Introdução ao fenômeno dos filtros e algoritmos
Atualmente, é comum observar a presença de filtros de beleza em diversos contextos das redes sociais, sendo utilizados por amigos, influenciadores e usuários em geral. Esses filtros, que afinam o rosto, ampliam os olhos e uniformizam o tom de pele, aparecem em selfies casuais, vídeos curtos ou transmissões ao vivo. Em um primeiro momento, podem parecer meras ferramentas de entretenimento, associadas a brincadeiras com a própria imagem ou à experimentação de maquiagens virtuais. Contudo, os impactos desses recursos vão além da superfície digital.
Filtros de beleza operam por meio de algoritmos de realidade aumentada que ajustam traços faciais e corporais em tempo real, promovendo alterações como o afinamento do rosto e a suavização de marcas e assimetrias. Ao permitir a construção de uma aparência idealizada, essas ferramentas colaboram para o surgimento de identidades visuais que se distanciam significativamente da aparência real do indivíduo (Wang et al., 2019).
Do ponto de vista neurocientífico, estudos de neuroimagem indicam que o uso moderado desses retoques digitais ativa áreas cerebrais associadas à sensação de prazer estético. Entretanto, quando exagerados, os ajustes provocam respostas distintas: são acionadas regiões cerebrais relacionadas ao desconforto perceptivo. Tal fenômeno é descrito como “vale da estranheza” (uncanny valley), e refere-se ao momento em que uma imagem retocada torna-se quase humana, mas não o suficiente para ser percebida como natural, gerando, assim, uma sensação de inquietação em quem observa (Ota; Nakano, 2021).
Impactos na autoestima e no desejo sexual
A exposição constante a imagens idealizadas por filtros digitais tem sido correlacionada à diminuição imediata da autoestima e ao aumento da auto-objetificação, sobretudo entre mulheres jovens (Veras et al., 2025). Esse fenômeno revela como a tecnologia de embelezamento virtual ultrapassa o campo estético e passa a operar sobre a percepção subjetiva do próprio corpo. Ao reforçar padrões inalcançáveis, os filtros contribuem para o enfraquecimento da autopercepção positiva e a intensificação do olhar avaliativo sobre si.
Adicionalmente, a aplicação desses retoques visuais favorece o chamado “efeito halo da atração” — um viés cognitivo segundo o qual indivíduos considerados mais atraentes são também percebidos como mais confiáveis, competentes e desejáveis socialmente (Gulati et al., 2024). Quando aplicado a rostos filtrados, esse efeito não apenas altera a percepção alheia, como também cria expectativas irreais em relação ao próprio desejo e desempenho sexual. Influenciadores que permanecem mais de cinco horas diárias conectados às plataformas digitais relatam maior frequência de emoções negativas, demonstrando uma associação direta entre bem-estar emocional e níveis de aprovação social online (Azayem et al., 2024).
A construção de uma imagem corporal idealizada repercute diretamente na vivência da sexualidade. Muitas mulheres jovens, ao se verem comparadas constantemente a versões virtuais “aperfeiçoadas”, relatam insegurança durante momentos de intimidade. Medos relacionados à exposição do corpo não filtrado e à frustração de expectativas alheias contribuem para a evitação de experiências sexuais presenciais (Veras et al., 2025). Nesse contexto, os filtros não apenas transformam o rosto e o corpo, mas também alimentam fantasias que associam o prazer sexual a um padrão estético específico e digitalizado.
Essa lógica pode culminar em ansiedade de performance e frustração diante da distância entre a fantasia e a experiência vivida. O desejo passa, então, a ser condicionado à aparência digital, o que enfraquece a conexão com o prazer autêntico (Gulati et al., 2024). Em casos mais intensos, observa-se a diminuição do libido: jovens relatam sentir menor desejo sexual quando estão insatisfeitas com o próprio reflexo nas redes sociais — iniciando um ciclo no qual o filtro promete prazer, mas acaba por reforçar a vergonha corporal (Ota; Nakano, 2021).
Além disso, a busca por validação nas redes pode converter-se em um tipo de termômetro erótico: curtidas e comentários positivos passam a ser interpretados como indicadores de desejabilidade. Essa dependência de aprovação digital tende a amplificar quadros de ansiedade, rebaixar a libido e, em alguns casos, contribuir para a ocorrência de disfunções, como a anorgasmia (Azayem et al., 2024).
Dismorfia corporal e riscos psicossociais
A exposição continuada a versões idealizadas de si mesmo, mediadas por filtros digitais, tem sido associada ao surgimento de dismorfia corporal e de transtornos alimentares. O transtorno dismórfico corporal (TDC), caracterizado por uma preocupação excessiva com falhas percebidas na aparência física, apresenta prevalência de até 17% na população geral, chegando a 24% entre pacientes que buscam procedimentos estéticos — um indicativo da vulnerabilidade daqueles que desejam aproximar-se de suas “selfies perfeitas” (Pérez‐Buenfil; Morales‐Sánchez, 2025). Em consultórios, profissionais de saúde estética têm relatado um aumento expressivo nos casos de “dismorfia do Snapchat”: indivíduos que apresentam imagens filtradas como referência para resultados cirúrgicos, o que exige uma triagem cuidadosa e ética para o manejo de expectativas frequentemente irreais (Wang et al., 2019).
Caminhos de cuidado: autoconhecimento e detox digital
Diante desses impactos, surgem estratégias possíveis para mitigar os efeitos nocivos do uso constante de filtros. Uma delas é a chamada “alfabetização para filtros”, que propõe o ensino crítico sobre o funcionamento dessas ferramentas e sua influência sobre a autoimagem. Junto a isso, recomenda-se a adoção de pausas programadas no uso de aplicativos centrados em imagens, como forma de reduzir a exposição e a comparação contínua (Gulati et al., 2024).
Intervenções terapêuticas que integram práticas de mindfulness e abordagens somáticas também têm se mostrado eficazes. Essas práticas favorecem o reconhecimento crítico dos padrões digitais de beleza e promovem a reconexão com o corpo funcional, deslocando o foco da estética idealizada para uma relação mais autêntica e saudável com a corporalidade (Ota; Nakano, 2021). Em contextos clínicos, a combinação entre educação digital consciente e instrumentos de avaliação psicológica, como as escalas PANAS (Positive and Negative Affect Schedule) e ECR‐RS (Experiences in Close Relationships – Relationship Structures), contribui para a reconstrução de uma autoimagem mais coerente com a realidade subjetiva (Azayem et al., 2024).
Conclusão: em direção a um olhar mais realista
Promover o equilíbrio entre expressão criativa e saúde mental exige, acima de tudo, uma abordagem multidimensional. A transparência no uso de filtros e a integração de triagens psicológicas em contextos estéticos são passos fundamentais (Veras et al., 2025). Além disso, campanhas de conscientização devem revelar o funcionamento algorítmico dessas tecnologias e incentivar narrativas que valorizem a diversidade corporal.
Nesse sentido, é fundamental que as plataformas digitais adotem políticas claras de transparência algorítmica: sinalizar quando um filtro está ativo, oferecer níveis graduais de intensidade e implementar alertas sobre uso excessivo são medidas que podem favorecer escolhas mais conscientes por parte dos usuários (Ota; Nakano, 2021).
Paralelamente, profissionais da saúde — de dermatologistas a psicólogos — devem incorporar rotinas de avaliação emocional em seus atendimentos, especialmente quando há demanda por mudanças estéticas. Questionários rápidos, escuta acolhedora e atenção a sinais de insatisfação corporal podem prevenir intervenções que, em vez de ajudar, agravam quadros de ansiedade ou depressão (Pérez-Buenfil; Morales-Sánchez, 2025).
Nas escolas e espaços comunitários, é preciso investir em educação midiática acessível: explicar, em linguagem simples, como os filtros operam e por que eles afetam a percepção de beleza é um passo para fortalecer a autoestima desde a infância. Projetos que celebrem a pluralidade dos corpos — em suas formas, cores e idades — reduzem os danos da comparação e abrem espaço para a construção de identidades mais saudáveis (Gulati et al., 2024).
Por fim, cabe também aos influenciadores, desenvolvedores e pesquisadores a responsabilidade de promover narrativas que priorizem a saúde mental. Ao celebrar imperfeições naturais, compartilhar experiências de autocuidado e colocar o bem-estar acima da aparência, esses agentes podem transformar o espelho digital — antes distorcido — em uma janela para a aceitação, o respeito e a conexão humana.
Referencias:
AZAYEM, Ala’a K. et al. Beyond the filter: Impact of popularity on the mental health of social media influencers. Digital Health, v. 10, p. 1–16, 2024. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/20552076241287843. Acesso em: 30 abr. 2025.
GULATI, Aditya et al. What is beautiful is still good: the attractiveness halo effect in the era of beauty filters. Royal Society Open Science, v. 11, n. 240882, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1098/rsos.240882. Acesso em: 30 abr. 2025.
OTA, Chisa; NAKANO, Tamami. Neural correlates of beauty retouching to enhance attractiveness of self-depictions in women. Social Neuroscience, v. 16, n. 2, p. 121–133, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1080/17470919.2021.1873178. Acesso em: 30 abr. 2025.
PÉREZ-BUENFIL, Angel; MORALES-SÁNCHEZ, Alejandra. Prevalence of Body Dysmorphic Disorder: A Systematic Review and Meta-Analysis. Journal of Cosmetic Dermatology, v. 24, e70121, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.1111/jocd.70121. Acesso em: 30 abr. 2025.
VERAS, Eduardo Miguel et al. Influence of Social Media Filters on Plastic Surgery: A Surgeon’s Perspective on Evolving Patient Demands. Cureus, v. 17, n. 3, e80483, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.7759/cureus.80483. Acesso em: 30 abr. 2025.
WANG, Jordan V. et al. Patient perception of beauty on social media: Professional and bioethical obligations in esthetics. Journal of Cosmetic Dermatology, v. 00, p. 1–2, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1111/jocd.13118. Acesso em: 30 abr. 2025.