Diálogos contemporâneos impertinentes com/de Bauman

Nos tempos atuais, ainda parece não ser pertinente refletir sobre a vida e seu entorno sociopolítico como ele é. Para alguns até parece impertinente, descabido, despropositado, inconveniente abordar o “Mal-estar da pós-modernidade”, o “Medo líquido”, a “Vida líquida”, o “Amor líquido” ou “A vida em fragmentos”.

A vida líquida tem muitas direções. “Trata-se de viver na indiferença, no desprendimento, e, por isso mesmo, tal existência se torna repleta de preocupações com relação a mudanças e términos, muitas vezes mais doloridos do que se pretendia”.

Nesse sentido, aquele que se propõe discutir o presente e as suas mais controvérsias polêmicas, aparentemente se torna um implicante com tudo e todos/as, um ranzinza, que se comporta de maneira descabida; um insolente.

Ocorre-me essa representação da (im)pertinência ao se tratar de cenas e episódios diários que surgem hoje e desaparecem amanhã, problemas que são criados e dissolvidos no mesmo instante sem deixar rastros e memória.

Estamos acostumados com a análise de tradição marxista que defende a tese que a evolução histórica, desde as sociedades mais remotas até à atual, se dá pelos confrontos entre diferentes classes sociais decorrentes da exploração do homem pelo homem.

Todavia, o que dizermos na presentividade, do culto a autonomia individual, ao corpo glorificado na mídia? “O sujeito pós-moderno é a glorificação do ego no instante, sem esperança alguma no futuro”?

Em O que é pós-moderno, Jair dos Santos, no contraponto da sociedade moderna, fala-nos do indivíduo burguês, que supunha uma identidade fixa e uma liberdade total, aferrado ao dinheiro como capital tanto quanto a princípios morais e a valores sociais, esse sujeito dançou, diz ele. Os modernos, na arte, começaram a caricaturar seu retrato, a expor sua falsidade. Os indivíduos pós-modernos, na prática, vêm tendendo ao máximo à sua dissolução.

Os pós-modernos querem rir levianamente de tudo? Isso nos leva a reflexão se o pós-modernismo “ameaça encarnar hoje estilos de vida e de filosofia nos quais viceja uma ideia tida como arqui-sinistra: o niilismo, o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida”, questiona Elson de Mello no seu texto.

Em uma das entrevistas de Lipovetsky ele chega a dizer que “até Foucault, no fim de sua vida, interrogava-se sobre a questão da preocupação consigo, porque é um efeito do fracasso das grandes ideologias”. “Quando não se acredita mais que se pode mudar o mundo com a revolução, então as questões da vida privada, da felicidade, mas também da identidade, da aparência tornam-se muito mais importantes. E, de fato, as questões que levanto (Lipovetsky) sobre a lógica da moda é um efeito da vida pós-moderna”.

Para Elson de Mello, “a crítica que faz o pós-modernismo aos metarrelatos, no que têm principalmente de deterministas, é de destacar-se, ao relativizar as explicações dominantes, em que as teorias sociais pretenderiam dar da realidade uma visão acabada, bem articulada em todos os planos, tanto cultural, político, acadêmico e até científico. O enfoque pós-moderno pode proporcionar uma abertura de abordagem, numa multiplicidade de vozes sociais e teóricas, ainda que não saiba se realmente dê as respostas”.

A presentividade é uma época na qual as fronteiras culturais e epistemológicas estão se desfazendo e os gêneros disciplinares se tornando indistintos.

Do que estamos a falar? Daquilo que os franceses chamam de “precariedade”; os alemães de “instabilidade”; os italianos de “incertezas” e os ingleses de “insegurança”. Daquilo que Bauman nos diz, o fenômeno que todos esses conceitos tentam captar e articular é a experiência combinada da falta de garantias (de posição, títulos e sobrevivência), da incerteza (em relação a sua continuidade e estabilidade futura) e de inseguranças (do corpo, do eu e de suas extensões: posses, vizinhanças, comunidade).

Esta série com Bauman, a partir de Bauman, com base nos seus conceitos e as veredas percorridas por seus estudos em constante ebulição, é um convite para pensarmos a nossa situação no mundo atual, a nossa vida cotidiana, refletirmos realmente a atualidade, conforme ele nos fala, por exemplo, sobre as questões assustadoras, como é o caso do crescimento incontrolável do chamado “lixo humano”, pessoas descartáveis ou “refugadas” e, portanto, que podem ser deletadas a qualquer tempo e horário de nossas redes sociais on e off-line.

À medida que nos deparamos com as incertezas e as inseguranças da “modernidade líquida”, nossas identidades sociais, culturais, profissionais, religiosas e sexuais sofrem um processo de transformação contínua e hibridizante. Isso nos leva a buscar relações transitórias e fugazes e faz com que soframos as angústias inerentes a essa situação.

Estamos no início de uma modernidade líquida em que outra relação social está emergindo, fruto do derretimento radical dos grilhões e das algemas que, certo ou errado, eram suspeitos de limitar a liberdade individual de escolher e de agir.

A Desintegração da Persistência da Memória (1952). Arte: Salvador Dali

No mais estamos quebrando modelos, formatos, paradigmas. Às vezes tentando substituir, sem sucesso, por outros; porém as pessoas estão se libertando de suas velhas gaiolas, antigas prisões e pesadas sentenças. E essa tendência atinge a todos nós na família, na escola, no trabalho, na comunidade.

Algumas músicas já nos falaram desse movimento e talvez não prestamos atenção na época que eram tocadas. É só lembrar Marina Lima cantando: “Pra começar, quem vai colar, os tais caquinhos, do velho mundo. Pátrias, famílias, religião e preconceitos, quebrou não tem mais jeito”; ou Guilherme Arantes: “Pra que ficar juntando os pedacinhos do amor que se acabou, nada vai colar … nada vai trazer de volta a beleza cristalina do começo e os remendos pegam mal, logo vão quebrar ….”

Os jovens, especialmente eles, e suas “relações de bolso” de ficar em ficar, nos dizem que “uma relação bem sucedida, é doce e de curta duração”. Você não precisa nessa prática se desdobrar, sair de si para manter duradoura e intacta a relação. “Uma relação de bolso é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade”. Nada de paixão fulminante, nada de frio na barriga, coração disparado e ficar sem fôlego. A conveniência é o que conta nesse momento fugaz. Mantenha o bolso livre e preparado, porque vai um/a, e vem outro/a, é o movimento e o tráfego intenso que sustenta o prazer.

Vivemos numa condição repleta de “sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”, no risco e ansiedade de se “viver junto e separado”.

Nesse mundo seus moradores detestam tudo que é durável, pra sempre, tudo que não seja fest-food. Viver juntos é uma questão de não incomodar, e suas intenções para com o outro são despretensiosas, nada de “juramentos, e as declarações, quando feitas, são destituídas de solenidade, sem fios que prendam, nem mãos atadas”.

Com muita frequência não há congregação diante da qual se deva apresentar um testemunho nem um todo-poderoso para, lá do alto, consagrar a união. Viver juntos, diz Bauman, é por causa de, não a fim de. Todas as opções mantêm-se abertas, não se permite que sejam limitadas por atos passados.

Esta série sem a pretensão de analisar a vasta obra de Bauman, que tem mais de dezesseis livros somente publicados no Brasil, dentre os quais Amor Líquido; Medo Líquido; Globalização: as consequências humanas; Vida Líquida; Identidade; Modernidade Líquida e Vidas Desperdiçadas, se propõe dialogar.

Bauman, o teórico da pós-modernidade, tornou-se conhecido por suas análises das ligações entre a modernidade e o holocausto, e o consumismo pós-moderno. Zygmunt Bauman, tem uma produção intensa, (nasceu em Poznan, 19 de novembro de 1925), sociólogo polonês, iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados e em 1968 foi afastado da Universidade. Logo em seguida emigrou da Polônia, reconstruindo sua carreira no Canadá, Estados Unidos e Austrália, até chegar à Grã-Bretanha, onde em 1971 se tornou professor titular da Universidade de Leeds, cargo que ocupou por vinte anos. Lá conheceu o filósofo islandês Ji Caze, que influenciou sua prodigiosa produção intelectual, pela qual recebeu os prêmios Amalfi (em 1989, por sua obra Modernidade e Holocausto) e Adorno (em 1998, pelo conjunto de sua obra). Atualmente é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.

Boa leitura e reflexão!