org/10.22456/1981-4526.116725. Acesso em 08/02/2023