Procrastinação vem do latim procrastinatus. O radical pro indica à frente e crastinus traduz-se como amanhã, assim, literalmente, procrastinar significa depois de amanhã – o que pode nomear o hábito tão costumeiro do brasileiro de “deixar pra depois”.
Entretanto, o hábito de procrastinar não é somente uma característica simpática do povo brasileiro, que faz companhia a outras como o famoso “jeitinho brasileiro” e a infame mania de “querer levar vantagem em tudo”. Na verdade, poderia ser chamado até de vício, visto o conjunto de malefícios que ele pode provocar à própria pessoa e até ao convívio social e a possibilidade que existe de nos tornarmos dependentes da prática da procrastinação.
Ao procrastinar podemos não estar somente deixando pra depois uma tarefa chata que temos que realizar. Podemos, também, estar empurrando pra frente uma responsabilidade grande que nos foi passada e da qual talvez fujamos por medo de falhar, por insegurança quanto à sua realização com sucesso ou, pura e simplesmente, por uma grande dose de irresponsabilidade.
Seja qual for o motivo, as consequências da procrastinação podem ser muito graves caso a pessoa não consiga, naquela “ultíssima” hora, dar conta da tarefa tão adiada. A perda do emprego seria somente uma delas, mas podem-se alcançar dimensões muito maiores. Não são poucas as pessoas que acabam se afastando de seus afazeres cotidianos à medida que, por procrastinação, deixam de cumprir não somente suas obrigações profissionais, mas também as ações ligadas ao convívio social. Por terem deixado pra última hora a concretização de suas atividades, acabam deixando de participar deste ou aquele evento social (um futebol de fim de semana, um happy hour com os amigos, uma comemoração com a família) para tentar ao menos não fazer feio perante aqueles com os quais estão comprometidos (o chefe, o cliente, o filho). E esta ausência da vida social normal, aliada à sensação de fracasso pelas tarefas que deixam de ser realizadas com a qualidade habitual, acabam por levar algumas pessoas a uma depressão leve que tende a agravar-se com o tempo, caso a dinâmica da procrastinação não seja interrompida.
O procrastinador contumaz é hábil em justificar suas faltas, inclusive para si mesmo. Uma das desculpas mais comuns está em culpar a atividade A pela protelação da atividade B; e na sequência culpar a atividade B pelo insucesso em concluir a atividade A. Nesta dinâmica, ele busca convencer-se de que a responsabilidade pela sua falha é externa, o que acaba fugindo de sua competência.
Mas a procrastinação não se dá a troco de nada. Ele surge de uma troca simples entre algo desagradável por algo prazeroso e isso começa desde a infância, quando a tarefa de casa é deixada de lado por uns minutos a mais de brincadeiras com os amigos, e vai sendo “aprimorada” com o tempo: uma atividade é trocada por uma conversa entre amigos; uma tarefa é substituída por um joguinho no computador… Ah! E como os joguinhos de computador sabem ser prazerosos proporcionando aqueles momentos, que se esperam rápidos, de distração. Sim, “se esperam rápidos” porque, de pequenos intervalos “rápidos” chegam-se às horas em que as responsabilidades foram deixadas para depois de “só mais uma jogadinha”, “só mais um nível”, “só esta fase”.
E os jogos disponíveis em redes sociais como o Facebook oferecem vários elementos que acabam tornando o apelo pela procrastinação maior do que qualquer sentimento de responsabilidade: a competição entre os amigos com o ranqueamento das pontuações obtidas; a realização de tarefas simples e intuitivas; as dificuldades em um grau menor no início mas que seguem em um crescente motivador; enfim, tudo que torna os pretensos poucos minutos de jogo mais atraentes que as muitas horas de trabalho (isso se os poucos minutos não fossem se acumulando até tomarem todo o espaço de tempo que deveria ser dedicado às atividades que o mundo real exige).
Dentre estes jogos tem-se como o mais “atraente”, hoje (e com a possibilidade de não sê-lo mais amanhã), o Candy Crush Saga.
O Candy Crush Saga é um jogo simples em sua estrutura, o que atrai os mais variados públicos. Deve-se juntar três doces iguais (com a mesma cor e formato) que serão eliminados aumentando a pontuação do jogador.
Em cada nível do jogo surgem objetivos como, por exemplo, obter certo número de pontos em uma quantidade determinada de movimentos ou em um tempo específico – o não cumprimento do objetivo leva a perda de uma “vida”. São ao todo quatrocentos níveis disponíveis hoje, sendo que o jogador conta com cinco vidas para dar cabo dos objetivos apresentados.
Em uma relação colaborativa, cooperativa e, de certa forma, “viciadora”, à medida que as vidas se vão, podem-se obter novas vidas através de doações dos amigos que compartilham o jogo. Da mesma forma, bônus como maior quantidade de movimentos, ou doces com determinados poderes, podem ser presentados pelos amigos. Caso não receba uma nova vida de um amigo, a cada trinta minutos o jogo restabelece uma vida – tempo esse informado em um cronômetro decrescente que indica quanto falta para poder voltar ao jogo, o que chega a ser angustiante para algumas pessoas.
Há também, e é algo que vem bem a calhar nestes casos, a possibilidade de adquirir (isso mesmo, pagando) novas vidas e alguns bônus, o que leva a casos mais complexos de jogadores que, além de utilizarem-se do jogo como elemento motivador de suas procrastinações, ainda acabam desfazendo-se de muito do seu dinheiro em função do jogo – o que seria conteúdo para um outro texto sobre o Candy Crush e jogos semelhantes.
Como há a possibilidade de jogar até o fim das cinco vidas, muitos jogadores utilizam esta condição como seu limite de tempo de jogo. Outros utilizam como estratégia de gerenciamento de tempo de jogo a passagem por certa quantidade de níveis. Entretanto, a existência do ranqueamento entre os jogadores e também a possibilidade de pedir aos amigos que os presenteiem com vidas e bônus acaba fazendo com que as promessas de limitação de tempo sejam quebradas e, com isso, a procrastinação acaba ocupando seu espaço nas vidas profissionais de muita gente. Para que se possa imaginar o alcance, basta saber que Candy Crush é jogado mais de 600 milhões de vezes por dia por 50 milhões de usuários.
Matéria recente na Globo.com fala ainda da existência do efeito Zeigarnik:
Para o professor de psicologia e ciências cognitivas Tom Stafford, da Universidade de Sheffield, na Grã-Bretanha, o vício em Candy Crush se relaciona a um fenômeno psicológico chamado efeito Zeigarnik. O psicólogo russo Bluma Zeigarnik dizia que os garçons costumam ter uma memória impressionante para lembrar dos pedidos, mas só até que os cumprem. Uma vez que a comida e a bebida são levadas até a mesa, eles se esquecem completamente de algo que sabiam momentos antes. ‘Zeigarnik deu nome a todos os problemas em que uma tarefa incompleta fica fixada na memória. E Candy Crush gera uma tarefa incompleta’, disse Stafford à BBC.
Aliando-se o efeito Zeigarnik à característica natural do brasileiro de deixar tudo para depois, tem-se no Candy Crush Saga um incentivo claro ao vício da procrastinação.
Observação: O autor deste texto procrastinou o quanto pode escrevê-lo pois estava tentando superar o nível 139 do Candy Crush. Ele não conseguiu até o momento em que este texto foi para o site.
Fonte:
Psicologia por trás do sucesso de jogos como ‘Candy Crush’.http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/08/psicologia-por-tras-do-sucesso-de-jogos-como-candy-crush.html