O texto Fédon é um dos marcos em que a “oposição complementar” dos filósofos pré-socráticos é veementemente contestada por Sócrates/Platão. Nesta obra, marcada por traços de refutação, há um passo importante na mudança de eixo do objetivo de investigação filosófica, que vai do cosmológico (ainda com forte influência do mitológico, e com todo o pluralismo que o compõe) para o ontológico (já com vistas ao antropológico).
Sócrates, lançando mão do típico método de investigação, que utiliza o diálogo como forma de “forçar” uma reflexão e (re)descoberta por parte do interlocutor, conduz para algo que até então não havia sido levantado pelos filósofos: a apresentação de um ponto de partida que remete à unidade, do qual todas as questões podem ser levantadas, e para o qual, com as devidas proporções, toda a estrutura cosmológica passaria a fazer sentido. Nesta tentativa, estabelece-se o conceito de espírito, esse suprassumo associado à razão e que, por si só, define esta “unidade” sob a qual os demais processos de busca poderiam se ancorar.
Além disso, em Fédon, há a possibilidade de expandir esse conceito de “ser que transcende” a todas as coisas, criando-se assim a ideia de causa universal, que abarca também as circunstâncias que desencadeiam os fenômenos. Certamente, há nesta explicação uma posição que destoa sobremaneira dos pré-socráticos, com ênfase nos estoicos – e também uma rejeição dos sofistas -, pois “enterra” a possibilidade de haver uma inter-relação de condições que se sobrepõem (relativismo) e que, assim, resultariam nos fenômenos. O espírito, aqui como a concretização da ordem de tudo o que existe, já seria o centro de tais indagações.
Mais à frente com Schopenhauer e Nietzsche, esse legado de relativismo dos pré-socráticos é “ressuscitado”, quando se leva em conta que a busca da unidade distorce a verdadeira natureza do ser, que seria multifacetada ou, no mínimo, a expressão das características de Apolo (ordem) e de Dionísio (caos), cabendo ao homem/mulher encontrar na mediação desses extremos (inevitáveis e necessários, para Nietzsche) uma maneira adequada de lidar com as demandas.
Voltando a Fédon, há de se destacar a ideia de que, se levada ao cabo o relativismo reinante nos sofistas, e também em algumas assertivas estóicas, seria impossível (para Sócrates) obter um conhecimento seguro. A dúvida nutrida de questionamentos, neste caso, não deveria ser utilizada incessantemente, sem um objetivo claro. Antes, portanto, deveria ter como meta a busca da certeza. Isso seria uma espécie de “natureza última” do ser, que também é “una” e expressa o próprio cosmos.
Este ponto de vista acima volta a ser questionado mais recentemente pelos existencialistas, ao apontarem que a “certeza” descansa sob bases maleáveis, mutáveis e que, portanto, altera a percepção na mesma medida em que o questionador (o ser) também muda sua construção de “certo”. Há, aqui, um retorno ao “ser” como fruto de representações, e não como um espírito já dotado de certas características. Assim como em Schopenhauer, esta visão de mundo como representação, que precisa ser continuamente ponderado para que não haja distorções entre a “projeção” de “verdade” e o objeto/alvo a ser atingido, descarta a possibilidade de unidade defendida por Sócrates.
Mas Sócrates não via nenhuma contradição no conceito de unidade e, mais ainda, não via sequer a possibilidade de destruição conceitual desse tipo de construção. Isso porque, para o ateniense, o espírito detém características “supramundanas” e é dotado de movimento. Neste caso, há uma percepção de “ser” que se sobrepõe à observação/constatação dos aspectos do cotidiano, alguns estáticos, pois ele [este ser] ordenaria as causas e condições (e estaria além dos sentidos). Sendo assim, o espírito, por ele mesmo, já seria o suficiente para racionalizar a existência como ela verdadeiramente é.
Nas “Meditações” de Descartes (trecho de “Da Natureza do Espírito Humano”) há uma aproximação com os conceitos apresentados por Sócrates/Platão. O reconhecer a unidade como um ponto fixo que, a partir dele, todas as aferições seriam possíveis é um dos aspectos de maior convergência entre os filósofos.
Há em Descartes a introdução da dúvida metódica, sendo que assertivas oriundas da falta de questionamento são logo descartadas. Não se deve, no entanto, confundir essa dúvida metódica nem com o ceticismo extremado nem com o empirismo. Ou seja, em Descartes há de se preocupar em “filtrar” toda a gama de informações (e pré-concepções), descartando àquelas que se mostram duvidosas e reforçando as que não deixam “dúvidas”. Desta forma, o filósofo francês vê na auto-percepção (“Eu duvido, eu penso, eu sou, eu existo”) a única verdade totalmente desprovida da dúvida.
É obvio que conceitos como os apresentados na fenomenologia de Heidegger são, em certo aspecto, influenciados por Descartes. Há, neste contexto, a tentativa de identificar o ser como extensão do seu cotidiano, logo, além de ser pensante (e que efetivamente existe), há um ser “dissolvido” em suas relações, ideais diversos e papéis sociais. Um ser que, antes de tudo, “estar no mundo”. Esse ser “lançado no mundo” é ainda mais abrangente do que a própria percepção de “ser” como decorrência de um processo de (auto) questionamento (“Penso, logo existo!”).
Em Descartes, há a necessidade de se conhecer as “verdades absolutas”. Para tanto, a dúvida deve ser utilizada apenas temporalmente (veja que a ciência se utilizou muito desse método), podendo ser descartada em seguida, quando se acreditar atingir a verdade. Em Nietzsche, isso seria impossível, tendo em vista que a verdade é inacessível e, portanto, mesmo que se tenha contato com uma de suas partes [desta “verdade”], esta(s) não abrangeria(m) a totalidade.
Nas suas “Meditações”, Descartes chegou a conclusão que este ser que “pensa e, logo, existe”, está além da imaginação pura e simples. Assim, não necessariamente mantém-se “refém” dos sentidos, mesmo que a maioria das pessoas insista em reconhecer as impressões de mundo apenas pelos sentidos.
Há, em Descartes, uma clara divisão entre “mente” e “corpo”. Para a mente, caberia essencialmente o pensar. Já para o corpo, estava reservado o próprio ato de expressão do existir. Mas a mente estaria além do corpo e, neste contexto, apresenta-se com características supramundanas, semelhante ao conceito de espírito defendido em Fédon.
Percebe-se, indutivamente, uma abordagem que coloca a mente em posição de destaque frente ao corpo. Afinal, a mente teria qualidades perenes (movimento), já o corpo perece, morre… Além disso, se o homem é essencialmente pensante e a mente é diferente do corpo, pressupõe-se que o corpo seria apenas uma expressão dessa mente, que é essência e, logo, a “verdadeira” característica do ser.
As assertivas acima levam ao famoso “dualismo” de Descartes, que exerceu e ainda exerce grande influência no Ocidente, em que a substância corpórea (físico), apesar de complementar à substância espiritual, no fundo seria essencialmente diferente do imaterial.
Referências:
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Editora Edipro, 2011.
SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche – Biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
SIMMEL, Georg. Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
STRATHERN, Paul. Descartes em 90 minutos. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1997.