Ideal de corpo a partir de assimilação/aprendizagem pela mídia

Cai as fronteiras entre os famosos e seus seguidores. Os próprios jovens e adultos jovens – ou qualquer outro indivíduo comum –, hoje, se veem impelidos a aspirar à fama

A excessiva preocupação com o corpo, sobretudo no que se refere a um ideal de corpo para homens jovens, não é algo que tenha eclodido do século XX para o XXI e, logo, não se trata de uma invenção contemporânea e/ou disciplinar ao estilo foucaltiano, mas, antes, um modo de encarar a masculinidade que remete desde a Grécia Clássica (GOLDIHILL, 2007). Ainda assim, é inegável o papel que as modernas tecnologias de informação (através das mais variadas plataformas e mídias) exercem para que o corpo, na contemporaneidade, ocupe o lugar central na constituição de um modelo de bem-estar subjetivo (LIPOVETSKY, 2007) calcado em discursos tecnocientíficos e mercadológicos que chancelam o autocuidado como uma das instâncias inalienáveis deste período histórico (BAUMAN, 2008).

Neste contexto, os jovens contemporâneos superam o ideal de sucesso e felicidade não com a perspectiva de acréscimo de bens materiais e conquistas de longo e médio prazos, algo que pautava a Modernidade Sólida – numa referência que Bauman (2008) faz a busca por segurança que marcou os séculos XIX e XX – mas, antes, ao encontrarem no corpo a última fronteira para um dos mais disputados territórios pós-modernos, o uso dos prazeres (LOCKE, 1997). E esta dinâmica, em parte pode ocorrer por um processo de assimilação e/ou aprendizagem oriunda da mídia (DEBORD, 1997).

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Ora, se o Renascimento e, mais à frente o Iluminismo, é uma ruptura com aproximadamente mil anos de desprezo pelo corpo, num extremo que Nietzsche (2005) identifica como o niilismo e a moral asceta cristã, por outro lado, num desdobramento sem precedentes, o momento atual é de uma afirmação da imanência onde a dialética da positividade – num cenário onde se é proibido proibir – (HAN, 2015) aponta para o corpo como uma das últimas fronteiras de autorrealização – num cenário de defesa da saúde e educação pelo corpo –, já que a felicidade como algo a ser alcançada pelo corpo coletivo, pela sociedade como um todo, parece ser uma utopia que foi enterrada desde a queda do Muro de Berlin (PONDÉ, 2014).

Vale ressaltar que ainda nas décadas de 70 e 80 do século XX (FOUCAULT, 1999) observou-se que as tentativas de padronização e, depois, realce dos corpos configuraram-se, na verdade, como uma espécie de docilização, que nada mais é que uma tentativa de a sociedade exercer poder sobre os corpos individuais dos sujeitos, seja para docilizá-los, no sentido de discipliná-los a um conjunto de regras, seja para que estes alcancem o máximo de eficácia dentro do sistema liberal de produção.

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A configuração destas relações de forças ocorre de maneira sistêmica, onde ainda não se pode dizer que as diretrizes sobre um ideal de corpo saem exclusivamente desta ou daquela instituição de caráter hegemônico. Antes, é fruto de acordos que envolvem vários dispositivos. Não se pode negar que entre estes dispositivos se destacam os produtos midiáticos de teor pegagógico – aqui apontados como filmes, programas de TV, novelas, jornais, telejornais, webjornais, propagandas, tutoriais em redes sociais eletrônicas, etc –, que apresentam modelos identitários que, de longe, mostram um sujeito para além de um ‘homem de massa’ (EHRENBERG, 2010), agora revestido de uma performance aparentemente individual – só aparentemente, pois a performatividade deixa de ser original quando o que a move, ou seja, o desejo de realização pessoal pela espetacularização da própria vida (DEBORD, 1997) não se restringe mais a uma classe artística distante. Qualquer um, pelo disciplinamento adequado em relação ao corpo e, seguidas as formas de interações nas mídias sociais eletrônicas, estaria apto a alcançar tal patamar. Surge a era do protagonismo. Neste caso em particular, é de se chamar a atenção a quantidade de personais trainers, por exemplo, que têm perfis em redes sociais online de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários, e que exercem discursos de autoridade diante de uma plateia virtual que replica tais categorias para suas relações cotidianas, notadamente no que se refere a construção de um ideal de corpo.

Neste ínterim, para Dornelas; França (2014) a ostentação se generaliza entre os jovens de todas as camadas sociais. Um marco foram os chamados “rolezinhos” ocorridos em São Paulo-SP em 2013, quando muitos jovens de periferia – negros, em sua maioria – ocuparam alguns dos maiores shoppings da capital paulista para fazer uma celebração ao consumo. Isso ocorre porque parte da música consumida por estes jovens – o funk, sobretudo – não mais faz referência exclusiva a atos de resistência e denúncias sociais. Os modos de inserção, de aceitação pelo outro agora são atravessados pela esfera do consumo. Mesmo que não ocorra o ato em si do consumo, estar num templo do consumo, entre amigos, já cria a esfera de pertencimento. Desta forma, na esteira das tentativas de se fazerem reconhecidos e levando-se em conta que o consumo substitui simbolicamente a cidadania (KEHL, 2012), os jovens não apenas têm que comprar, eles precisam se adornar e tornar públicos estes adereços (DORNELAS; FRANÇA, 2014), seja através de encontros presenciais, seja através da publicização em redes sociais eletrônicas.

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Por trás deste movimento – o que em alguma medida pode configurar, também, parte da motivação da procura por ideais de corpo – é a busca do sucesso como meta. Desta forma, cai as fronteiras entre os famosos e seus seguidores. Os próprios jovens e adultos jovens – ou qualquer outro indivíduo comum –, hoje, se veem impelidos a aspirar à fama, afinal um dos maiores medos da contemporaneidade é a invisibilidade (BAUMAN, 2007). Neste sentido, a ostentação tem sido traço balizador de socialização, configurando como poder de barganha e indicativo de percursos que almejam o sucesso, mesmo que não se possa saber, ao certo, se tal contenda irá se concretizar.

Sobre este tema Baudrillard (1995) sustenta que o consumo pode se configurar como um desejo de ascendência social, já que se configura como uma oportunidade rápida de inclusão. O consumo material ou cultural como compulsão, por esta ótica, funciona como um compensador das deficiências sociais historicamente estabelecidas, possibilitando a aparente ascensão de classe. Ostentar pelo consumo ou afirmação do corpo como instrumento de poder (BIRMAN, 2012), assim, são tentativas de se criar espaços de afirmação e de reconhecimento (PEREIRA, 2013).

Já a pedagogia do corpo (EHRENBERG, 2010), que passa a ser medido, aumentado ou diminuído (no sentido de obter hipertrofia ou perder peso) e tonificado, antes mesmo de ser amplamente disseminado nas redes sociais foi a tônica de ideais corporificados em filmes e, no campo empresarial, saudado como exemplo a ser seguido no que tange aos protocolos de ascese que levam a mudanças rápidas no mercado de trabalho, pois o cuidado com o corpo é um dos exemplos da materialização da hiper-racionalização das práticas sociais (BIRMAN, 2012).

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É possível mudar o corpo com relativa facilidade, num sistema de autogestão que realça a individualidade e o sentido de protagonismo pessoal, também é possível impingir tais transformações em outras esferas da vida, como no campo afetivo e profissional, e nas relações de comunicação, agora mediadas pelas mídias sociais eletrônicas (BAUMAN, 2008).

Mas, neste ínterim, indaga-se qual o peso dos produtos midiáticos sobre a base subjetiva dos jovens, e se é possível aferir que tais produtos midiáticos impactam na forma como os sujeitos traçam suas estratégias de vida. Para Ehrenberg (2010) e Chauí (2006), estes produtos – notadamente os que estão de acordo com um ideal de bioascese (excesso de autogerenciamento com o próprio corpo, que gera autorreferencialidade subjetiva) se assemelham aos programas de treinamento dos atletas e, por sua vez, podem se configurar como um convite implícito a uma dinâmica performativa por parte do sujeito. As redes sociais eletrônicas, neste contexto, se apresentam como um cenário perfeito de troca do espaço privado pela dimensão da exposição pública, já que o protagonismo não pode ocorrer às escuras, é necessário publicizá-lo. Ainda não se pode aferir com exatidão, no entanto, qual o real impacto dos produtos midiáticos sobre este ideal de corpo, embora se saiba que a mídia produz simulacros (CHAUÍ, 2006) que acabam servindo de fontes balizadoras de padrões comportamentais, em que pese a pouca quantidade de estudos sobre o tema no país.

De qualquer forma, no cenário sociológico (BAUMAN, 2008) e filosófico (DEBORD, 1997) se percebe, através de métodos dedutivos e estudos de casos, que à medida que as sociedades se desenvolvem tecnologicamente elas tendem a comportar – ou até mesmo a estimular – a espetacularização individual das vidas de seus componentes, que se alternam entre ‘atores’ e ‘espectadores’ numa dinâmica que se retroalimenta e se expande a uma velocidade relativamente constante. Desta forma, o corpo como palco de representação de um modo de ser não mais se restringe aos ambientes puramente esportivos. Ele é perseguido nas corporações, nas relações afetivas e, também, nos modelos identitários interpelados pelos produtos midiáticos (EHRENBERG, 2010).

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O corpo esculpido então passa a ser a explicitação de um ideal de realização do sujeito, ideação esta implícita na dinâmica de forças políticas e nos discursos que permeiam as narrativas midiáticas, particularmente a partir dos heróis retratados nos cinemas, nos protagonistas de programas de TVs e nos tutoriais diversos de redes sociais eletrônicas, onde o discurso de autossuperação ganha a tônica e norteia o paradigma da autorreferencialidade que, em casos extremos, pode levar ao narcisismo patológico (FREIRE COSTA, 2004).

Assim, um corpo esculpido e tonificado pela ascese resultante de atividades físicas regulares, estimuladas pelos produtos midiáticos com teor pedagógico, configura-se então como uma forma de capital pessoal (GOLDENBERG, 2010) – assim como o processo educativo, em si, já se inscreve em tal cenário – que na contemporaneidade pode ser exaltado de diferentes formas, notadamente a partir de uma comunicação não linear, constituída a partir da exaltação de um sujeito individual, que produz e (re)produz a si próprio, sobretudo na forma como se apresenta esteticamente para o mundo.

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Referências

BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. São Paulo: J. Zahar, 2008.

BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

CHAUÍ, M. Simulacro e poder. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DORNELAS, R.; FRANÇA, V. No Bonde da Ostentação O que os “rolezinhos” estão dizendo sobre os valores e a sociabilidade da juventude brasileira? Revista Eco Pós, v. 17, n. 3, 2014. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/1384>. Acesso em: 02 dez. 2017.

EHRENBERG, A. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2010.

FOULCAULT, M. A ordem do discurso. 5. ed. São Paulo: Loyola, 1999.

FREIRE COSTA, J. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

GOLDENBERG, M. O corpo como capital. Rio de Janeiro: Estação das Letras, 2010.

GOLDHILL, S. Amor, sexo & tragédia: como os gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

HAN, B. C. Sociedade do Cansaço. São Paulo: Vozes, 2015.

KEHL, M. R. A juventude como sintoma da cultura. 2012. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/166494178/A-Juventude-Como-Sintoma-Da-Cultura>. Acesso em: 01 dez. 2017.

LIPOVESTKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LOCKE, D. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Pensadores).

PEREIRA, A. B. Rolezinhos: o que esses jovens estão roubando da classe média do Brasil? [25 dez. 2013]. Portal Geledés. Entrevista concedida a Eliane Brum. Disponível em: <www.geledes.org.br/em-debate/colunistas/22538-rolezinhos-o-que-estes-jovens-estao-roubando-da-classe-media-brasileira-poreliane-brum>. Acesso em: 28 jan. 2014.

PONDÉ, L. F. A era do ressentimento. São Paulo: Leya Brasil, 2014.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.