Incluir e socializar ou normalizar os anormais – Eu deficiente

A falsa segurança de normalidade, inserido e socializado desmoronou quando a condição antes tida como “normal”, mudou radicalmente para uma condição diferente, precisando de um auxílio biônico para ouvir melhor. Não sendo isso os monstros das minhas madrugadas, o contraste teria vários nomes, viria de várias formas, estaria em vários lugares, teria várias faces. O nosso olhar se prende ao cerne de algo, quando somos pego por uma força que nos atrai, algo tão forte que construído pelo tempo em nós corpos ambulantes, torna-nos resistentes comparados aos heróis de quadrinhos. Foi quando surgiu em determinada conversa, sobre a vontade de fazer uma pós, que um amigo falou sobre a possibilidade de inscrever-me como aluno especial no Programa de Pós-graduação do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da FFLCH, USP, mais conhecido como Diversitas, que surgiu em mim a força de tentar.

A viagem semanal que faço a cidade de São Paulo deslocou meu corpo de um costume completamente diferente do que era de praxe, para essa cidade que atrai pessoas do mundo inteiro, em que ser normal ou anormal não faz muita diferença. Os corpos que geram imunidade e sobrevivem diante do determinismo, onde pessoas não procuram saber o nome do outro nem ao menos se cumprimentam, assim o povo dessa metrópole socializa-se e vive nessa grande bolha.

Está em São Paulo seria um sonho realizado, embora já tenha tido outras passagens por esta cidade, mas foi no Programa de Pós-Graduação que passei a ter um convívio mais próximo da cidade paulistana. Aos poucos, fui aprendendo a conviver com um trânsito absurdo, andar em ônibus, trem e metrô lotados, onde por muitas vezes somos jogados literalmente para fora na saída. Entender o que estava acontecendo comigo, nessa cidade, tornou-se visível a partir da disciplina Corpo, Conhecimento e Compreensão na Cidade, este corpo sou eu, tendo que me adaptar, conhecer, compreender esse espaço. O que antes era visto apenas como uma oportunidade de socializar, incluir pessoas, abriu-se o leque sobre necessidades maiores.

A experiência inicial, todas as semanas, de fazer parte de um espaço, de diversidade densa, contraste claros, aprendendo sobre os reflexos de experimentação que os corpos passam é um processo de desconstrução do pensamento do “eu corpo” pertencente à coletividade que começa logo nas primeiras aulas.

Fonte: encurtador.com.br/iklpT

A interdisciplinaridade de conversação, a experiência em conviver com a diversidade explicita que há na cidade, instiga mais ainda uma luta alimentada a alguns anos por inclusão e socialização como fundamental a dignidade humana. Segundo o que está elencado no escopo da Constituição de 1988, o que é percebido na cidade mais desenvolvida do Brasil é o desrespeito avassalador a esse direito.

Uma das leituras iniciais feitas neste processo foi Courtine (2013), Decifrar o Corpo, a partir de então entender o corpo como meio e não dissociá-lo da imagem e verbo. Enquanto a linguística e imagem é indícios fortes de identificação, o corpo não seria apenas o meio, mas também como suporte de imagem, existindo um corpo no meio que conversa de várias formas. O paralelo às minhas observações foi se provocando, de corpos com deficiência em Palmas, para corpos zumbis; linguagem de sinais, para linguagem de quem pertencem às favelas; imagens de corpos que dormem ao céu aberto expostos ao perigo, para minha casa simples em Palmas, um tripé que dialogou comigo no experimento inicial do meu corpo.

Assim tenta-se normalizar esses corpos dentro de seus espaços, assim como na cidade parisiense, em que os corpos eram usados como atrações para burguesia, expostos para trazer prazer aos poderosos. Quanto mais bizarro fosse a deficiência e maior capacidade intelectual tivessem, mais pessoas seriam atraídas. Uma prática de superveniência pelos próprios familiares desses corpos, tudo por um retorno financeiro.

Nos dias atuais a exposição tem outra roupagem, perguntei-me algumas vezes, enquanto estudante, com holística acadêmica, científica de pesquisador, se não seria um meio de blindagem, separar-me das imagens que falam; não me relacionando com imagens internas e externas ao ponto de me sentir um corpo incluído, nessa coletividade; assim como outros grupos distintos que apreciam esses corpos chamando-os por outros nomes.

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Nas idas e vindas a cidade São Paulo, balbuciei comigo se na condição de pessoa com deficiência, eu não estaria me distanciando daquilo que meu próprio corpo sofre, com discriminação, rechaço, olhar analítico, essa maneira incineradora que se tem para com as minorias. Ao me deparar como essa cidade, que se difere muito da minha, na diversidade, estrutura, economia, cultura, procurei não me ultrajar de uma máscara para viver esta experiência.

É inaceitável admitir que dentro de um mesmo espaço, a diferença que há de proteção, dignidade, seguridade para esses corpos sejam tão grandes e que a vitrine a que são expostos tem outros nomes, arquitetura, patrocinadores, desde que continuem como entretenimento.

As quartas-feiras, no meu translado para universidade, vivenciei experiências incríveis, em todos os meios de transportes, seja no ônibus do aeroporto de Guarulhos para Congonhas, ubers, trem, metrô e transporte coletivo. Sempre que me identificava, surgiram vários comentários e perguntas, dentre eles “nunca ouvir falar em Palmas”, “Tocantins ficar em qual Estado?”, “estudar na USP não é para qualquer um”. Fiquei abismado quando certo dia ao sair com um colega do curso, dirigi-lhe a pergunta, se ele não se sentia incomodado com tantas pessoas jogadas pelas ruas, enquanto passávamos por alguns. Ele respondeu que não, que ainda não tinha visto ninguém; era comum aquele tipo de situação em São Paulo.

Visitar durante as minhas aventuras, vários locais, na busca de decifrar corpos, de entender os movimentos da cidade; sair com demais colegas para estudos em campo, avenida paulista, Luz, Brás, e Santo Amaro, que virou minha segunda casa; viver essa experiência foi desafiador, as diferenças mudam de nomes, mas as essências dos corpos continuam as mesmas. Tem algo neste deslumbre experimental, que nos une independente do Estado brasileiro em que vivemos. É a maneira de como nossos corpos são usados, para interesse estatal ou de quem comanda essa máquina.

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Começa-se a perceber características antes não vistas, de um corpo que entra em movimento de acordo ao ambiente, para que não seja destruído, esmagado, rechaçado, excluído por não ser adaptável como outros. Quando se tem no imaginário, a perceção de quanto maior o desenvolvimento, mais esses corpos estariam incluídos, socializados, normalizados. No entanto a verdade salto pelos olhos, a gente desconstrói o velho discurso, de que o Brasil é do povo brasileiro.

O multiculturalismo territorial brasileiro, tem sido preponderante na disseminação do entendimento trazido pelos tratados, convenções e estatutos e todas as formas, garantindo a diversidade e igualdade como princípios fundamentais; para a democratização por meio de políticas públicas; alcançando a efetivação. Isso é visto no Brasil como algo muito complexo, devido o histórico de políticas públicas fragilizadas e inoperantes. O desafio, talvez, seja desconstruir o ensinamento existente por décadas de não exclusão, mas sim inclusão.

A morosidade do Estado em cuidar de assuntos inerentes ao seu povo, em baila, o cidadão que sofre a discriminação e a sua inclusão no convívio social, com portas abertas para recebê-lo na educação; com programas voltados para atender suas necessidades básicas, preparando-o para a vida; de maneira plena. São direitos garantidos na constituição e também estabelecidos nas diretrizes da educação nacional. É o mínimo que se espera de um Estado democrático e de uma governança com o povo e para o povo.

Fredrich Müller (2000), no livro “Quem é o Povo?”, trata em um dos capítulos sobre “Povo” como ícone, correspondente àquela situação que, em termos jurídicos, já não se fundamenta em nenhum tipo de relação entre governantes e governados. A falha no regime político-jurídico deste povo, em que se visualizam brechas na legitimidade da democracia, mesmo existindo um povo ativo ou até mesmo em um regime em que o povo não legitima juridicamente, mas é chamado a participar concedendo tal legitimidade.

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A manipulação ideológica, neste caso, está escancarada na palavra “povo”, usada pelos seus governantes, para que pareçam que atuam em nome dos seus cidadãos, sendo que não o fazem. Neste sentido, mistificam o povo como entidade abstrata, genérica, apoiadores do regime político-jurídico, apenas com concepções ideológicas. Passando a ser utilizado um discurso político do povo, para o povo, pelo povo; servindo apenas como uma ideologia para dominação das massas dentro do Estado.

Müller trata em um dos capítulos sobre exclusão, talvez este seja o capítulo mais importante do livro, já que é nele que o autor fala acerca da busca pela legitimidade democrática, como uma forma de se acabar com a exclusão social, política, econômica e jurídica de parcelas da sociedade.

Pode haver situações ocasionadas por condicionantes econômicos ou sociais, em que parcelas da sociedade, ainda que juridicamente incluídas, acabam por não ter acesso aos sistemas prestacionais estatais.

Quando a situação de parcela da sociedade chega a esse ponto, não se pode falar mais de simples “marginalização”, mas sim de “exclusão”, no sentido de que esses grupos populacionais dependem (negativamente) das prestações dos mencionados sistemas funcionais da sociedade, sem que tenham simultaneamente acesso às mesmas “(no sentido positivo)”.

Fonte: encurtador.com.br/giFL7

Há forte interferência da esfera econômica no dia a dia dos cidadãos e esta interferência, muitas vezes, traz reflexos também para a própria legitimação da democracia.

O contraste visto em uma cidade, tida como a mais evoluída economicamente do país, em que tem em suas ruas, tantos corpos perambulando, excluídos, vivendo completamente fora de um contexto de dignidade, respeito e valoração, põe em questão o que seja uma democracia.

Quanto a Palmas, uma cidade tida como a mais nova capital dos pais, diferencia-se em muito de São Paulo; seja à economia, educação, tecnologia, emprego, saúde; além dessas díspares situações, existe ainda uma grande discriminação da pessoa com deficiência, do idoso, homossexuais, transexuais, índios, quilombolas, negros etc… Uma minoria que ainda desconhece algumas conquistas, como existente em São Paulo, a exemplo da casa de apoio aos transexuais, situada nas proximidades da cracolândia, que apoia e cuida daqueles que a procura.

Em geral, a experiência adquirida pelo meu corpo, diante dos contrastes existentes, entre ambas as cidades, tem afetado o meu conhecimento e consequentemente meu crescimento pessoal, o que ocasionou várias perguntas, quanto a percepção e decifração do corpus na cidade? Do indivíduo pertencente a essa coletividade? De como meu corpo se sentiria, incluído, normalizado enquanto eu deficiente?.

Fonte: encurtador.com.br/ensO5

Referência:

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 2000.

Graduado em Direito pela Faculdade Serra do Carmo Tocantins; atualmente advogando; Membro da Comissão da Pessoa com Deficiência, OAB/TO; pós-graduação em Direito Imobiliário, Notarial e Condominial – INESP; estudante da pós-graduação em Direito Administrativo e Processo Administrativo – UFT; estudante especial no Programa Diversitas - USP