Certa feita fui convidado para ir a casa de um general da reserva… remunerada. De chofre, e intrigado, e comunista, perguntei-lhe: – E há general da reserva… não remunerada? Fosse no tempo da ditadura militar teria sido preso.
É que Sua Excelência queria (queria, sim, general remunerado não deseja, QUER!), sua excelência desejava ouvir minha opinião sobre o seu som musical de muitos dólares: um conjunto Marantz valvulado – pré-amplificador, amplificadores e divisor de frequência – cujos “knobs” e painéis frontais tinham sido mandados banhar a ouro! E o três estrelas do exército nacional salve! salve! usava um par de luvas brancas para acionar os controles…
Freud classificaria esse caráter como exibicionista maníaco-depressivo psicálgico. Porque nós substitutivos musicistas, qualificávamo-lo de “audiota”, ou seja, aquele que adora, acima de tudo, o equipamento de som.
É verdade que a música é sobretudo uma forma de descarga afetiva; ela não existe senão nas nossas cabeças, sejam cabeças que sabem ler os gráficos das partituras, sejam cabeças que decodificam as ondas sonoras em forma de eufonia musical. Porque um trompete, uma flauta doce etc .não são música senão a partir dos nossos neurônios; e nem tanto de nossos ouvidos. Porque cada ouvido ouve o que suas emoções necessitam ouvir; ou sua curva audiométrica permite…
E o gosto é isto: necessidades emocionais. Eu, por exemplo, não tolero a voz nasalada e melosa do Roberto Carlos associadas com sua pantomima repetitiva de “grandes emoções”. Mas conheço pessoas que têm todas as paredes de sua casa “adornadas” com retratos tipográficos de seus do Roberto shows e apresentações públicas. Embora meu afeto negativo não chegue ao ponto de pintar minhas paredes de preto, que é a ausência da cor…
Não considero Beethoven um músico inovador senão subversivo, subverteu a vida da nobreza preguiçosa e fútil com barulho ensurdecedor musicado; são assim as suas Sonatas para piano e suas Sinfonias que mais traduzem um espírito conturbado e raivoso do que um músico consciente. Diferente de Bach para quem a música era um problema matemático a resolver – e resolveu-os todos com extrema competência sem utilizar da enganação da melodia. Compôs Bach música pura sem se importar com os leitmotiv, ou seja, com os temas, com os dramas, com uma personagem em particular, uma situação, um sentimento, um objeto. Compôs Matemática.
Igual e ao mesmo tempo diametralmente oposto a Mozart, que compôs sonatas, concertos e sinfonias, comédias bufas, dramas densos e missas insossas, tudo isso independente de seu estado de espírito, suas desgraças pessoais, suas dúvidas filosóficas, suas alegrias fugazes e suas tristezas constantes. Compôs Música.
Beethoveen criou o barulho musical para incomodar o dolce far niente da nobreza ociosa. Seus tímpanos na Terceira Sinfonia mais parecem o troar dos tambores de pau oco dos índios a ecoar mata a dentro para anunciar aos inimigos a guerra.
Ora, enquanto Bach era um “homem sério”, um cientista sereno a pesquisar a natureza e os mistérios dos sons cujos laboratórios foram as igrejas em as quais trabalhara, mas a mais-valia do que produzia não estava a serviço da catequese das almas ímpias mas a favor da correta solução das equações matemáticas; enquanto Mozart, garroteado pela tirania do pai, pressionado pelas exigência da mulher, sofrido e endividado e às vezes embebedado, isso nada obstante compôs música pura em que a beleza não está ligada à situações externas ou internas mas ao bom encadeamento e a eufonia dos sons e fraseados musicais; enquanto Beethoven bombardeava com acordes fortes e tempestuosos seus inimigos que eram todos que lhe cercavam, apostrofava contra a Natureza que lhe houvera sido mesquinha ao roubar-lhe o prazer de ouvir, e por isso rugia contra a burguesia bem-sucedida que se banqueteava em convescote enquanto ele, a um canto, solitário e desprezado, tocava sua música para sobreviver.
Ora, o que ouvimos hoje em nossos sistemas de reprodução do som não são as músicas desses gênios e sim o gosto exibicionista dos maestros. Veja, ainda ontem ouvi a Sinfonia nº 38 de Mozart, conhecida com “Praga”, ouvia-a em três gravações diferentes e em cada uma o maestro se exibia diferente. A interpretação do KV 504 (sinfonia nº 38) que mais apreciei foi do maestro Christopher Hogwood, com a “The Acatemy of Ancient Music”; seguida da interpretação do condutor Jaap Ter Linbden, com a orquestra “Mozart Akademie Amsterdam”, da coleção das Obras Complestas” editadas pela Brilliant Classic. A pior das interpretações inda que a mais “espetacular” foi a do DVD “A Mozart Gala”, com a Filarmônia de Viena conduzida pelo impetuoso e jovem maestro Daniel Harding.
É, gente, foi sensato o grande regente Bruno Walter que, quando completou quarenta anos de regência, exclamou, satisfeito: “Agora já posso tocar Mozart”!