Por que somos monogâmicos? Reflexões sobre a prática da monogamia em nossa sociedade

O ideal do relacionando monogâmico obtendo como final feliz o casamento
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Afinal, por que somos monogâmicos? Refletir sobre a prática da monogamia e não-monogamia em uma sociedade mononormativa carregada de valores patriarcais e de estereótipos de gênero é uma tarefa de certo modo difícil. Podemos responder a pergunta inicial com uma simples frase: “porque é o certo!”. Mas de onde veio o conceito de certo ou errado na forma de se relacionar afetivo-sexualmente? Em primeiro lugar, gostaríamos de ressaltar que esta reflexão não se refere a determinar o que é certo ou errado nos padrões de relacionamentos, mas sim, abrir o debate sobre a forma de relacionamentos possíveis. 

Desde sempre nos é ensinado modos de nos relacionar em sociedade, assim, entende-se que comportamentos sócio-afetivos-sexuais nos são ensinados. Em uma sociedade baseada em valores patriarcais, religiosos, heteronormativos é difícil pensar que existem outras possibilidades de nos conectar afetivo-sexualmente com o outro. Para ser feliz precisamos: crescer, estudar, casar, ter filhos. Esta é a norma que nos é ensinada. E de onde vem esta norma?

Nossa primeira reflexão parte da ideia do amor romântico que foi popularizado no século XIX o qual pode nos ajudar a entender a atual monogamia como norma de relacionamento. O amor romântico é entendido como uma construção sociocultural advinda dos romances trovadorescos do século XI onde o amor era idealizado como o sublime da perfeição. O amor cortês jamais seria alcançado pois era considerado a sublimação da perfeição. Este conceito foi disseminado através de poemas e peças teatrais que encantavam o espectador de modo a desejar aquele amor para si, perseguindo este desejo por toda sua vida. O romance Tristão e Isolda, história medieval originada da literatura celta e popularizada na literatura francesa no século XII, representa bem este sentimento. 

Voltando ao século XIX, a literatura nos mostra vários exemplos de romances tendo como plano central a luta pelo amor: heteronormativo, branco, burguês. Valores estes tão bem representados na literatura onde o casal lutou durante toda a história para ficarem juntos no final, claro, ao conseguirem finalmente o “casamento” a história acabava. Afinal, Capitu traiu Bentinho? Esta é a indagação que persiste até os dias atuais, uma vez que seria impensado, até para os dias de hoje, Capitu amar Bentinho e Escobar, pois a norma se baseia na tese mononormativa de que só é possível se relacionar com uma pessoa e principalmente para as mulheres. 

O século XX trouxe a popularização do cinema e os grandes clássicos hollywoodianos mantendo o mesmo ideal de amor, onde o casal deveria sempre optar por uma pessoa para amar e se relacionar para o resto de suas vidas. A popularização do cinema invadiu classes socioculturais diversas e atingiu todas as faixas etárias com as adaptações dos contos de Grimm pela gigante do entretenimento Disney e a famosa figura da princesa encantada que deveria esperar seus príncipes para que finalmente tivesses sua salvação de uma vida de maus tratos. Mesmo que o perfil das princesas Disney tenha mudado com o tempo, animações como Frozen e Moana representam bem estes perfis, ainda se persiste a figura da princesa que precisa necessariamente encontrar seu par, casar e “ser feliz” no castelo nas nuvens. 

Em contraposição ao ideal masculino de ter sua “princesa” que deveria ser a imagem de um “anjo”, figura idealizada como dócil, terna, feminina e obviamente virgem, o “príncipe”, forte, másculo, protetor e atencioso foi idealizado através de personagens a exemplo dos filme Ghost, do Outro Lado da Vida ou Top Gun, Ases Indomáveis, com trilhas sonoras marcantes para fixar ainda mais no público o ideal romântico que perpetuam no imaginário coletivo como grandes exemplares de pares perfeitos, ou seja, o amor romântico idealizado e sobretudo, único e exclusivo, até mesmo após a morte.   

O advento da internet e a popularização das redes sociais tem nos influenciado e hoje a figura dos “influencers” ditam como devemos nos comportar. Fotos e vídeos de casais “perfeitos” fazem com que o grande público anseie por uma vida igual e o mesmo modelo de mononormativo de relacionamento. Se por um lado a popularização das redes sociais continua reafirmando um modelo de relacionamento mononormativo percebe-se também que o discurso tem se ampliado e hoje vemos o debate de relacionamentos não-monogâmicos como formas válidas de se relacionar afetivo-sexualmente. Debates que seriam impensáveis há algumas décadas. Hoje, podemos ver uma crescente onda de relacionamentos não-monogâmicos como o poliamor, relacionamentos abertos, swinger e outras práticas e modelos de relacionamentos.

Mesmo com a abertura do debate sobre variados tipos de relacionamentos ainda observa-se que o assunto está envolto de tabus e preconceitos.  Ao examinar alguns comentários em posts e reels que se referem aos relacionamentos não-monogâmicos a maioria das pessoas se posicionam de maneira agressiva e/ou crítica e dirigem comentários como: “falta de maturidade”, “se quer liberdade não namore/case”. O que revela que o assunto deve ser cada vez mais debatido e normalizado.

Atualmente podemos observar diferentes formas de se relacionar
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Podemos então creditar o costume ocidental da monogamia apenas ao ideal de amor romântico? Na verdade, é difícil dizer que uma norma socialmente aceita é debitada apenas a um fator e este texto se propõe a realizar reflexões, deste modo, a segunda reflexão que propomos tem relação a questões ligadas a fatores econômicos. 

Durante o desenvolvimento das sociedades humanas houveram mudanças de costumes e desde que se descobriu como ser social os indivíduos se relacionam de diversas maneiras. Em sociedades nômades, há milhares de anos, acreditava-se que as mulheres engravidavam por influência de poderes divinos, não havia o ideal de família nuclear e os filhos eram responsabilidade de toda a tribo. A partir do momento que se entendeu que as mulheres engravidavam através de relações sexuais com homens, houveram novos arranjos pois viu-se que as mulheres poderiam assegurar sua maternidade e aos homens ficava a dúvida. (Almeida, 2021).

A partir daí começou-se a definir relações exclusivas para se assegurar a paternidade e o direito de herança. Este foi a tese levantada pelo economista, filósofo, sociólogo e jornalista alemão Friedrich Engels em sua obra A origem da Família da Sociedade Privada e do Estado (1884), onde ele explica a formação da família nuclear e monogâmica pela ótica da sociedade capitalista, sendo assim, não seria possível outro modelo de família (relações afetivas/sexuais) que não assegura a manutenção da propriedade privada através da certeza da paternidade. 

Segundo Engels a família era uma forma de organização social baseada na cooperação e na comunidade de bens, onde não se tinha a noção de propriedade privada e a relação entre homens e mulheres eram igualitárias. Com o desenvolvimento das forças produtivas e da agricultura, a propriedade privada surgiu como forma de controlar os recursos naturais, o trabalho humano gerou a divisão da sociedade em classes e a exploração do trabalho humano gerou a divisão da sociedade em classes e divisão de papéis sexuais, onde os homens seriam responsáveis pelo sustento e proteção e as mulheres seriam as responsáveis pelos trabalhos familiares e a manutenção dos filhos e da casa, embora a necessidade de trabalho pesado ainda continuaram como tarefa feminina. 

Desta forma, as sociedades igualitárias e comunitárias foram sendo substituídas pela norma de famílias nucleares e mononormativa, assim, não haveria a possibilidade de dúvidas quanto à paternidade e o direito à herança estaria garantida aos filhos legítimos. Outro fator importante envolve o ideal patriarcal de assegurar, além do patrimônio (capital) que a mulher fosse também uma propriedade masculina ficando ligada ao homem através do casamento e da maternidade. Mas, e quanto às famílias de classes econômicas mais baixas que não teriam patrimônio a ser passado? O que se argumenta é que além do capital financeiro a sociedade que tem o patriarcado como base, mesmo sem herança para ser passada para as futuras gerações, o peso da continuidade, ou seja, “meu filho levará meu nome” sendo este considerado também um patrimônio a ser passado. 

Chegamos, então, ao final destas reflexões com o intento de abrir e ampliar o debate sobre o modo como as pessoas se relacionam afetivo/sexualmente. Podemos então responder a pergunta inicial deste texto, por que somos monogâmicos? Entendemos que há muitas questões envolvidas e este texto discute apenas duas delas, há ainda muito a ser discutido e podemos e devemos nos questionar: Afinal, há uma norma? Esta norma pode/deve ser pensada/discutida? Por que devemos aceitar que nos relacionamos de maneira que outras pessoas acreditam ser o certo?  Por que não podemos nos relacionar com quem ou como nos sentimos melhores/completos? Afinal, nascemos para sermos felizes e a forma como nos relacionamos afetivo/sexualmente é de grande importância. 

Referências: 

ALMEIDA, A. L. de. Contribuições da Psicologia Social Acerca da Monogamia Compulsória. Belo Horizonte. 2021. 24p. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://jornaltribuna.com.br/wp-content/uploads/2021/06/AS-CONTRIBUICOES-DA-PSICOLOGIA-SOCIAL-ACERCA-DA-MONOGAMIA-COMPULSORIA.pdf. Acesso em: 18/02/2023. 

AMORIM, P. M. DE. REIS, D. B. DOS. Monogamia e identidade: Considerações Psicanalíticas. Ágora (Rio de Janeiro) v. XXIII n.2 maio/agosto 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/5yCbk7g9Lt7j5qjd7wBFPyp/?lang=pt . Acesso em: 20/02/2023. 

ENGELS, F. A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado. Tradução de Ruth M. Klaus. São Paulo. Centauro. 2002

GONÇALVES, I. V. Matemática dos afetos, dissensos e sentidos sociais acerca das

noções de “monogamia” e “não-monogamia”. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFJF v. 16 n. 3 Dezembro. 2021 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print). Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/34430 . Acesso em: 19/02/2023.

VIEIRA, E. PRETTO, Z. Mulheres não monogâmicas: Trajetórias em uma sociedade Mononormativa. Repositório Universidade RUNA. Dezembro/2021. Disponível em: https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/20369 . Acesso em: 19/02/2023.