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Athè ou Hybris?

Nunca conheci pormenorizadamente – não por falta de vontade, mas por outros motivos que não cabem nesse insight – as histórias marchetadas naquilo que chamamos de Mitologia Grega; no entanto, duas palavrinhas gregas prenderam-me a atenção enquanto eu assistia a uma aula chata na pós-graduação. Tais palavras foram: Athé e Hybris.

Explicarei, à grosso modo – até mesmo porque não achei quaisquer outras referências sobre o termo “athé”- , como o significado destas duas palavras chegaram a mim para que eu, por fim, pudesse elucidar algumas questões.

O termo “Athé”, na Mitologia Grega, significa “Loucura” (explicarei!) como um castigo dos deuses. Dessa forma, se alguma pessoa desobedecesse às vontades dos deuses poderia ser castigado com essa espécie de loucura, que era caracterizada pela perda do discernimento e da sabedoria.

Já o termo Hybris pode ser sucintamente explicado como uma loucura que se dá pelo excesso, pelo transbordante (em sua conotação negativa), pelo exagero de uma conduta gananciosa e egoísta do homem; ou seja, como consequência de seus sentimentos, pensamentos, atos ou mesmo cultivo dos pecados capitais (termo introduzido no Cristianismo). Aqui, é como se o homem pudesse escolher ser louco em troca dos prazeres que tais ganâncias dispunham.

Hoje, conseguimos associar a palavra “exagero” à loucura, mas podemos pensar também sobre sofrimentos e prazeres, escolhas ou alternativas embutidas nessa associação que às vezes fazemos de forma banalizada e impensada. Pensando bem, acredito que não há tanta diferença entre Athè e Hybris. Os dois termos se aproximam quando pensamos que ambos tratam-se de uma espécie de transgressão. E isso nos leva para reflexões mais prolongadas sobre, por exemplo, a chatice que o mundo é; o que nos obriga a transgredir suas (muitas vezes) infundadas normas em busca do prazer e da satisfação. É um tiro no pé, e nem mesmo o mundo sabe, ao certo, se nos quer loucos ou não, quando ele mesmo, por ser incoeso, mostra-se mais louco do que a mistura de todas as outras pequenas loucuras que nele existem ou mais louco do que a quantidade de pessoas que são diagnosticadas com um CID F.20 por aí. Mas esta já é outra história. Continuemos…

Sabemos que a loucura moderna – esta que lidamos hoje no século XXI – é, por diversos motivos, diferente da loucura “Hybris”, a qual responsabiliza só (e somente só) o sujeito pela sua condição de portador de transtorno mental. Já evoluímos o bastante para sabermos que os determinantes para o desenvolvimento de um transtorno mental não são puramente orgânicos e tampouco tratam-se simplesmente do cultivo consciente de uma luxúria ou gula. Quem dera fosse! Talvez algumas religiões dessem conta do recado. Talvez a Psiquiatria não ‘nascesse’ e ‘crescesse’ (e talvez mais um monte de coisa que só existiria porque são só ‘talvez’)…

Não é a minha pretensão estender tanta polêmica sobre Diagnóstico e práticas Psi’s. Minha indagação é básica, quiçá dispensável a outros leitores. O que venho colocar em análise é: a ciência moderna (nisto encastôo a Psiquiatria, a Psicologia e qualquer outro saber que lide com o sofrimento mental) tende a responsabilizar ou desresponsabilizar o sujeito de seu sofrimento mental? Como isso acontece, e porque?

Como dizer hoje em dia que o sujeito é agente responsável de seu tratamento e de sua melhora sem generalizá-lo como o único responsável pelo seu adoecimento? Como ponderar todos outros determinantes do adoecimento sem vitimar o sujeito? Como usar o diagnóstico como uma ferramenta de auxílio no tratamento e não como um álibi que o desresponsabiliza frente a todas suas condições de vida? Como não cair numa tendência assistencialista que, à vontade, fornece laudos e pareceres para defensorias e INSS, invalidando e incapacitando o sujeito? Como direcionar sua prática de modo que faça com que o sujeito se responsabilize por si próprio, não repetindo aquela velha ladainha de que ele é a doença? Como tentar promover a autonomia se você, como profissional, tem a crença de que aquele fulaninho nunca conseguirá fazer algo útil? Como olhar nos olhos do usuário ao invés de olhar somente as informações contidas em seu prontuário? A parte metodológica do processo é sempre a mais difícil de ser respondida. O que é certo ou errado nos salta aos olhos prontamente, mas a visualização do caminho a ser percorrido, ou seja, do ‘como’ fazer, encontra-se de tão embaçada, embaraçada.

A loucura ainda é Athé, se considerarmos o mundo, as ciências e nós sociedade como deuses preconceituosos, inflexíveis e incompreensíveis que castigam amiúde seus homens quando estes tentam fazer com que a vida seja, ao menos, suportável. E, em partes, a loucura ainda é Hybris também, porque há aqueles que protestam e tentam transpor (eis a característica transbordante do Hybris), a barreira alienante de um mundo alucinado. No fim das contas, a questão não é a de culpar alguém: deuses ou pecadores, é só a de pensarmos se às vezes estamos nos endeusando demais ou nos culpando demais. Acho que é isso.