BISSEXUALIDADE FEMININA EM UM CORPO NÃO FEMININO: O IMPACTO DA HETERONORMATIVIDADE NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SEXUAL

Vitória Cardoso Figueira – vitoriacardoso@rede.ulbra.br

Eu me encontro e me desencontro, todos os dias. E nesses encontros eu me encontro e me desencontro para me (re)conhecer, sempre.

Nasci e cresci em uma cidade no interior do Tocantins, onde não existia muita diversidade. Eu nunca tive muito contato com o “diferente”, digo, pessoas com estilos diferentes, roupas, gostos, música, orientação sexual… não é como se não existisse essas pessoas “diferentes”, mas onde cresci eram poucas. Porém, quando eu as via, percebia o olhar repulsivo dos meus pais e do contexto social em que eu era inserida. Quando falo isso, lembro de alguns episódios que vivenciei durante minha infância pois  eu não entendia aqueles olhares, muito menos via algo de “errado” nessas pessoas. Mas eu, enquanto criança, em alguns momentos, identificava os comportamentos preconceituosos, apenas não entendia o que era o preconceito.

Desde que me entendo por gente, sempre soube que gostava de meninas e meninos, aquela paixãozinha de querer pegar na mão, sabe!? Até uma certa idade não via “problema” em querer pegar na mão de uma garota, assim como eu queria pegar na mão de outro garoto, só que de alguma forma, mesmo sendo nova, eu reprimia certos comportamentos como, pegar na mão de alguma menina, e até mesmo menino, mas hoje consigo entender melhor o motivo.

Quando mais nova, gostava bastante de jogar bola, luta, brincar com meninos, não era – até hoje não sou (risos) – muito fã de vestidos, muito menos brincar de bonecas, então era comum receber certos olhares negativos e falas como “mas você podia se interessar mais por coisas de menina” ou “parece que você quer ser um menino”. Ssão frases como essas e muitas outras que contribuíram para que eu fosse uma criança e adolescente mais reprimida, afinal, como assim uma garota não performa a tal feminilidade que a sociedade tanto impõe para o sexo feminino(?). É a pergunta que nunca precisou ser dita de forma literal, mas sempre ficou nos olhares, nas frases “inofensivas” e nas imposições no meu comportamento: “seja mais feminina!”.

Por essas e outras, deixei de lado essas “paixõezinhas”, afinal, eu era muito “esquisita” para pensar que alguém teria os mesmos sentimentos por mim. Assim, fui entrando na adolescência e pré adolescência sem pensar nessa coisa de “eu gosto de homem ou de mulher?”. E adicionando o fato de ter crescido em um ambiente familiar religioso conversador, além de viver em uma sociedade machista, misógina, LGBTQfóbica, criei a consciência que “ser gay é errado”, “verdade” essa construída por olhares do Outro, contribuindo para o não pensar sobre mim.

Em relação a vestimenta e cabelo, nunca deixei de expressar quais eram meus desejos “quero cortar cabelo”, “não uso vestido”, “não uso salto”, “não gosto de sapatilha”… muitos desses não querer eram ignorados, e também, procuraram maneiras de “adaptar” meus gostos para que se adequassem mais ao conceito do feminino, como forma de burlar aquilo que viam de masculino em mim.

O momento em que voltei a pensar sobre isso e sobre mim – que para mim foi emblemático – foi quando, na televisão, assistindo a um programa que eu tanto gostava, em uma tarde, as duas apresentadoras do programa que eu assistia sem falta, que por sinal eram mulheres que eu admirava pelo estilo despojado, que aparentava ter uma identidade própria, deram um selinho. Assim, de graça. Minha mente entrou em colapso, pois, “porque elas fizeram isso?”, “que nojo, isso não é certo”, “mas por qual motivo aquilo era tão bonito?”. Aí então parei por alguns minutos, e me recordei daquilo que já havia esquecido, ou fingi que esqueci, da minha vizinha: que eu era apaixonadinha quando criança, das outras meninas que eu queria andar de mãos dadas no recreio… nesses poucos segundos (e foram poucos mesmo) me dei conta da razão do sentimento de pertencimento para com aquela cena que tinha acabado de ver, sensação essa que tentei burlar em alguns segundos.

Essa “performance” de gênero diz respeito sobre os papéis de gênero impostos pela sociedade para os sexos, homem e mulher, desde seu nascimento. Trata-se de comportamentos, atitudes e características que a sociedade atribui para cada sexo (FISKE, 2010). E esses papéis de gênero como forma de constructo são apenas estereótipos que reduzem homens e mulheres, contribuindo para a desigualdade de gênero e expressão do mesmo (CONNELL, 2009). E essas imposições de gênero estereotipados contribuem ainda mais para essas normativas sociais opressivas que limitam o potencial de indivíduos que não se colocam nesses padrões preestabelecidos.

Na época eu já tinha acesso à internet, então fui pesquisar quiz de perguntas: “descubra aqui se você é lésbica ou não”, eu nem sabia direito o conceito de “lésbica”, apenas o “sapatão” que no meu meio usavam de forma perjorativa para referir-se a mulheres que gostavam de outras mulheres, e essas mulheres sempre, de alguma forma, tinha algo “não feminino” em sua imagem. Elaborando melhor o desejo que por algum motivo eu havia esquecido, consegui – em um tempo até que curto – me entender como uma mulher que gostava de outra mulher.

Percebo que eu nunca tive, de fato, dificuldade em aceitar que gosto de pessoas do mesmo sexo e genêro. Acredito que nunca, felizmente, passei pela heterossexualidade compulsória, mas digo que fui e sou constantemente vítima da heteronormatividade. Eu sabia que gostava de homens, só que era confuso para mim de uma certa forma, como eu, uma mulher que não usava saltos, se pudesse, teria cabelo curto, não usava vestidos, acessórios delicados tidos como femininos, poderia gostar de homens? Até porque não era possível um homem gostar de uma mulher assim!

A heterossexualidade compulsória é determinada pela obrigação social da qual os indivíduos devam se identificar e envolver em relações heterossexuais independente de suas preferências pessoais (RICH, 1980). A heteronormatividade produz um grande impacto na construção da identidade de gênero e sexual dos indivíduos. A rigidez dos padrões comportamentais e expressões de gênero baseados nas normas impostas socialmente ligadas à heterossexualidade, limitam a liberdade individual e castram as possibilidades de expressão de gênero além das categorias binárias estabelecidas (CONNELL, 1987).

Então digo que daí começou o meu processo de aceitação. Por um tempo me entendi como mulher lésbica, já que eu tinha “trejeitos” masculinos e até mesmo era confundida com homem, então, não tinha como eu gostar de homem sendo “desse jeito”. Mas a performance do não feminino que nos é imposto não afetou apenas minha aceitação da minha bissexualidade, também afetou minhas relações com outras mulheres. Por não exercer esse papel, logo me denominavam como a ativa da relação, ou o homem da relação, no qual eu tinha que fazer o papel de dominadora, que dentro da heteronormatividade e nos padrões de papéis de gênero, é função do homem ser quem domina e a mulher a passiva, ou seja, as mulheres que possuem essa aparência socialmente mais feminina, dentro da relação com outra mulher, é denominada como passiva. Então me via obrigada a exercer esse papel e sustentá-lo em meus comportamentos, e assim minha identidade sexual e expressão sexual se tornaram vítimas das normativas heterossexuais.

Dentro dessa construção, que papel eu iria exercer dentro de uma relação com outro homem? O papel que esperavam de mim (e ainda esperam) é de um homem, então, juntando isso com a minha crença de que os homens não sentem desejo por mim, na minha cabeça era impossível uma relação como essa se desenvolver. Com o tempo, estudando e me permitindo conhecer pessoas novas, e me conhecer também, me entreguei ao que realmente era meu. Fui experienciando vivências com homens e com o tempo aceitei referir a bissexualidade como a minha sexualidade.

Hoje aceito bem minha bissexualidade e os meus desejos, mas o conceito de feminino, para mim, ainda é algo para se trabalhar. O impacto da heteronormatividade ainda se faz bastante presente na minha vida, e creio que será por um bom tempo. Junto a isso existe a invalidação da minha sexualidade, qual tenho que lidar diariamente, já que o meu feminino é antiquado para estar dentro do mundo bissexual, afinal, não tenho um “meio-termo” para facilitar a minha relação entre homem e mulher, “você deveria ser um pouco mais feminina, para estar com homem e mais masculina para se estar com uma mulher, ficando aí em um meio termo”. Frequentemente sou confundida com uma mulher lésbica por causa da minha aparência e dita como o “homem da relação”, e são questões que impactam na minha vida de maneiras quase impossíveis de serem ditas.

Finalizo o texto com uma citação de Judith Butler, do livro Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990), onde ela fala sobre o impacto da heteronormatividade compulsória na vida de homens e mulheres. A heteronormatividade tem uma grande influência na construção dos papéis de gênero, colocando expectativas em homens e mulheres como forma de sustentar tal comportamento, servindo como forma de controle social. O gênero é uma construção social performativa, servindo como forma de questionar a ideia de categorização fixa em relação ao gênero. A heteronormatividade compulsória oprime a expressão de gênero e exige formalidade aos papéis de gênero binários e tradicionais.

 

REFERÊNCIA:

CONNELL, R. W. Gender: In world perspective. John Wiley & Sons, 2009

CONNELL, Raewyn W. Gender and Power: Society, the Person, and Sexual Politics. Stanford University Press, 1987.

FISKE, Susan T. “Venus and Mars or Down to Earth: Stereotypes and Realities of Gender Differences.” Perspectives on Psychological Science, vol. 5, no. 6, 2010, p. 688–92. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3652639/> . Acesso em 14 de maio, 2023.

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990.

RICH, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 5, n. 4, p. 631-660, 1980. Disponível em: <https://transasdocorpo.org.br/wp-content/uploads/2017/01/Compulsory-heterosexuality-and-lesbian-existence-2.pdf> Acesso em 15 de maio, 2023.