Há algum tempo atrás, mais precisamente seis ou sete meses atrás, numa das minhas várias horas gastas vagando nesse mundo de informação (não necessariamente útil) conhecido como internet, me deparei com uma determinada promoção de várias obras literárias em um grande site comercial bem conhecido dos mares da “web” e, curioso, decidi “garimpar” algo que fosse realmente interessante e valesse o esforço de um clique e alguns dias de espera. Foi quando me deparei com um livro que me foi recomendado como leitura por um colega da época na qual ainda era acadêmico de História, e que havia sido recentemente refrescado na minha memória por outra colega do curso de Medicina. O “tão” famoso livro foi escrito por Erasmo de Roterdã com o título “Elogio da Loucura”, que, resumindo de uma forma que não faz nenhum jus à grandeza da obra, narra de uma forma bastante cômica e absolutamente ácida, sobretudo para a época, como a Loucura, aqui tratada com letra inicial capital, é encarada como uma personagem, a qual entremeia-se em todas as decisões e fases dos homens, e como suas “vozes” sempre estão por trás de todas as ideias “sensatas”.
E ao terminar de ler esse livro, o que me tomou algumas boas horas de leitura, não pelo tamanho do livro, que em si é pequeno, mas pela profundidade do que era passado, lembrei-me de outra obra, que durante toda a minha juventude havia sido negligenciada veementemente por mim, sobretudo por ser alvo constante de comentários da minha professora de Literatura: “O Alienista” escrito por Machado de Assis. Pois bem, o livro foi devidamente destacado da minha prateleira de livros, desempoeirado e devidamente lido, como manda o figurino. E foi durante a sua leitura que dois fatos chamaram a minha atenção: primeiro o quanto o livro é gostoso e fácil de ler, mostrando que todo meu ódio e aversão cultivados durante meus longos três anos de ensino médio eram infundados, e segundo que a situação um tanto caricata mostrada no livro, assim como no caso do “Elogio da Loucura”, é bastante atual se observarmos a nossa sociedade, sobretudo a classe médica.
Nesse livro temos como personagem principal Simão Bacamarte, um médico psiquiatra brilhante e altamente conceituado nas terras Luso-Espanholas, que ao mudar-se para a pequena cidade de Itaguaí decide fazer um grande estudo sobre o comportamento “enlouquecido”, usando como objeto de estudo os habitantes daquela cidade. Para tal decidiu considerar que:
“-Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia.” (ASSIS, 2004, pág. 28)
Os problemas do Dr. Bacamarte começam justamente por conta dessa definição de loucura, o que o leva, em determinado ponto do livro, a simplesmente internar todos os habitantes de Itaguaí, pois nenhum deles, a seu ponto de vista, estavam a par de todas as faculdades mentais “normais”. Infelizmente cabe à curiosidade de cada um procurar o desfecho desse conto, posto que meu trabalho aqui não é resumir nem criticar esta obra, é somente mostrar que se trata de algo que vale a pena utilizar algumas horas de leitura.
E durante a leitura dessa obra me deparei com uma situação que até hoje é possível encontrar, sobretudo no âmbito médico, e que cria, assim como no livro, mais problemas do que soluções. A situação que encontramos hoje é a de querermos simplificar ao máximo tudo que conhecemos, de criar definições, padrões, modelos e o que mais que seja para tudo que a nossa sociedade cria, compartilha e vive, quase que de uma forma matemática: Pessoa + Sintoma – Saúde = Doente. Em partes isso é algo que facilita a comunicação entre os diversos profissionais, e facilita inclusive o entendimento por parte das pessoas menos instruídas nas áreas específicas. Mas será realmente que a solução é simplificar?
Na Psiquiatria, e aqui falo como estudante de Medicina com conhecimentos superficiais na matéria, simplificar e querer definir padrões para determinadas doenças é caminhar perigosamente sobre ovos (e em algumas é como andar de patins sobre eles). Até que ponto devemos considerar um comportamento como patológico, qual seria esse tênue limite entre a loucura e a sanidade? Será que todo comportamento exagerado, seja em qualidade ou quantidade realmente é o que está caracterizando um distúrbio, ou seria aquele comportamento que está sendo omitido ou diminuído?
Aos médicos de hoje, e nesse ponto me sinto totalmente incluído, cabe exercer uma profissão que está sempre entre a cruz e a espada, posto que o acesso à informação hoje esteja muito fácil e rápido, seja para o próprio médico, seja para o paciente. E para completar nosso quadro totalmente caótico, temos que ser eficientes ao máximo, atendendo literalmente um “mar de gente” em turnos de 8 ou 6 horas diárias. Mas o que isso teria a ver com o assunto do texto? Bem, isso eu explico.
Para sermos eficientes, e aqui entendemos eficiência como o exercício da medicina com uma boa taxa de sucesso diagnóstico usando o menor tempo possível, tendemos a criar padrões, esquemas, fluxogramas e quaisquer outros meios que nos facilite detectar e diferenciar as inúmeras doenças que acometem o ser humano. Agora se conseguimos confundir várias doenças através de sinais e sintomas claros e evidentes, tais quais as inúmeras afecções infecto parasitárias, com uma margem de erro grande entre elas, imagine o quanto o risco do erro aumenta quando trazemos essa “sistematização” para o campo da Psiquiatria.
Um diagnóstico de uma doença psiquiátrica é um baque e tanto, seja para o próprio paciente, seja para sua família. É algo que marca, e geralmente de forma muito negativa, a vida dessa pessoa. Ele nunca mais será visto “normalmente” pela sociedade, será tachado como louco, descontrolado, incapaz e outras várias mentiras criadas única e exclusivamente por um diagnóstico. E é justamente nesse diagnóstico que cabe ao médico, como “representante social do conhecimento médico”, usar do bom senso, mas, sobretudo, com a atenção.
Aquilo que era apenas uma necessidade de uma conversa, um desabafo do paciente, pode muito bem acabar sendo enquadrado como uma síndrome qualquer, que o médico simplesmente decorou, e ao fazer a sua consulta ignorou aspectos pessoais e direcionou toda a sua “visão” apenas a palavras que para ele seriam “sintomáticas”. Então, aqui fica claro o quanto o médico Alienista (que significa “Aquele que trata os Loucos”) acabou por virar um médico Alienado (que significa “Pessoa que não tem consciência do que acontece”), e tudo por causa da necessidade de se criar padrões eficientes para tudo que “conhecemos”.
Machado de Assis, já descreve Simão Bacamarte dessa forma, e isso em 1882, data da primeira publicação do livro “O Alienista”. De lá para cá a situação continua a mesma, isso se não piorou. Creio que a maior lição que podemos tirar de uma situação como essa, é de que o paciente, seja psiquiátrico ou não, não pode e nunca deve ser tratado como uma máquina, que substituindo uma peça falha voltará à plenitude de suas funções. O bom profissional da área médica tem sim que levar em conta o fator tempo de atendimento, mas nunca torná-lo o mais importante deles. Uma consulta bem feita, um diagnóstico bem embasado é algo que vale sim alguns minutos a mais com esse paciente, que com a maior das certezas, responderá melhor ao tratamento, diminuindo o número de visitas ao médico, o trauma causado pelo diagnóstico e etc.
Enfim, ao ler o conto de Machado de Assis pude perceber que a crítica por ele feita é bastante válida e atual, e durante os encontros semanais para a disciplina de Psiquiatria um ponto sempre presente são os riscos que corremos ao querermos padronizar e institucionalizar todas as formas de conhecimento que nos são oferecidas, e como um simples discurso cheio de lacunas acaba por erodir-se através de seus próprios erros ideológicos. Ser profissional é muito mais do que simplesmente saber dizer se um paciente tem isso ou aquilo, devemos ter a sensibilidade de procurar em nossos pacientes a motivação e entender como essa “bagagem” influenciou-o. Sejamos sim eficientes, mas, sobretudo, sejamos humanos e não máquinas!