Ansiedades: uma abordagem junguiana arquetípica e social

Santina Rodrigues de Oliveira – santina.rodrigues.oliveira@gmail.com

Psicóloga e arteterapeuta junguiana (CRP 06/49.534-3). Mestre e Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisadora dos temas: arteterapia e processos imaginais; morte, luto, suicídios.

Classicamente, a ansiedade se apresenta como resposta a algum medo inconsciente do sujeito, sendo comum aos seres humanos e outros animais. Na atualidade, devido a aspectos multifatoriais, se apresenta indiscriminadamente em pessoas de todas as idades, de diferentes contextos e classes sociais. Seja como resposta a problemas concretos de sobrevivência – como ocorre com grande parte da população pressionada por dificuldades econômicas; seja como resposta a pressões por performance profissional e/ou estudantil -, o fato é que em conjunto com as depressões, as ansiedades ganharam caráter epidêmico, conforme dados e previsões da OMS para as próximas décadas.

Entretanto, embora se apresente individualmente, refletir sobre esse fenômeno nos tempos pós e/ou hipermodernos que vivemos nos obriga a contextualizar tal problema de saúde pública não apenas em termos psicológicos pessoais, mas também sócio-históricos, uma vez que o sofrimento humano indica conflitos e por vezes impossibilidades que ultrapassam vetores pessoais, biológicos e familiares, alcançando outros, ligados à sua inserção coletiva e cultural.

Desse modo, recorrendo a contribuições de alguns autores da sociologia e da psicologia social, como Byung-Chul Han (2015), Jurandir Freire Costa (1984; 1988), Ulrich Beck (2002; 2006), vemos que as influências políticas, econômicas e ideológicas neoliberais, que afloraram cada vez mais e de maneira a ultrapassar fronteiras a partir de uma quarta onda da globalização – associada à recente Revolução Técnico-Científico-Informacional que, a despeito das importantes contribuições para uma aproximação em diferentes âmbitos dos países em nível mundial -, influenciam decisivamente no desamparo e mal-estar social dos indivíduos contemporâneos. 

Tomemos uma das áreas mais significativas da vida social, o trabalho, por exemplo. Pressionados pelo imperativo da performance pessoal e profissional – pari-passu com a terceirização de direitos trabalhistas antes garantidos pelo Estado e por sindicatos -; e cada vez mais individualizados e “uberizados”, observamos o que Beck nomeia por “terceirização dos riscos sociais”, com efeitos diretos num processo de individualização que cobra um preço alto refletido na piora da saúde física e mental das pessoas. 

Fonte: Pixabay

Os efeitos da individualização contemporânea se refletem na produção de uma pluralidade de respostas impulsivas, regressivas, agressivas e/ou narcisistas do sujeito frente a tais imperativos culturais e econômicos de autorrealização. Em resposta, temos um estado de isolamento social e individualismo que pressiona as pessoas – especialmente em metrópoles, mas não apenas -, a buscarem formas variadas de descarga ou catarse por meio do uso de drogas lícitas e/ou ilícitas; além de “empreenderem” (para citar um verbo neoliberal sombrio) tentativas de autoafirmação egoica diante das demandas coletivas de performance a partir de investimentos maciços de tempo e energia em uma persona, notadamente gastos em redes sociais.

Feita essa análise do pano de fundo social, podemos dizer que ansiedades e depressões – em conjunto com outras formas de sofrimento intensos como a automutilação e tentativas de suicídio – podem ser entendidas como múltiplas facetas de um fenômeno coletivo que evidencia uma busca desenfreada e inflada do sujeito se autopromover numa selva competitiva, tornando-se incapaz de frear impulsos consumistas e/ou de lidar com frustrações, desamparo e fracasso numa sociedade que o incita intensamente à autossuperação e ao sucesso.

Ansioso, porém incapaz de fazer frente a tais pressões coletivas, o sujeito se refugia em ideais hiperestimados na tentativa de alcançar um estado de bem-estar que estaria garantido exclusivamente por seus próprios esforços, algo que na grande maioria dos casos –  especialmente em países como o Brasil e outros de terceiro mundo e/ou em desenvolvimento -, com frequência esbarra em limites que ultrapassam esforços pessoais, obrigando-o a encarar uma falência narcísica que desemboca em estados de ansiedade e de depressão de diferentes intensidades.

Junte-se a esse estado de coisas, a sensação subjetiva de fluidez que esvazia quase imediatamente as possibilidades de estabelecer laços interpessoais – decorrente da hiperconexão e hiperaceleração dos tempos atuais relacionadas às tecnologias da informação e da comunicação (TIC’s) –  especialmente após a pandemia, e temos um quadro de fundo macrossocial que precisa ser considerado na avaliação psicológica e no manejo psicoterapêutico do sofrimento dos indivíduos que chegam a ambulatórios e equipamentos de saúde pública, além de nossos consultórios de psicologia e psicoterapia.

Abordando o fenômeno agora pela lente da psicologia analítica, de C.G. Jung (1934/2001), resgatemos a formação do ego e sua tendência unilateral para tentar intermediar necessidades intra e interpsíquicas do sujeito e garantir sua sobrevivência física e psíquica. Este autor considera, entretanto, que tal tendência tende a ser compensada por outros complexos da personalidade, nos termos simbólicos de uma espécie de homeostase psíquica que visa regular os estados alterados de investimento da energia ou libido. Fundamental nesse processo seria a experiência simbólica vivida por meio de imagens que aparecem em sonhos, atos falhos, sintomas psicossomáticos e outros ligados a neuroses, psicoses e outros estados psicopatológicos.  Assim, ansiedades e depressões indicariam alterações importantes no quantum e no fluxo da energia psíquica, que para Jung seguem um parâmetro quantitativo (1928/1934). Dito de outro modo, havendo um investimento intenso da energia numa imagem idealizada associada à uma persona de sucesso, por exemplo, faltará aos demais complexos que formam a personalidade certa quantidade de energia para o sujeito vivenciar outras necessidades psíquicas da alma. 

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Considerando o cenário social atual, vemos que, pressionado por realizar e/ou manter tal exposição compulsiva de uma persona idealizada, muitas vezes, o ego torna-se refém de uma inflação psíquica que impede uma avaliação realista dos limites físicos, mentais e psíquicos do indivíduo, notadamente quando confrontado com obstáculos que se apresentam entre o sujeito e o ideal almejado, surgindo então estados de ansiedade e/ou de autodestruição para fazer frente a sentimentos potencialmente ameaçadores que guardam relação com sensações de vazio, angústia e medos intensos diante de cobranças implacáveis que por vezes levam à agressividade autodirigida.

Além disso, pressionado por conclusões precipitadas a partir de comparações superficiais com padrões observados principalmente nas redes sociais, o sujeito contemporâneo tende a perseguir o aumento dos níveis de expectativa progressivamente, forçando-se a alcançar objetivos cada vez mais altos. Em geral, passa a balizar suas necessidades e possibilidades de desenvolvimento pessoal e/ou profissional a partir de postagens exibicionistas de outras pessoas– notadamente influenciadores digitais ou pessoas próximas de seu ambiente pessoal, escolar e/ou profissional -, distanciando-se de uma avaliação mais direta e realista das condições de seu contexto individual, familiar e cultural/social.

Nos estados depressivos, por sua vez, veremos um estado de regressão da energia psíquica, que parece haver desaparecido no sistema psíquico, mas só aparentemente, como esclarece Jung. Possivelmente, a energia se encontra investida em fantasias de morte ou identificações com a imagem de vítima impotente diante das exigências de satisfação e realização narcisista do ego, intransponíveis ao sujeito que se encontra deprimido. Assim, se o ansioso é aquele que se lança impulsivamente em direção a objetivos múltiplos e infundados, correndo o risco de ser detido por um ataque de pânico quando ultrapassa os limites de autopreservação física e psíquica do ego, o sujeito que se encontra deprimido sente-se capturado por um sentimento de desvalia total, sendo incapaz de se identificar com qualquer ideal prospectivo. 

Nesse estado psíquico precário e vulnerável que mistura sentimentos ambivalentes e julgamentos extremos, por vezes a automutilação aparece, entre outras coisas, como tentativa de resgatar alguma conexão consigo mesmo e de obter algum alívio diante das pressões e/ou angustias experimentadas; também as ideações e tentativas suicidas, que por vezes surgem como fantasias de se libertar de uma situação em que se vê sem saída e sem energia para dar o primeiro passo em direção a qualquer possibilidade de reconexão com o mundo lá fora, pode, em algum momento de reversão ao oposto (enantiodromia) se constelar obsessivamente na mente e ser descarregada em atos impulsivos violentos.

Diante desse estado de coisas, devemos nos perguntar como nós psicoterapeutas e analistas junguianos respondemos aos tantos pacientes que nos chegam tomados por tais sintomas, geralmente já diagnosticados e submetidos aos excessos da medicalização propostos pela psiquiatria contemporânea. 

Recorrendo ao autor pós-junguiano James Hillman em “Cem anos de psicoterapia e o mundo esta cada vez pior” (1995), podemos dizer que uma abertura para a anima mundi permitiria relativizar as pressões sofridas pelo sujeito identificado com os ideais heroicos do Ocidente, em busca de uma reconexão comunitária que relativize os estados de solidão, desamparo e fragilidade psíquica observados na atualidade. Torna-se fundamental, então, um resgate da integração do sujeito a espaços onde possa experimentar-se parte co-responsável por um projeto social que o inclua em relação ao outro, e que ao mesmo tempo, permita-lhe sentir-se também amparado em suas necessidades pessoais físicas, psíquicas, emocionais, etc.

Além disso, precisamos integrar cada vez mais nossa praxis a outras vias de compreensão transdisciplinar para ultrapassar os limites estreitos e por vezes anacrônicos das lentes da análise psicológica tradicional, histórica e excessivamente individualizadas e psicologizantes, calcadas em sintomas associados a padrões culturais restritos a grupos sociais de determinadas classes sociais privilegiadas em termos econômicos. Possivelmente, reimaginando o conceito de individuação – carro-chefe da psicologia analítica, como afirmou Jung -, de modo que esse processo possa ser pensado incluindo os aspectos sociohistoricos do sofrimento contemporâneo e reinventando nossos modos de estar junto daqueles que nos chegam em estados de profunda dor e agonia, habitantes de um mundo à beira de um colapso climático, político, econômico e cultural. Parodiando uma ideia de Marx (apud BERMAN, 2007) “tudo que era sólido e se desmanchava no ar”, atualmente constituiu um vórtice que torna as relações e a vida extremamente frágil e fugidia, escorrendo entre os dedos num piscar de olhos. Desse modo, só nos resta criar condições de acolher e oferecer contornos para conter os fluxos da existência, em busca de uma vida mais solidária e comunitária, ainda que seja por um breve momento. Esta seria uma excelente revisão para a reformulação dos objetivos da psicoterapia em nossa prática clínica junguiana.

Referências:

BECK, U. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 2006.

BECK, U., BECK-GERNSHEIM, E. Individualization: institutionalized individualism and its sociais and political consequences. London, SAGE Publications, 2002.

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. S. Paulo: Ed. Schwarcz, 2007.

COSTA, J. F. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1984.

__________. Narcisismo em tempos sombrios. In: FERNANDES, H.R. (org.). Tempo do Desejo. São Paulo, Brasiliense, 1988.

HAN, B-C. A sociedade do cansaço. Petrópolis, Vozes, 2015.

HILLMAN, J. Cem anos de psicoterapia e o mundo está cada vez pior. S. Paulo: Ed. Summus, 1995

JUNG, C. G. (1928). Os conceitos fundamentais da teoria da libido. In: ______. A dinâmica do inconsciente. Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 1984c. p.31-59. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 8).

___________. (1934). O eu e o inconsciente. Tradução de Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 166 p. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 7/2).