Saber ouvir – Uma astúcia perversa à formação de competência gerencial?

A inquietação que se apresenta nesse debate repousa sobre o viés da sedução organizacional e do sequestro da subjetividade do trabalhador, praticados com o intuito de torná-lo um “serv(o)idor” produtivo e, a partir dele, conquistar a estética de uma gestão bem-sucedida.

Nesse sentido, o objetivo deste texto introdutório é provocar uma reflexão acerca do “ouvir” na perspectiva de uma competência gerencial, trazendo à tona um paradoxo possível de ser observado no discurso de gestores entrevistados em diferentes organizações no Estado do Rio de Janeiro. Nesta reflexão, propomos que o “saber ouvir” pode ser entendido como uma competência gerencial. Para tanto, buscou-se diálogo com o fundamento da inteligência prática, na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho.

De acordo com os pressupostos da psicodinâmica do trabalho, a inteligência prática, mobilizada no sentido da astúcia em empreender soluções criativas àquilo que a prescrição não dá conta, considera que é uma inteligência fundamentalmente enraizada no corpo, pois os ajustes necessários à organização do trabalho seriam, primeiramente, alertados pelos sentidos, a partir de situações ou eventos que causam algum desconforto ou desprazer (DEJOURS, 1993;2011).

Tomando por base essa característica da inteligência prática, os aspectos sensoriais do gestor seriam uma espécie de painel de controle para lidar com situações dinâmicas oriundas do contexto em que ele está inserido. Esses aspectos sensoriais seriam, a priori, o alerta do corpo para buscar uma solução que supere aquele problema da realidade efetiva.

De acordo com o referencial teórico da Psicodinâmica do Trabalho, Dejours (1993;2011) afirma que esta inteligência é caracterizada como uma inteligência do corpo pelo fato de considerar que ela é a desestabilização deste corpo, em seu conjunto, sua reação a partir de um determinado estímulo, que dá início e passa a acompanhar a dinâmica desta inteligência prática.

Para o autor, seria, então, a partir dos dados sensoriais que o sujeito interpreta uma situação de trabalho, realiza um diagnóstico ou uma medida corretiva e faz uso da técnica posteriormente, para checar, operacionalizar ou universalizar a ação sugerida pelos seus sentidos.

Ao se entrevistar 10 gestores, de diversos níveis hierárquicos e contextos, indagando-lhes a respeito da forma como construíam suas competências gerenciais, uma categoria que surgiu dos relatos pode ser associada a um aspecto sensorial, na busca por soluções no que se refere à liderança de equipes: “saber ouvir”. Os entrevistados reforçavam essa ideia com relativa frequência. Em outras palavras, afirmavam que, para serem gestores bem-sucedidos, precisavam desenvolver um exercício cotidiano de prestar atenção nas necessidades de seus liderados, para ganhar sua credibilidade e respeito. No entanto, questionamos o sentido do ouvir, para estes gestores.

Segundo estes gestores, é através do ouvir que seria possível compreender o sujeito em sua própria perspectiva dentro da equipe e, assim, mobilizá-lo para o trabalho. A reação do corpo frente ao real do trabalho e a sujeição ao espaço propício para a inteligência prática resulta na busca de uma ação movida pelo fator sensorial do ouvir, quando o gestor, então, passa a considerar o alerta do corpo como uma saída para encontrar a devida solução que procura. É nesse momento que emerge a competência gerencial voltada para ouvir cada membro da equipe, numa relação essencialmente dinâmica e dependente do contexto.

Então eu sempre escutei muito as pessoas, sempre fiz muitas reuniões pra ouvir as opiniões, pra decidir com base nessas opiniões (…) Então, o que que eu faço: eu converso muito com eles. A gente senta e fala muito. A gente fica horas, falando, falando, falando, falando… preferencialmente até que se chegue a um consenso. Enquanto esse consenso não chega, são horas infindáveis de discussões e tal. Então… um caminho que eu entendi que seja um caminho muito interessante é esse, é falar muito, é ouvir muito, é abrir muito os espaços de conversa sobre aquele mesmo tema. E…Isso tem funcionado, isso tem funcionado. (Gestor D)

A partir do momento em que o gestor toma a iniciativa no sentido do ouvir, a relação social entre ele e seu subordinado passa a ter um caráter mais efetivo, na percepção do gestor. Na ótica do subordinado, essa ação pode vir a ser compreendida como uma competência gerencial. Seu discurso revela uma percepção na qual o gestor assume uma proximidade maior com ele (subordinado), propondo uma relação mais social e “humanizada”. Nessa perspectiva, o subordinado se sente valorizado, pois seu gestor supostamente pode ouvir seus problemas.

Já na ótica do gestor, a ação do ouvir o aproxima do subordinado, compreendendo melhor como este funciona, quais as perspectivas que tem do trabalho e quais as suas dificuldades em realizá-lo, além de se comprometer com o subordinado em “humanizar” as relações e transformar a organização do trabalho em um ambiente de maior amplitude de consideração subjetiva.

Aí está meu diferencial, eu paro tudo que estou fazendo e… as vezes é uma coisa pessoal dela que ela vem conversar comigo e no que eu posso ajudar eu tento conversar, orientar, ajudar,  direcionar para onde ela tem que buscar auxílio, seja psicológico, seja onde for. Então, assim, eu sempre tive essa preocupação de ouvir a pessoa, seja um problema pessoal, seja o que for… É aquela preocupação do ouvir. Não é só assim, você é só mais um, você me deu um resultado, mas se não….Não é só descartar… (Gestor A)

Torna-se interessante observar o que a fala do “Gestor A” revela.  A preocupação de ouvir a pessoa aparece relacionada com a possibilidade de o subordinado trazer algum resultado. Não há uma preocupação genuína com o sujeito, dentro de uma perspectiva que coloque esse sujeito como protagonista de uma relação, exceto se ele tiver uma função, a saber: trazer um resultado. É curioso observar que o “Não é só descartar” não está nem subjacente, mas surge com uma certa espontaneidade, e uma relativa naturalização.

Na perspectiva organizacional, a contribuição que essa competência gerencial traz, a partir da inteligência prática do gestor, pode ser associada à organização do trabalho gerencial. Com base no que o campo trouxe, uma gestão que “humaniza” a relação líder-liderado é uma gestão propensa a administrar da melhor forma os recursos disponíveis e incorporar o fator humano (Dejours, 2005) de forma mais adequada, levando em conta o seu dinamismo e peculiaridades.

Ouvir, para o gestor, mostra-se uma competência gerencial voltada para a administração da mudança, para dar rumo à organização do trabalho e sentido à visão compartilhada, ao mesmo tempo em que consolida todo um ciclo em que ele, gestor, como sujeito no trabalho, promove a manutenção de sua saúde mental e física, encontrando alternativas para as situações do trabalho real que a prescrição não soluciona.

No entanto, uma observação que pode ser feita está voltada para o significado de ouvir, uma vez que pode assumir uma competência instrumental. Não necessariamente a competência em ouvir, para os gestores, se mostrou como algo semelhante à empatia. Este ouvir pode se manifestar como uma forma de obter informações para tomar uma ação, chegar ao resultado final, não significando uma identificação com as necessidades do trabalhador ouvido, tendendo a algo semelhante a uma barganha.

Esse ambiente agradável não é fazer churrasco tudo pago pela gerência. É dar um bom dia pro cara, é ter tempo pra você ouvir o que o cara ta passando na vida dele, é você ter um ouvido, ter um ombro. E… Mas assim, quando você faz isso, você abre precedentes pro cara te contar os problemas dele, você vai ter que entender os problemas do cara, mas… você abre também precedentes pra virar pro cara e falar “olha, você ta errado, quero que você faça isso”. Maquiavélico ou não, do “O Príncipe” de Maquiavel, ou não, você vai ter que fazer o bem aos poucos. O bem aos poucos, cara, você… primeiro, ouve o cara, entende o problema dele, entende o que ta passando. Sente com ele. Sentiu com ele? Começa a dar a chance. Começa a virar pra ele e falar “olha, quero isso pra data tal.”. Estrutura, organiza. Estruturou, organizou, os resultados vão aparecer porque o salário não vai ser o problema, entendeu? (…) Então, assim, eu entendo que o gestor ele tem que observar o que que os funcionários dele necessitam. O que que eles estão precisando. Mas pra isso você tem que ouvir. Coisa eu acho que não é muito normal, né, no gestor. O gestor per si, ele manda. Ele manda, não ouve, ele fala, ne. É… Eu entendo um pouco diferente, eu entendo que pra ter um resultado maior, um resultado melhor, você tem que ter o cara do teu lado, ne. (Gestor E)

O desafio que se põe além da competência gerencial está na inclinação para uma apropriação da subjetividade, ou melhor , um apelo e um sequestro da subjetividade (FARIA, 2013, pp. 381-389).

A pessoa do “Gestor E” explicita que uma boa estratégia para ter o subordinado sob controle, dominado, é aprender a ouvi-lo até o ponto em que este lhe confia angústias da vida pessoal. Esse dado torna-se revelador, na medida em que o “saber ouvir” está ligado a “saber manipular” os afetos dos subordinados, para que se tenha mais facilidade em fazê-los produzir. Se recorrermos à tese de Pagès et ali (2008) podemos entender a lógica doutrinária do poder das organizações, que instala ritos de controle e obediência voluntaria de seus seguidores. Na fala do entrevistado acima referido, percebe-se que o discurso organizacional nem está travestido de algum eufemismo, por exemplo (VIEIRA & NOGUEIRA, 2013, pp. 159-170). Está explícito, pois o mesmo, inclusive, usa Maquiavel, para tentar justificar a naturalização de sua fala.

Pensamos que o “saber-ouvir”, para esse gestor, usa recursos de violência psicológica, na medida em que sua aproximação sentimental com os seus subordinados está condicionada a dominá-los psicologicamente. Oferece o ombro amigo ao subordinado. Entende o problema dele. Sente com ele. Depois que ele percebe que o gestor supostamente entendeu e sentiu suas dores, este se sente pronto para efetivar suas competências gerenciais: Estrutura, organiza. Estruturou, organizou, os resultados vão aparecer porque o salário não vai ser o problema, entendeu? E torna-se ainda mais curioso perceber como essa seria uma receita, um prescrito para ser seguido por outras práticas gestionárias: entendeu?

E quando o ambiente organizacional apresenta condições visivelmente precárias ou uma situação de crise, as estratégias de manipulação e controle da subjetividade do trabalhador aparecem como recursos mais eufemizados. O relato abaixo mostra essa consciência de um dos gestores entrevistados.

Assim, a primeira tentativa é sempre pelo convencimento do significado daquela… daquele trabalho. O significado que aquele trabalho tem para o empregado e principalmente pra companhia, ne. O que aquilo pode trazer de benefício para ambos, ne. Se existe, no caso, em que esse benefício vai ser para a empresa… Outros casos também pode ser para eles. Mas o ideal é que a gente conseguisse fazer esse conjunto. É claro que muitas vezes você passa por situações dentro duma… duma organização, em que ela foge um pouco às expectativas dos empregados, como, por exemplo, reestruturações, promoções… E aí com isso vem alguns… é… vamos dizer, desestímulos, algumas… é… situações que deixam o empregado sem aquele vigor de buscar e de fazer, seja pelo compromisso com a empresa, seja pela satisfação. E aí, assim, nessas horas é que eu entro com aquela… vamos dizer, com termo… é… não é o ideal, mas com a camaradagem. (Gestor G)

Faria (2013) lembra que desde a Revolução Industrial, o sequestro da subjetividade era considerado pela relação de propriedade da força de trabalho pelo capital, numa ótica de submissão forçada. Já no aspecto mais contemporâneo, a exploração, sequestro ou apropriação da subjetividade denota o apelo às emoções, ao afeto, ao saber, à intimidade, que formam a base de tradução racional idealizada pelos valores, interpretações, atitudes e ações.

De um lado, tem-se a violência psicológica mais explícita, na qual a relação de trabalho pode ser caracterizada por humilhações e aviltamentos entre chefes e subordinados ou mesmo entre os próprios pares.

Enriquez (2007, p. 191) destaca que a estrutura estratégica da empresa de hoje é um misto de racionalidade e paixão. Por um lado, seduz, ilude e engana. Por outro, exige que o indivíduo se conforme com as demissões injustificadas, com métodos cruéis de gestão tais como o assédio moral e sexual etc. “(…) A empresa diz de forma direta, e também de forma subliminar, o quão descartável é o indivíduo, tanto nos níveis mais baixos quanto mais altos da hierarquia”.

O objetivo desse texto foi trazer uma reflexão introdutória acerca do “saber ouvir”, como uma competência gerencial apontada por gestores entrevistados no Estado do Rio de Janeiro, em diferentes tipos de organizações. Fruto de uma inteligência prática, mobilizada no sentido da astúcia em empreender soluções criativas àquilo que a prescrição não dá conta, o “saber ouvir” traduz-se em uma inteligência enraizada no corpo, a partir dos dados sensoriais com os quais o gestor interpreta uma situação de trabalho, realiza um diagnóstico ou uma medida corretiva e faz uso da técnica posteriormente, para checar, operacionalizar ou universalizar a ação sugerida pelos seus sentidos.

No entanto, partindo de uma análise subjacente a esta astúcia, percebemos que os subordinados são considerados como meros recursos do sistema produtivo, fazendo jus à nomenclatura tradicional dos Recursos Humanos. Os participantes da pesquisa revelaram que consideram de suma importância desenvolver o exercício de “saber ouvir” seus funcionários, para constituírem suas competências como gestores.

“Saber ouvir”, para eles, implica em aprender a manipular a subjetividade dos seus empregados, ganhando sua confiança, para que estejam mais dispostos a servirem voluntariamente seus senhores, dizemos, gestores. Lembrando uma velha tese de La Boétie (2009), no discurso da servidão voluntária, os súditos docilizados não só perdem a liberdade, mas ganham a servidão! E a função gerencial, nesse particular, estaria corroborando a banalização dos sujeitos, como já discutidos por Hannah Arendt e por Christophe Dejours.