“Para qualquer tempo, para
qualquer lugar, viajar é sempre:
uma viagem”!
Maria Luiza Cardinale Baptista (Malu)
Escrever é sempre um processo difícil, começar então, mais ainda. Fica-se preso em convenções e armadilhas de escolher palavras certas que possam dar algum ar de originalidade a escrita, mas também que estas expressem calor e afeto retratando de forma mais aproximada o que se vive e o que se sente. Penso nestas escolhas todas e recordo da explicação que ouvi da professora Malu sobre a origem “das palavras”, cujo marco inicial está atrelado ao surgimento da agricultura, com o plantar, semear e marcar a terra. Assim o homem fez movimento, gerou novos ciclos, num processo corajoso de “não-sei-o-quê-vai-dar” que deu origem, inclusive, a evolução da vida. Jogando sementes em outros campos, em novas paragens, plantou outras possibilidades.
É sobre esta metáfora do semear e do deslocar-se que eu gostaria de escrever jogando as palavras. Neste espaço do entre, da terra que ainda sobra, da possibilidade da dobra, do caminho que se faz possível. Sobre esta experiência de deslocar-se de si mesmo, num movimento singular que afunda na gente. Neste deslocamento produzido, neste estar diferente procuro buscar o espírito da palavra, ou melhor, das muitas que compõe uma tese. Mas o que ocorre é que a própria tese já produziu um fim nela mesma a partir destes múltiplos deslocamentos que ocorreram em mim.
O descolamento então provocado por uma viagem internacional mexe por si mesmo em muitas coisas: põe, empurra ao movimento, faz sair do território, “desrretorializa”. Por outro lado, faz também doer, marca do luto, referência existencial das grandes passagens, das finalizações. Por isto é que o embarque, em certo sentido é sempre para sempre, tem um custo, um imposto à Hades, o velho barqueiro que conduz as almas, que é altíssimo em todos os sentidos, pois exige muitas escolhas, algumas delas difíceis. Mas este barqueiro das minhas palavras não julga, não pune, ele conduz simplesmente, possibilitando, tornando visível o nunca antes visto, o invisível ou também o que não se sabia já estar ali, fazendo fluir pela passagem das águas dos oceanos, da distância entre continentes. Em um processo de despir-se em si mesmo que faz abrir novos ciclos nos loucos movimentos da vida.
Este processo de passagem é marcado pela exaustão. No real da vida e das palavras, nunca se consegue dormir na noite anterior, se refaz as malas, perdem-se coisas, há muitas pendências a serem resolvidas, questões do trabalho, particulares, por isto se trabalha muito nos dias que se precedem. Por conta também deste muito a fazer, em que nunca há tempo suficientemente capaz de tornar possível todos os desejos, as emoções afloram, surta-se por pouco, por isso se vive o que é de praxe nas grandes viradas – a exaustão que advém das escolhas, da dor, do medo, do universo, da potência que brilha.
Isto tudo representa um embarque para outro mundo, um salto no oceano, ao pé da palavra (ah a palavra!). Esta magnitude da viagem internacional dá a dimensão do esforço a fazer e dos tributos a serem pagos. Mas para quê tudo isto? Penso que para ganhar o outro lado, porque se fosse para ficar no mesmo lugar não valeria a pena tantas implicações e sacrifícios. A viagem é sempre um caminho individual, mas arrasta com ela as pessoas mais próximas, parentes, amigos, todos implicados, viajam, deslocam-se junto.
Outra lembrança: no tarô mitológico de Jung, a carta do louco, representada pelo Dionísio está na beira do abismo, ele tem a opção, no entanto, de dar um passo para trás e ficar no mesmo lugar, no conhecido, que talvez não lhe dê a satisfação plena, mas também assim, por outro lado, não provoca incomodações, sofrimentos; ou ainda, dar um passo adiante rumo ao desconhecido, mas que remete a um novo a ser construído, que é justamente a matriz geradora de vida, de desejo, o engate do engendramento da autopoiese. E este processo se constrói andando, sempre em “vir a ser”, nunca em estado definitivo, acabado.
A carta do louco no tarô mitológico de Jung
Neste sentido a viagem produz um bem imenso porque ela trata, ela te põe longe, faz com que você saia das cenas da vida, aquela de sempre e nos coloca em outra posição, e de longe a gente vê de outro jeito. Estas teorias da tese que pesquiso estão em processo de fermentação, borbulham dentro de mim novos caminhos. É uma “loucura” necessária para dar outro salto, de constituir outro olhar, possibilitar linhas de fuga que realmente se concretizem, precisa haver saída. O deslocamento é difícil do ponto de vista da vivência, mas quando a gente decide por finalmente fazer é porque se está precisando viver. É um soltar-se no mundo mesmo que sob outras ambivalências e parâmetros para pensar e viver.
Um verdadeiro universo em transmutação se opera possibilitando estar em um reino mágico, nunca antes habitado: o de ficar sozinha. Esta experiência de estar só produz movimentos deslocados, antagônicos, doces, às vezes amargos. E ainda que sob tropeços faz avançar, vibrar, encontrar outras seres e formas de viver. Ser e estar aqui é definitivamente diferente. Que delícia posso ser eu mesma posso ser muitas outras coisas, posso ser o que quiser. E agora, que viagem.
A viagem também pode ser vista como um fator de agenciamento do outro, não para tomar o seu lugar, mas justamente como outra possibilidade existencial, com outras qualidades de relações. Pois para ir ao encontro do outro é preciso estar em outros lugares. E esta é a matriz da viagem – quando a gente se desgruda das travas egóicas, a gente se move, produz mobilização subjetiva. A mudança aparece como fator desencadeador de uma transformação que desaloja, desrretorializa, mas assim é que se abre a possibilidade de territorializar novamente.
É o primeiro agenciamento do desejo, é a matriz da vida. A lógica da pulsão da vida (na Psicanálise), justamente este engate que precisa acontecer. E acho que este processo já foi disparado, pois Já me sinto diferente: estou em um escorregador gigante sem saber como e no que chegar, mas me deixando simplesmente escorregar. Sinto medo, sinto coragem, sinto tudo e um tudo entrelaçado. E quantos universos existem em um só, como é possível encontrar mundos distintos, quanta diferença, aqui é outro lugar como eu já tinha dito. Que maravilha de experiência que é este deslocar-se, marca a gente a ferro, tatuagem permanente na alma. Levarei para sempre, ou ao menos, enquanto durar minha nova paragem, mas acho que este caminho estará no outro, e no outro e no outro seguinte, um contendo o outro e sendo contido ao mesmo tempo. Ah e ainda acompanhado por um vento que faz refrescar, deliciando a alma, deixando um sabor de aventura de criança, ser dona de si, de novo, em outra terra.
Parei onde mesmo? Quê viagem!
03/01/2013 – Paris/França