Thais Rodrigues Vilela- thaisrv@rede.ulbra.br
Este texto está dividido em duas partes para melhor contemplar a discussão incitada e tem por objetivo instigar reflexões acerca da relação entre trabalho, maternidade e subjetividade a partir de uma perspectiva de gênero sobre diferentes conjunturas.
O mundo do trabalho enquanto interface da maternidade não pode ser reduzido a sua relação com o mercado de trabalho ou o trabalho remunerado, ainda que seja imprescindível contemplá-la. O trabalho da mulher que é mãe engloba esferas de trabalho múltiplas e complexas que se interrelacionam e produzem efeitos sobre a subjetividade, afetando de forma diferente cada mulher. Seja ele remunerado ou não, formal ou informal, dentro ou fora de casa, reconhecido ou marginalizado, o fato é que mulheres mães possuem um ritmo intenso de trabalho.
Para contemplar a amplitude do conceito de trabalho e não correr o risco de incorrer em uma ótica reducionista, define-se como:
Quando falamos de trabalho, nos referimos a uma atividade humana, individual ou coletiva, de caráter social, complexa, dinâmica, mutante e irredutível a uma simples resposta instintiva ao imperativo biológico da sobrevivência material. Distingue-se de qualquer outro tipo de prática animal por sua natureza reflexiva, consciente, propositiva, estratégica, instrumental e moral (BLANCH, 2003, p.34-35 apud COUTINHO, 2009, p.191).
Dessa forma, o presente trabalho abordou campos de interação do trabalho materno e seus desdobramentos em áreas remuneradas e não remuneradas, individuais e coletivas.
Guiginski e Wajnman (2019), em seu artigo “A penalidade pela maternidade: participação e qualidade da inserção no mercado de trabalho das mulheres com filhos”, constataram que a presença de filhos afeta consideravelmente a condição de inserção das mulheres brasileiras no mercado de trabalho, reduzindo a probabilidade de participação e elevando as chances de trabalho precário e “preferência” por empregos flexíveis (jornada parcial e trabalho autônomo).
Os dados deste estudo sugerem que mulheres com filhos em idade pré-escolar ofertam menos sua força de trabalho, uma vez que possuem as maiores taxas de desemprego (11,2%) e inatividade (34,9%) e enfrentam maiores dificuldades para encontrar uma ocupação, representando as menores taxas de ocupação (88,8%) e participação (65,1%) dentre os grupos pesquisados (mulheres e homens, com e sem filhos). Para essas mulheres, a possibilidade de ingressar e permanecer no mercado de trabalho está relacionada de forma direta com a idade e inversa com a quantidade de filhos, ou seja, quanto mais novos e em maior quantidade, menores as chances. Dessa forma, ter um filho em idade pré-escolar reduz em 52,2% as possibilidades de ingresso e permanência no mercado, e em idade escolar em 24,8%, enquanto para dois ou mais filhos pequenos esse percentual saltou para 73,5%, e em idade escolar para 34,4%. Mesmo para filhos mais velhos, acima de 12 anos, há um decréscimo das oportunidades, ainda que menos expressivas que para filhos menores (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).
Apesar dos dados do estudo supracitado se referirem a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) de 2013, pesquisas recentes corroboram tais resultados. Segundo o estudo Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, IBGE (2021), a presença de crianças com até três anos de idade nos domicílios está relacionada a menor inserção ocupacional das mulheres. Em 2019, o nível de ocupação das mulheres de 25 a 49 anos vivendo com crianças nesta faixa etária foi de 54,6%, sendo de 49,7% entre as pretas e pardas e 62,6% entre as brancas, em contraponto a 67,2% para mulheres sem crianças de até 3 anos no lar, sendo de 63% entre pretas e pardas e 72,8% entre as brancas.
Em relação à jornada de trabalho, a necessidade de conciliar trabalho remunerado com afazeres domésticos e de cuidados, faz com que muitas mulheres recorram a ocupações com carga horária reduzida (IBGE, 2021). Mulheres com filhos em idade pré-escolar representam 29,6% das mulheres com jornada de trabalho parcial (15,9%), novamente a maior proporção dentre o grupo, além de somente 34,8% delas possuem carteira assinada ou contribuem para a previdência, indicando menor proteção social. Sendo assim, ter um filho em idade pré-escolar aumenta em 59% as chances de cumprir jornada parcial e em 33,1% a chance de ocupar um trabalho precário , enquanto para dois ou mais filhos pequenos representam impressionantes 90,6% de chances de cumprir tal jornada e 78,2% maior de estar em situação de precariedade. A partir disso, vale ressaltar que o trabalho parcial implica em piores condições de trabalho: menores rendimentos médios mensais, menor formalidade e maior precariedade da ocupação (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).
Essas características estão estritamente relacionadas ao modelo econômico que vivenciamos e suas implicações que afetam a forma de ser da classe trabalhadora e a configuração do trabalho no contexto contemporâneo. Consequência de uma articulação complexa existente entre financeirização da economia, neoliberalismo, reestruturação produtiva e as mutações no espaço microcósmico do trabalho e da empresa , a nova morfologia do trabalho no Brasil, descrita por Antunes (2014), possui como principais características a ampla flexibilização, informalidade e precarização da classe trabalhadora.
No que tange, ao tipo de trabalho, a presença de um filho em idade pré-escolar está positivamente relacionada ao trabalho autônomo em detrimento do trabalho assalariado do setor privado, e é aumentada em 54,3% (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).
Há que se criticar a tese que defende o “empreendedorismo” enquanto opção do trabalhador como meio de obter maior remuneração e de evitar relações autoritárias nas hierarquias das organizações apesar da insegurança na renda. A permanência na economia informal é antes de tudo exclusão social e dificuldade de inserção (ou reinserção), seja por conta de pouca qualificação, baixa oferta de empregos ou péssimas condições de trabalho, e não se deve à busca por prosperidade e liberdade (MATSUO, 2009). “Para os defensores da ideia de “empreendedorismo”, a importância e a influência da política econômica e das políticas de emprego são minimizadas e o trabalhador é visto como responsável pelo seu próprio destino” (MATSUO, 2009, p.14).
Individualizar um problema de ordem estrutural e coletiva, como o desemprego e o trabalho autônomo, é uma estratégia eficiente para desmobilizar os trabalhadores e mantê-los presos a lógica de exploração, uma vez que os responsabiliza dos problemas que enfrentam, como se dependesse unicamente deles evitar tais situações. Essa naturalização submete ainda o trabalhador a um julgamento social e muitas vezes a um estigma, refletindo em sua saúde não apenas no ambiente de trabalho, mas em todas as suas relações interpessoais.
Em sua pesquisa, Matsuo (2009), considera que os trabalhadores informais estão tão sujeitos às condições precárias e à exploração no trabalho quanto os formais, com o agravante de não possuírem quaisquer direitos, posto que no nosso país a condição de cidadania está associada ao modo de inserção dos indivíduos no mercado de trabalho, logo, a ruptura do vínculo empregatício formal representa a perda de direitos e benefícios sociais. Além disso,
Um emprego de carteira assinada pode ser considerado por alguns trabalhadores na informalidade como a solução para sair de uma rotina de trabalho, marcada, por exemplo, pelo enfrentamento de jornada prolongada, a intensificação do ritmo de trabalho, os baixos salários, a ausência de férias, a falta de direito ao auxílio-doença e acidentário, ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, à aposentadoria e a qualquer proteção social, entre outros aspectos. […] O emprego formal acaba sendo superestimado pelas garantias e direitos que são oferecidos, ao mesmo tempo em que as condições precárias e conflitos nas relações sociais entre empregador e trabalhador correm riscos de serem subestimados (MATSUO, 2009, p.15-16).
Sugere-se que a maior probabilidade verificada na população de mães de crianças em idade pré-escolar no que diz respeito a jornada de trabalho parcial, trabalho autônomo e desemprego possam indicar tanto uma estratégia das próprias mulheres em conciliar demandas familiares e inserção produtiva, dadas as restrições e preferências individuais, quanto um efeito de discriminação no mercado de trabalho ou preferência dos empregadores por mulheres com menor carga de responsabilidades familiares e domésticas (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).
Assim, a maternidade pode ser entendida como um fator limitante que mantém as mães em condições de vulnerabilidade, uma vez que impõe situações adversas específicas que dificultam que saiam da situação de pobreza (YANNOULAS, 2002).
A respeito da relação entre preferências pessoais ou familiares (aqueles que não trabalham por escolha própria) e restrições em conciliar a vida profissional e familiar, Madalozzo e Blofield (2017) investigaram questões que revelassem as escolhas relacionadas a trabalho remunerado e não remunerado, assim como a divisão entre os gêneros das responsabilidades financeiras e familiares, a partir de uma pesquisa representativa de 700 mães e pais com uma ou mais crianças de até 6 anos (grupo pré-escolar na data estudada), realizada em 2012 em bairros de baixa renda em São Paulo.
De acordo com os dados coletados entre as mães não empregadas, no grupo das preferências pessoais ou familiares, 43% das mães não casadas permanecem fora do mercado por escolha, sendo que 53% optaram pessoalmente e 24% ainda estão estudando, o que impede o trabalho síncrono à frequência escolar. Em relação às mães casadas deste grupo, 50% se mantêm fora do mercado, sendo que destas 56% optaram pessoalmente por não trabalhar, 15% por preferência do marido, 2% preferiram ficar em casa devido aos baixos salários ofertados e 2% ainda estão estudando. No aspecto das restrições, 35% das mães não casadas e 18% das mães casadas fazem parte do grupo daquelas que estão procurando, mas não conseguem encontrar trabalho, e aquelas que não trabalham por não ter acesso a creches ou não terem quem cuide de seus filhos representam 20% das mães, casadas ou não (MADALOZZO; BLOFIELD, 2017).
Madalozzo e Blofield (2017, p.233) destacam que
Os níveis mais elevados de emprego entre as mães não casadas, comparados às mães casadas são devidos ao engajamento em trabalhos informais ao invés da participação do mercado formal de trabalho. Se considerarmos esta uma proxy para a qualidade do emprego, parece que as mães não casadas se sujeitam a aceitar empregos de menor qualidade do que as mães casadas.
As famílias sem cônjuges e com filhos, ou famílias monoparentais femininas, representam 16,3% dos arranjos familiares no Brasil e são constituídos predominantemente por mulheres (40,4%), destas, 58,8% são mulheres negras (IPEA, 2015). A disparidade social brasileira e o racismo promovem uma violência estrutural sobre essas mulheres, conduzindo-as a condições subalternas de educação, saúde, alimentação e demais necessidades. Ao associar tal condição ao fenômeno da monoparentalidade feminina é possível constatar que nessas famílias as mulheres são as provedoras e esta única renda é responsável pelo sustento dos filhos, e por vezes se mostra insuficiente para arcar com as necessidades básicas da família (BABIUK, 2015).
Dessa forma, o trabalho informal, constituído nas tradicionais estratégias de sobrevivência de trabalhadores desempregados, seria consequência da destruição do emprego formal, responsável pelo aumento do desemprego, devido aos impactos das políticas neoliberais de ajustamento econômico no mercado de trabalho (MATSUO, 2009).
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo. Desenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 28, n. 81, 2014.
BABIUK, G. Famílias monoparentais femininas, políticas públicas em gênero e raça e serviço social. Seminário nacional de serviço social, trabalho e política social. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC: 27 a 29 out 2015.
COUTINHO, M. Sentidos do trabalho contemporâneo: as trajetórias identitárias como estratégia de investigação. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, vol. 12, n. 2, Universidade Federal de Santa Catarina, 2009, pp. 189-202.
DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. Sadi Dal Rosso. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 208 p.
GUIGINSKI, J; WAJNMAN, S. A penalidade pela maternidade: participação e qualidade da inserção no mercado de trabalho das mulheres com filhos. R. bras. Est. Pop., v.36, 1-26, e 0090, 2019.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. IBGE, 2021 – ISBN 978-65-87201-51-1. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf Acesso em: 10 nov. 2021.
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. IPEA, 2015.
Disponível em: https://ipea.gov.br/retrato/apresentacao.html Acesso em: 10 nov. 2021.
MADALOZZO, R; BLOFIELD, M. Como famílias de baixa renda em São Paulo conciliam trabalho e família? Rev. Estud. Fem. 25 (1), Jan-Apr 2017.
MATSUO, M. Trabalho informal e desemprego: desigualdades sociais. 2009, p.384. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-05032010-130328/publico/MYRIAN_MATSUO.pdf Acesso em: 11 nov. 2021.
YANNOULAS, S. C. Dossiê: Políticas públicas e relações de gênero no mercado de trabalho – Brasília: CFEMEA; FIG/CIDA, 2002. 93 p. Disponivel em: http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/handle/11465/276/CFEMEA_Dossi%EA_Pol%EDticas_p%FAblicas_rela%E7%F5es_g%EAnero_mercado_trabalho.pdf?sequence=1 Acesso em: 12 nov 2021.