Antes de refletirmos sobre a relação entre ciência e educação no Brasil é importante compreendermos o significado de “ciência” e “educação”. Esse movimento inicial nos permitirá estabelecer as diretrizes e limites da análise proposta inicialmente.
Uma consulta rápida em qualquer dicionário nos indica alguns conceitos pertinentes sobre essas duas categorias teóricas. Assim, como ciência é possível entender: “Reunião dos saberes organizados obtidos por observação, pesquisa ou pela demonstração de certos acontecimentos, fatos, fenômenos, sendo sistematizados por métodos ou de maneira racional” (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2019), ou ainda, “Ramo específico do conhecimento, caracterizado por seu princípio empírico e lógico, com base em provas concretas, que legitima sua validade” (MICHAELIS ON-LINE, 2019). Já por educação é possível inferir: “Processo que visa ao desenvolvimento físico, intelectual e moral do ser humano, através da aplicação de métodos próprios, com o intuito de assegurar-lhe a integração social e a formação da cidadania” (MICHAELIS ON-LINE, 2019).
A ciência, de acordo com Neto (2015, p. 5, grifo meu), “constrói-se contra o senso comum, e estar vigilante é buscar sempre ultrapassar os obstáculos epistemológicos [1] que se apresentam”; todavia essa construção não ocorre de forma linear, pois é também produzida por cortes, rupturas e crises. Na mesma perspectiva Bourdieu (apud NETO, 2015) complementa e afirma que o avanço científico requer sempre uma postura investigativa, pois a ciência é feita para ser superada.
A educação, como casa do saber científico, por meio dos seus métodos próprios deve assegurar a materialização de um dos seus principais papéis, que é, na perspectiva de Neto (2015), a instauração do habitus científico [2] nos alunos. Ou seja, deve permitir ao mesmo tempo, “um sistema de esquemas de produção de práticas e um sistema de esquemas de percepção e apreciação das práticas” (BOURDIEU apud NETO, 2015, p. 7).
Bourdieu (apud SÁ, 2016, p. 198, grifo do autor), ao ponderar ainda sobre a ideia de habitus científico, menciona que “é uma regra feita homem ou, melhor, um modus operandi científico que funciona em estado prático segundo as normas da ciência sem ter estas normas na sua origem”; e mais, “assume formas específicas segundo as especialidades: […] os contatos entre ciências, que, tal como os contatos entre civilizações, possibilitam a explicitação das disposições implícitas, especialmente nos grupos interdisciplinares que se constituem em redor de um novo objeto” (p. 198).
Por fim, Neto (2015) destaca a importância de se instaurar no aluno uma formação que, imbuída do habitus científico, o habilite, o torne sujeito do seu conhecimento a agir e pensar de acordo com regras ou princípios exigidos pelo campo científico.
Ao retornar especificamente a questão inicial podemos mencionar que no Brasil a relação entre ciência e educação passou, no século XX, de acordo com Saviani (2010), da ciência como aspiração à ciência como suspeição. Impulsionada pelos renovadores a educação brasileira buscou ancorar-se em bases científicas elegendo a ciência como a grande aspiração de uma concepção pedagógica que pudesse orientar a reconstrução social do país pela reconstrução educacional [3].
Como resultado dessas iniciativas educacionais renovadoras, se até a década de 1940 o embasamento científico da educação girava, predominantemente, em torno da psicologia, na década de 1950 foi marcada por importante deslocamento em direção à sociologia, o que permitiu a Luiz Pereira referir-se, em 1962, a uma acentuada ‘sociologização’ do pensamento pedagógico brasileiro, afirma Pereira (1971 apud SAVIANI, 2010, p. 17).
Ao longo da década de 1960, continua Pereira (1971 apud SAVIANI, 2010), à vista da emergência de temáticas como o papel da educação no desenvolvimento econômico, a questão do financiamento do ensino e a relação entre educação e trabalho, o pensamento pedagógico tendeu a incorporar outra área de estudos científicos: a economia.
A década de 1980 é marcada por grande pela emergência das teorias críticas, partindo das ciências bases da educação (filosofia, história, psicologia, sociologia), se espraiou para a didática e para as habilitações pedagógicas (supervisão, orientação, administração) (SAVIANI, 2010). Parecia, pois, “que o pensamento pedagógico brasileiro havia atingido seu grau máximo de maturação estando na iminência de proclamar sua autonomia epistemológica e conquistar espaço próprio no conjunto das ciências humanas” (p. 17).
Nos anos de 1990 temos o abandono daquela expectativa há décadas acalentada, e a ciência passará de objeto do desejo dos educadores a motivo de suspeita, menciona Saviani (2010). Para o autor ainda,
a percepção de que também não se pode confiar na ciência, um tipo de conhecimento que não merece maior crédito do que os demais. Já que foi posta de lado a razão como faculdade capaz de captar o real, de pôr ordem no caos, de estabelecer princípios explicativos que nos permitiriam compreender como o mundo está constituído, entende-se a dificuldade de se caracterizar o tipo de pensamento pedagógico da época que estamos atravessando (p. 19).
Todavia, na tentativa de identificar as linhas básicas desse pensamento Saviani (2010) cita:
- a) neoprodutivismo, que subverte as bases sócio-econômicas que o pensamento pedagógico buscava encontrar nas ciências sociais; b) neoescolanovismo, que metamorfoseia as bases didáticas que se procurava definir pela pedagogia entendida como ciência da educação; e c) neoconstrutuvismo, que faz refluir as bases psicopedagógicas que se buscava construir pelas investigações da ciência psicológica (p. 19).
Já nos anos 2000 ocorre a sinalização de um revigoramento do pensamento pedagógico crítico. Assim, além do pensamento pedagógico hegemônico que se manifesta nas três vertentes já mencionadas anteriormente (neoprodutivista, a neo-escolanovista e a neoconstrutivista), soma-se a pedagogia histórico-crítica que, na trilha aberta por Marx, não abdica de uma concepção claramente realista, em termos ontológicos, e objetivista, em termos gnosiológicos (SAVIANI, 2010). Para o autor, essa última
está empenhada em produzir conhecimentos cientificamente fundamentados capazes, em consequência, de orientar eficazmente a prática educativa constituindo-se, pois, numa orientação pedagógica crítica contraposta à orientação pedagógica de matriz pós-moderna, relativista e eclética que, sendo hegemônica na contemporaneidade, vem dificultando a solução efetiva dos graves problemas educacionais que enfrentamos em nosso país (p. 21).
Ao discorrer sobre essas diferentes perspectivas teórico-científicas e sua influência na educação não é possível deixar de mencionar que as mudanças e transformações no campo da educação e da realidade social não se limitam ou se resumem a essa dimensão teórica. Há que se ponderar que reflexos positivos na nossa sociabilidade não se darão de maneira independente ou autônoma da educação e sim com alterações em campos estruturais e estratégicos como o econômico.
Ao ponderar sobre o atual sistema educacional brasileiro, Neto (2015) menciona que suas bases e princípios científicos remontam do século XVII, período em que o pressuposto para conhecer era a observação e a ciência era vista como o acúmulo de teorias e leis. Para ilustrar tal contexto Kocke (2007 apud NETO, 2015, p. 10, grifo do autor) destaca que
Há uma visão vigente e expressa nos próprios manuais, que apresenta a ciência como um conhecimento pronto e acabado, […] e, apesar da ciência ter evoluído, a escola continua a ensinar conhecimentos prontos, cultivando uma ciência imóvel… o professor se transformou em um auleiro, transmissor de verdades estáticas, e o bom professor é aquele que consegue dar esse espetáculo de ilusionismo: demonstrar como verdadeiro e imutável o saber que está em permanente revolução.
Mello (2015) destaca que, face às inúmeras e crescentes transformações políticas, econômicas e tecnológicas pelas quais a sociedade contemporânea tem passado nos últimos anos, o apelo às reformas educacionais é constantemente renovado e repercute em novos desafios aos profissionais da educação, pois “o que está em jogo, […] é uma espécie de desconfiança da capacidade dos professores de oferecerem uma formação técnica e intelectual satisfatória para seus alunos” (p. 22, grifo meu).
Para Simões (2013) as reformas educacionais alegam a necessidade de um novo modelo de formação em sintonia com as mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas. O autor ainda pondera que “Embora a problemática da dicotomia entre teoria e prática e das deficiências dos cursos de formação de professores estejam sendo amplamente discutidas, o problema persiste” (p. 29); e acrescenta
para uma forte tendência em propor, nesse processo de mudança, uma concepção de professor que reflita sobre seus saberes e sua prática, instigando as instituições de formação de professores a questionar sua tarefa formadora. Esses questionamentos perpassam pela articulação teoria e prática na composição da matriz curricular dos cursos de formação de professores (p. 57).
Segundo Marli André (2001 apud Mello, 2015), a partir de 1980 ocorreu no Brasil, uma crescente valorização da pesquisa na formação do professor, sobretudo com destaque à articulação entre a teoria e a prática, o que fomentou o debate das questões epistemológicas entre diversos autores: Tardif (2000), Schon (2000), Giroux (2003), Demo (2003), Luciola Santos (2001), Zeichner (2002) etc. Assim, é possível pontuar, conforme Mello (2015), que a aproximação entre diferentes saberes a partir da reflexão sobre a formação docente demanda uma aproximação entre os diferentes saberes a partir da reflexão sobre a experiência docente, permitindo problematizar e delimitar um campo de ação, uma crítica construtiva às suas próprias práticas. Com isso, o autor encerra comentando que para além do consenso geral de que a pesquisa é um elemento essencial na formação do professor, o processo de formação deve atualizar e aprofundar os parâmetros da construção, da reflexão e da crítica para que o professor consiga avançar no sentido da aquisição de maior autonomia profissional.
Considerando todos esses elementos apresentados é possível, em face da relação entre ciência e educação, entendermos que a educação não é uma ação neutra e não pode ser pensada desta forma. Temos, como docentes/educadores refletirmos sobre os efeitos de nossa prática e os pilares que dão sustentação a ela (dimensão teórica, ética, política, investigativa etc.). É necessário também romper com a rigidez estruturante e reducionista para alcançarmos metodologias mais dinâmicas, flexíveis e globalizadoras, que atendam ao menos em parte a imprevisibilidade e incerteza da sociabilidade atual. Assim, há de se perceber que o desafio não tem sede apenas no aparecimento de procedimentos novos de ensino, como sendo mais uma forma de facilitar o trabalho do professor e a aprendizagem do aluno. Faz-se necessário pensarmos a didática para além de uma simples renovação pedagógica de novas formas de ensinar e aprender, para além da busca de manutenção de uma ordem apenas instrumental da educação, o que Candau (2001) chama de “didática instrumental” [4], para o alcance de uma didática fundamental (CANDAU, 2001) [5]. A ação do professor, portanto, precisa estar embasada numa estrutura que não separe os fins pedagógicos dos fins sociais e científicos.
NOTAS
[1] Neto (2015) esclarece que os obstáculos epistemológicos são representados por tudo aquilo que nos impede o avanço do conhecimento e sua aproximação com a realidade, sendo o principal deles o senso comum.
[2] Para Bourdieu (apud NETO, 2015), o habitus científico refere-se a um conjunto de disposições, de formas de ser e de agir que são demandadas pelo campo científico. Instaurar o habitus científico, é, portanto, formar o sujeito para que possa “jogar” o “jogo jogado” nesse campo, para que se qualifique a disputar nesse campo.
[3] Saviani (2010) afirma que, baseado no ‘Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova’, Lourenço Filho transformou, em 1931, a Escola Normal de São Paulo em Instituto Pedagógico (cujos cursos centravam-se nas ciências básicas da educação); em 1932 Anísio Teixeira empreendeu a reforma da instrução pública do Distrito Federal; em 1933 Fernando de Azevedo realizou nova reforma da instrução pública no estado de São Paulo aprofundando, na organização da escola de professores, a institucionalização das ciências da educação; em 1938, foi criado o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP (cujo primeiro diretor foi Lourenço Filho); em 1955 foi criado o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – CBPE.
[4] Para Candau (2001) a didática instrumental é concebida como um conjunto de conhecimentos técnicos sobre o ‘como fazer’ pedagógico, conhecimentos estes apresentados de forma universal e consequentemente desvinculados dos problemas relativos ao sentido e aos fins da educação, dos conteúdos específicos, assim como do contexto sociocultural concreto em que foram gerados.
[5] A didática fundamental está alicerçada, para Candau (2001), na multidimensionalidade do processo de ensino-aprendizagem, ou seja, propõe a articulação das dimensões técnica, humana e política. Nessa perspectiva, a competência técnica e o compromisso político não se dissociam, e sim se interpenetram.
Referências:
CANDAU, Vera Maria. Rumo a uma nova didática. 12 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS. Ciência. Disponível em: < https://www.dicio.com.br/ciencia/>. Acesso em: 27 de abril de 2019.
MELLO, Jamer Guterres de. Articulações entre Saberes e Práticas Docentes: o Papel da Pesquisa na Formação de Professores. In: NETO, Honor de Almeida; et al. Docência Articulada com as Tessituras Sociais: Pesquisa. Universidade Luterana do Brasil. Canoas: Ed. ULBRA, 2015.
MICHAELIS ON-LINE. Ciência. Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/busca?id=M4nL>. Acesso em: 26 de abril de 2019.
NETO, Honor de Almeida. Vigilância Epistemológica e Educação. In: NETO, Honor de Almeida; et al. Docência Articulada com as Tessituras Sociais: Pesquisa. Universidade Luterana do Brasil. Canoas: Ed. ULBRA, 2015.
SAVIANI, Dermeval. Ciência e educação na sociedade contemporânea: desafios a partir da pedagogia histórico-crítica. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.br/index.php/fazciencia/article/view/7434/5778>. Revista Faz Ciência, v.12, n.16 Jul./dez. 2010, pp. 13-36. Acesso em: 25 de abril de 2019.
SIMÕES, Rodrigo Lemos. Formação de Professores de História, Práticas e Discursos de Si. Tese (Doutoramento em Educação) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul / Programa de Pós-Graduação em Educação. Porto Alegre, 2013.
SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n20/n20a05.pdf>. Acesso em: 25 de abril de 2019.