Sempre fui afeita às causas dos Direitos Humanos em nossa sociedade. Principalmente, porque vivemos um processo de desintegração do social, em favor do individualismo e da competitividade cruel, na qual muitos não conseguirão nem ao menos estar na condição de competir, haja vista a grande exclusão em que se encontram inseridos (ou incluídos?).
Pois é, agora me vejo diante de duas causas importantes, que coloca em pauta duas categorias sociais, dignas de reivindicação de direitos humanos, que demandam um olhar especial de toda a sociedade: as crianças e os adolescentes; e as pessoas com transtorno mental. A criança e o adolescente já têm garantido em lei o seu pleno desenvolvimento biopsicossocial, sob responsabilização do poder público, bem como de toda a sociedade em geral. As pessoas com transtorno mental, igualmente, têm a garantia de ser tratadas e de circular livremente pela sociedade, com prioridade absoluta para a convivência familiar e participação na comunidade.
E agora? Retomando os acontecidos em Realengo, no Rio de Janeiro, vêm à tona todas as garantias de direitos humanos efetivadas em lei e a contradição da nossa realidade social. Pois, diante dos fatos, deflagrados e disseminados exaustivamente na mídia, tendemos a incriminar um sujeito transtornado mentalmente, culpabilizando-o individualmente pelo seu feito, em defesa (diga-se de passagem, legítima) dos adolescentes vítimas desse ato tão insano. Um sujeito que, ao que tudo indica, foi abandonado pela família desde a morte de sua mãe, foi alvo de discriminações sociais (não querendo aqui colocá-lo na situação de vítima, pois acredito que em tudo há mão dupla, temos sim responsabilidade e participação na nossa condição social), tem histórico de transtorno mental nos antecedentes familiares, tem uma história de vida indicativa de comportamento inadequado (isolamento social, idéias obsessivas) e que, ainda assim, não teve acesso a um tratamento adequado (hoje há uma gama de medicamentos, na rede pública, que poderiam ter contido a sua atividade delirante, como, por exemplo, Haldol e Olanzapina).
Por outro lado, há doze adolescentes que não tiveram a oportunidade de se desenvolver plenamente, que tiveram seus planos e projetos interrompidos abruptamente, e cujas famílias agora lutam incessantemente para transformar uma grande ferida em uma cicatriz, tudo por causa de um ato de insanidade: um sujeito que, em sua atividade delirante, se sente na obrigação de cumprir uma missão, de levar adiante um ato “terrorista”, em defesa de uma ideologia que não faz sentido a qualquer racionalidade.
Eis a questão: a quem culpar, já que vivemos em uma sociedade em que as culpabilizações são individuais? A família? Por abandonar esse sujeito transtornado e não exigir um tratamento para ele? Aos homens que venderam uma das armas? Pois, pode-se garantir que eles sabiam que a arma poderia ser utilizada para qualquer feito, embora disseram que se soubessem que era para cometer uma atrocidade dessas não teriam vendido? À escola? Por ter “permitido” que as discriminações se disseminassem e colocassem esse sujeito, já em condição de vulnerabilidade (devido a todo o seu histórico familiar e de vida pessoal), mais vulnerável ainda? À segurança pública? Por não ter criado uma política que pudesse efetivamente proteger o ambiente escolar dos insanos?
O dilema está lançado, mas as possibilidades conclusivas são várias: esse sujeito, que a la Dom Quixote se armou e foi à luta para “cumprir a sua missão” pode suscitar a ira social e mobilizar uma grande parcela da sociedade a exigir transformação; pode promover mudanças nos espaços escolares e na saúde coletiva, e fazer com que estes realmente cumpram a sua função de transformar pessoas, de produzir reflexões; mas pode, igualmente, confundir a transformação necessária com a produção de armaduras invioláveis em defesa da “sociedade do bem” ( O que já se sabe ser improdutivo. Trancafiar os que não se adaptam, isolar os que não conseguem viver adequadamente na sociedade, nunca foi a melhor solução. Retirar do convívio social o desadaptado só cronifica a situação).
A situação criada entre o transtornado e os inocentes mostra a toda a sociedade o quão vulneráveis somos todos, o quanto os processos de mudança social têm que passar por eixos de muito mais profundidade do que até então se tem feito. Não são apenas políticas educacionais, de desarmamento ou de segurança pública. São produções de reflexões acerca de que sociedade queremos. Que vínculos sociais queremos reforçar? que humanidade queremos que se perpetue?
A princípio, pensamos que um sujeito, totalmente maluco, que põe uma armadura de cavaleiro e resolve desbravar o mundo e conquistar terrenos só existe mesmo no romance de Cervantes. Mas, quando nos deparamos com um caso, como o da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro, vemos que muitos Dons Quixotes existem, que estamos vulneráveis e que precisamos fazer algo, pois as armas de hoje não são mais lanças, e nem os alvos um simples moinho de vento, podem ser crianças ou adolescentes.
No entanto, precisamos despir a racionalidade ocidental, a reificação dos processos sociais, para efetivamente propor soluções. São interfaces que precisam se conectar: saúde coletiva, educação, assistência social, segurança pública, todos fundamentalmente estruturados pela garantia dos direitos humanos. Pois, do contrário, o fato pode apenas tornar-se palco de espetacularização da mídia, e virar cinzas, assim como os livros de cavalaria de Dom Quixote foram queimados e ele continuou em sua missão de desbravar o mundo, se machucando, sofrendo, perdendo os dentes e encontrando Sanchos Panças que acreditavam e creditavam as suas fantasias.
Já se passaram vários meses da data da tragédia de Realengo e novas notícias surgiram, a saúde continua deficitária, as escolas continuam vulneráveis, crianças agora também se tornam ameaças e levam armas para o ambiente escolar, as drogas tomaram o palco das discussões midiáticas, as internações compulsórias voltaram a ser discutidas, novas formas de tratar o “não adaptado” podem surgir, mas podem se configurar apenas uma forma moderna de reerguer o muro sólido entre os “normais” e os “não normais”, na ilusão de que a linha que separa essas duas categorias é nítida e de que a “ordem” será estabelecida tão logo a sociedade esteja composta pela normalidade. Enquanto isso, muitos Dons Quixotes continuam a percorrer os seus sonhos e a desbravar o mundo, muitos Sanchos Panças ainda se alimentam de sonhos quixiteanos. E a sociedade, o que tem feito? Reflitamos o nosso papel nesse caos!