O anjo pornográfico na Avenida Brasil

Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros.
Nelson Rodrigues

Li todas as peças de Nelson Rodrigues, furtiva e escondida pelos cantos, ao longo da minha adolescência, o que me rendeu a alcunha, durante algum tempo, de insociável. Durante a vida assisti a algumas peças. Confesso que nem sempre a altura do texto sublime do autor. Em geral, as peças sempre me inquietavam e me deixavam embasbacada com o olhar irônico e sarcástico sobre o ser humano.

Há coisas que só se confessa num divã de psicanálise, à meia luz, ou numa confissão com o travesseiro. Eu confesso: acredito mesmo que todos nós temos algum tipo de perversão (confessos ou não), em maiores ou menores graus. Lembrando que a palavra perversão vem do latim perversione que corresponde ao ato ou efeito de perverter. Neste caso, a  utilizo para designar o ‘desvio’, por parte de um indivíduo ou grupo, de qualquer dos comportamentos considerados ‘normais ou ortodoxos’. E para enfrentar e sobreviver a esse insight, só mesmo lendo a escrita lúcida deste anjo, Nelson Rodrigues, para sermos inundados do sentimento catártico de ‘eu sou normal’ e para desvelar a vida como ela é.

Sempre me intrigou a designação de anjo pornográfico. Por que pornográfico? Muitos abominam Nelson Rodrigues e sua escrita maldita. Mas assistem, em horário nobre, ávidos a malfadada cruzada de Nina contra Carminha em “Avenida Brasil”, novela das nove. A casa de Tufão é uma casa à la Nelson Rodrigues, pra nenhum amante do teatro rodriguiano colocar defeito. E o triângulo amoroso? Melhor dizendo, qual triângulo amoroso!? Tufão, Carminha, Nina? Tufão, Carminha, Max? Carminha, Max, Ivana? Nina, Max, Jorginho? Nina, Tufão, Jorginho? Nilo, Mãe Lucinda, Santiago? Tessália, Leleco, Darkson? Tessália, Leleco, Muricy? Muricy, Leleco, Adauto? Jorginho, Débora, Iran? Olenka, Silas e Monalisa? E o que dizer de Cadinho e suas três mulheres: Noêmia, Verônica e Alexia?  E a união de Leandro, Roni e Suelen? Claro, não nesta mesma ordem, depende do dia da semana pode ser alternado. O troca-troca de casais movimenta a trama e torna os relacionamentos áridos fast-food.

Por isso, muitos perguntam sobre o nível das telenovelas. E eu pergunto: e o nosso nível? Afinal, há uma reciprocidade, as novelas são assim por que o telespectador também o é, isso explica o esplêndido e estrondoso sucesso da trama.

Desta forma, explicam-se os modismos durante e pós-novelas: cabelos, roupas, maquiagem, gírias e bordões, e, claro, comportamento. Bem, o que me chama atenção são os bordões que estão na cabeça e na boca das pessoas: ‘Assim você mata o papai’; ‘É tudo culpa da Rita!’; ‘Me serve, vadia’; ‘Ariranha’; ‘Piriguete’. E não é que a novela lançou a moda piriguete? Agora, temos um vasto repertório de estilo piriguete cool de norte a sul do país.

Embora Nelson Rodrigues sempre tenha afirmado desconhecer a obra de Freud e Jung, suas peças teatrais parecem ter sido cunhadas pelos complexos de Édipo e de Electra, facilmente observados na relação amorosa entre Leleco e Tessália, a música tema do casal “Assim você mata o papai” do grupo Sorriso Maroto, autoriza essa leitura.

E o tragicômico Leleco faz um contraponto com o personagem rodriguiano, Olegário, da peça “A mulher sem pecado” (1942). Na peça Olegário é um homem ciumento, mais velho, obcecado pela dúvida sobre a fidelidade de sua jovem e bela esposa, Lídia. Para testá-la, finge-se paralítico. No último ato, Lídia deixa uma carta e foge com o canalha Umberto, o chofer. Também, na peça fica clara uma referência ao complexo de Édipo, quando Olegário reclama da mania de Lídia de chamá-lo de ‘meu filho’.

Na trama televisiva, Leleco também é um homem mais velho que se casa com uma ninfeta, o que desencadeia uma crise de meia-idade e a dúvida sobre a fidelidade da moça. Leleco contrata um personal para tentar seduzir Tessália, no entanto as coisas se complicam quando o personal Darkson se apaixona por ela.

O mundo rodriguiano é o mundo imperfeito que se olha no espelho e não tem vergonha de se ver e de falar de si, e as telenovelas trazem uma representação da vida cotidiana, tanto na elaboração das personagens como dos cenários da vida privada. É o espelho que ora se aproxima do real ora se mostra distorcido, mas sempre em contraponto com a realidade circundante.

É na literatura, no teatro e nas telenovelas que encontramos a transgressão e provocação (Por que não dizer tentação?) dos limites do pensar a sexualidade e os sentimentos humanos.

Aplausos, então, para Nelson Rodrigues, gênio e poeta maldito, que durante mais de 20 anos, foi o único obsceno do teatro brasileiro, e para o autor João Emanuel Carneiro e sua atual galeria de personagens rodriguianas.

E do que precisamos? De outros anjos pornográficos para nos desmascarar, nos despir, nos espiar pelo buraco da fechadura e depois nos representar em suas peças.

Saiba mais:

BORELLI, Sílvia Helena Simões. Telenovelas Brasileiras: balanços e perspectivas. São Paulo em Perspectiva, 2001.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

RODRIGUES, Nelson. A mulher sem pecado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

Graduação em Letras com especialização em Língua Portuguesa e Literatura, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória – PR. Mestrado em Teoria da Literatura pela UFSC. Doutoranda em Letras, área de concentração Teoria da Literatura na PUC/RS. Atualmente é professora da UFT.