Configuração familiar e movimento: um passeio pela definição de parentalidade

O presente estudo tem como objetivo discutir a noção de parentalidade, considerando as formas sucessivas como a configuração da família e as relações de parentesco foram se construindo ao logo do tempo. Pretende-se, ainda, abordar as recentes atualizações quanto à definição de família, enfatizando as transformações contínuas no mundo contemporâneo, em especial nas últimas décadas, observando como se dá a construção da parentalidade em sua dimensão afetiva.

O conceito de parentalidade refere-se ao processo de construção no exercício da relação dos pais com os filhos e é um termo relativamente recente que começou a ser utilizado no Brasil a partir da década de 80. Atualmente, o conceito vem sendo usado para designar o processo dinâmico pelo qual passam os pais, que vai além do biológico, envolvendo aspectos que vão desde a história familiar de cada um  até o contexto sociocultural vigente na atualidade.

Quando estudamos a história das famílias e das relações de parentesco, podemos constatar que a noção de parentalidade nem sempre esteve presente. As relações familiares foram evoluindo ao longo da história de forma complexa e acompanhando as transformações ocorridas na sociedade. A construção do vínculo de parentesco, dessa forma, encontra-se em mudança permanente, assim como o indivíduo e sua forma de se relacionar com o mundo à sua volta.

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Como nos relata Silvia Maria Zornig, (2010), “nas sociedades tradicionais, as relações de aliança eram estabelecidas em função do patrimônio familiar”, marcado pela transmissão do nome e dos bens. Somente a partir do século XVIII, um novo modelo de família, não mais atrelado à tradição e sim calcado em laços afetivos, estendeu-se às diversas classes sociais, levando consigo os valores e ideologias oriundas da sua classe social de origem. Assim, “as alianças conjugais passam a ser estabelecidas com base no afeto e não mais como arranjos externos, que não levavam em consideração as escolhas individuais”. (ZORNIG, 2010).

Philippe Ariès (2006) enfoca as mudanças da família ao longo da história a partir de outra perspectiva, ou seja, o lugar que a criança ocupa na família e na sociedade. De acordo com o autor, na Idade Média, a transmissão dos valores e dos conhecimentos, e de modo mais geral, a socialização da criança, não eram, portanto, nem asseguradas nem controladas pela família. A criança se afastava logo de seus pais, e pode-se dizer que durante séculos à educação foi garantida pela aprendizagem, graças à convivência da criança ou do jovem com os adultos. A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazê-las. (ÀRIES, 2006).

Desse modo, quando a criança se tornava independente das pessoas responsáveis por cuidar dela, já ingressava no mundo adulto, aprendendo as tarefas do cotidiano e questões práticas, ligadas à sobrevivência e ao convívio com os adultos, de forma que as relações afetivas não tinham dimensão relevante.

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Tal processo, descrito por Ariès (2006), inicia-se após a Idade Média e se estende pelos séculos seguintes, evidenciando as constantes transformações em curso. O papel da criança na família se modificava, portanto, na medida em que a organização familiar também se transformava, em favor da inclusão das trocas afetivas e das práticas de cuidado nas relações entre os membros da família. Assim, a família, como instituição social, torna-se responsável pela sociabilidade, afetividade e uma enorme variedade de elementos no processo de desenvolvimento dos filhos.

Nesse contexto, ideias sobre moralidade, condutas adequadas no meio social, educação e aprendizagem passam a ser incorporadas pela sociedade progressivamente, dando início à noção de criança como indivíduo, ao mesmo tempo em que se toma consciência das obrigações de cuidado por parte dos adultos e da necessidade de dar a ela um tratamento adequado.

O desenvolvimento das relações afetivas passa, dessa forma, a ser uma característica central da família. Singly (2007) distingue dois períodos da família contemporânea: o primeiro que vai do século XIX até os anos 1960, marcado pelo “amor no casamento, pela divisão do trabalho entre o homem e a mulher, a atenção à criança, à sua saúde e à sua educação” e o segundo período, situado após 1960, marcado pelo crescente individualismo e uma busca por maior autonomia dos indivíduos, as quais engendram inúmeras transformações nas organizações familiares. (SINGLY, 2007, p. 130).

A família do tipo nuclear consolida-se principalmente depois da Revolução Industrial, quando ocorre a organização populacional e a fixação em núcleos urbanos, sendo composta basicamente por pai, mãe e filhos, constituindo assim a família patriarcal que se organizou em torno da figura do pai, fechada em sua intimidade e com um determinado padrão de educação para seus filhos.

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Alguns estudiosos como Poster (1979) relatam que “por volta do séc. XIX e início do séc. XX as famílias das classes trabalhadoras também acabaram adotando o modelo de família nuclear burguesa, quando foram forçadas a deixar o campo e ingressar no trabalho em indústrias nas cidades” (POSTER, 1979, p. 25).

Com as transformações em pauta e reorganizações constantes, a família altera sua estrutura e seus papéis, ao mesmo tempo em que se mantém como uma forma de organização social consistente. A família brasileira, por exemplo, já não tem a mesma estrutura rígida. A monoparentalidade passa a ser bastante comum, encontrando-se com muita frequência a mulher como chefe de família, além de diversas outras formas que fogem do modelo convencional de família.

Para Szymansky (1998), a própria ideia de família vem mudando, influenciada, dentre outros fatores, pela saída da mulher do espaço doméstico para o mercado de trabalho, o que transformou a instituição, além de outros elementos como o controle da natalidade, o aumento do número de divórcios, declínio da autoridade paterna e marital, a acentuação do individualismo e da liberdade dos membros da família.

Nesse contexto, Michelle Gorin et al. (2015) entende que, as reorganizações são constantes e a parentalidade continua a ser exercida, não necessariamente pelo pai e pela mãe biológicos, no contexto da família nuclear tradicional, mas pelo arranjo que se compõe para exercer as funções parentais em relação às crianças. Tais funções podem ser exercidas, por exemplo, pelos próprios pais, por dois pais, duas mães, madrastas e padrastos, por exemplo.(GORIN et al., 2015, p. 4).

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Para Vilhena et al. (2011), os fatores biológicos têm sido cada vez menos utilizados como referência do que é uma família, de modo que esta pode ser pensada sob diferentes aspectos, seja como unidade doméstica, assegurando as condições necessárias à sobrevivência, como um conjunto de laços de parentesco, como um grupo de afinidade, com variados graus de convivência e proximidade e de tantas outras formas.

Segundo os autores, devemos pensar a família como uma construção social, sem tomarmos nenhum arranjo como norma, mesmo porque esta instituição passa por um processo de desinstitucionalização, no sentido de ser considerada cada vez mais uma realidade privada, diminuindo o seu significado púbico.

Nesse sentido, assim como expressa Gorin et al. (2015), a discussão sobre as formas de ser família hoje não deve se realizar apenas em torno do exercício das funções paternas e maternas, mas independentemente do arranjo conjugal, a parentalidade deve se ocupar da estruturação psíquica do sujeito, por meio por meio da troca afetiva e da transmissão dos interditos, transmitindo a noção da renúncia como regra estruturante da ordem familiar.

Desse modo, o papel das figuras parentais se mostra absolutamente libertador e formador, no sentido de preparar os filhos para suas responsabilidades em relação às normas de convívio social e para a entrada na vida adulta, de modo que a formação do sujeito seja reflexo tanto da vivência em família quanto da vida em sociedade.

REFERÊNCIAS

ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006. Disponível em: http://files.grupo-educacional-vanguard8.webnode.com/200000024-07a9b08a40/Livro%20PHILIPPE-ARIES-Historia-social-da-crianca-e-da-familia.pdf

GORIN, Michelle Christof; MELLO, Renata; MACHADO, Rebeca Nonato; Féres-CARNEIRO, Terezinha. O estatuto contemporâneo da parentalidade. Rev. SPAGESP, vol. 16, n. 2, Ribeirão Preto, 2015. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702015000200002&lng=pt&nrm=iso

PONCIANO, E. T.; FÉRES-CARNEIRO, T. Relação pais-filhos na transição para a vida adulta, autonomia e relativização da hierarquia. Psicologia: Reflexão e Crítica, n. 27, 2014. Disponível em:     https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79722014000200388&script=sci_arttext&tlng=pt

POSTER, M. Teoria critica da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 25.

SZYMANSKY, H. A relação família/escola desafios e perspectivas. Brasília: Líber Livro, 1998.

VILHENA, J;SOUZA, A. C. B;UZIEL, A. P;ZAMORA, M. H;NOVAES, J. V. (2011). Que família? Provocações a partir da homoparentalidade. Revista Mal-Estar e Subjetividade, n. 11. Disponível em:  https://periodicos.unifor.br/rmes/article/view/5034/4040. Acesso em: 12 abr. 2021.

ZORNIG, Silvia Maria Abu-Jamra. Tornar-se pai, tornar-se mãe: o processo de construção da parentalidade. Rev.Tempo Psicanal. vol. 42, n. 2. Rio de Janeiro, jun. 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382010000200010&lng=pt&nrm=iso