Pretendo refletir neste texto sobre a aproximação da psiquiatria contemporânea com a noção de risco, analisando especificamente o caso da Síndrome do Risco de Psicose (Psychosis Risk Syndrome, PRS), diagnóstico proposto para a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos mentais o DSM-5. Inicialmente gostaria de refletir sobre o conceito de risco.
O dicionário Aurélio define risco de duas maneiras: como “a possibilidade de perda ou responsabilidade pelo dano” e também como “perigo ou a possibilidade de perigo”. Tais definições apontam para uma visão de risco como uma probabilidade de ocorrência de algum evento negativo, seja um dano ou uma situação de perigo. Não há, portanto, a certeza de tal ocorrência, mas sim a possibilidade, que pode ser maior ou menor de acordo com o caso. Como apontam Castiel, Guilam e Ferreira no livro Correndo o risco, a noção de probabilidade pode ser entendida de dois modos: 1) como algo “intuitivo, subjetivo, vago, ligado a algum grau de crença, isto é, uma ‘incerteza que não se consegue medir” e 2) como algo “objetivo, racional, mensurável mediante técnicas probabilísticas – ‘incerteza capaz de ser medida”. Esta segunda concepção está relacionada, por sua vez, à abordagem dos fatores de risco que busca marcadores que possibilitem a predição e mesmo a prevenção, de determinados danos ou perigos futuros. O objetivo é, portanto, entender e atingir algum controle sobre certas questões aparentemente incontroláveis ou incertas, de forma a possibilitar intervenções no presente que evitem danos futuros.
Dois conceitos são essenciais pra se entender a noção de risco: causalidade e associação. O primeiro termo refere-se não a uma probabilidade, mas a uma certeza: x causa y, ou seja, se há x, certamente haverá y. Não se trata, portanto, de um risco ou de uma probabilidade, mas de algo dado e certo. Como apontam os autores, uma vez estabelecida uma relação causal entre x e y, torna-se imperioso, especialmente em questões relacionadas à saúde, intervir em x para que y não se manifeste. Por exemplo, uma vez estabelecido que altas temperaturas causam significativos danos à saúde humana, pode-se pensar em intervenções que impeçam agravos resultantes da exposição ao calor. No entanto, a maior parte das questões do mundo, especialmente no campo da saúde, não podem ser simplesmente explicadas por uma relação de causa e efeito. E é aí que se insere o conceito de associação, que aponta para relações probabilísticas entre x e y. Neste caso x está associado à y, ou seja, se há x há alguma probabilidade de que y se manifeste. Por exemplo, o uso de cigarro está associado ao câncer de pulmão, o que significa que a pessoa que fuma tem maiores possibilidades de desenvolver um câncer de pulmão do que não-fumantes, mas não que tal pessoa necessariamente irá desenvolvê-lo. Isto porque, como apontam os autores, “as afirmações baseadas em probabilidades são dependentes de contingências eventualmente fora do controle dos observadores em seus intentos de especificar causas e efeitos”.
Uma consequência disso na área da saúde, é que as intervenções que visam a prevenção de doenças ou mesmo a promoção de saúde, tem que lidar com certas doses (algumas vezes muito altas) de incerteza, estando a noção de risco justamente relacionada a isso. Estes autores apontam ainda para três tipos de risco: absoluto, relativo e atribuível. O primeiro se refere à incidência de determinada condição ou doença na população em determinado intervalo de tempo. Por exemplo, quando se diz que a incidência de leucemia em Recife no ano de 2003 é de 3,6 por 100.00 habitantes, isto significa que o risco de se desenvolver leucemia neste período é de 3,6/100.000. Já o risco relativo informa quantas vezes o risco é maior em um grupo, quando comparado a outro. Por exemplo, dizer que fumantes tem quatro vezes mais probabilidade de desenvolver câncer de pulmão significa dizer que o risco relativo para tal morbidade é de 4. Finalmente, o risco atribuível aponta para diferença na incidência de determinada questão quando dois grupos são comparados, diferença esta que é atribuída à exposição ou não-exposição a determinados fatores de risco. Por exemplo, a taxa de mortalidade por câncer de pulmão para não fumantes pode ser calculada efetuando-se sua subtração com a taxa de câncer de pulmão na população em geral e o resultado obtido é o chamado risco atribuível ao câncer de pulmão relacionado ao ato de fumar.
No campo da saúde, a noção de risco vem tomando cada vez mais destaque. Diversos autores chamam mesmo atenção para uma tendência a reclassificar fatores de risco como doenças. Segundo Schwartz, algumas das “doenças” mais comuns atualmente, como a hipertenção arterial, a hipercolesterolemia, a obesidade e o diabetes, passaram a ser definidas a partir da noção de risco – são, por assim dizer, doenças baseadas no risco (risk-based diseases). Isto significa que questões que eram entendidas como risco para determinadas doenças ou problemas de saúde passam a ser entendidas como doenças autônomas. Reiheld chama este processo de medicalização do risco. E tal processo traz repercussões profundas no discurso e nas intervenções biomédicas.
Castiel, Guilam e Ferreira apontam para algumas consequências, como a multiplicação de regras comportamentais voltadas para a prevenção e promoção de saúde (por exemplo: não fumar, beber moderadamente, fazer exercícios físicos regularmente etc), a ampliação das tarefas na clínica médica relacionada ao surgimento de uma clínica da vigilância dos riscos, a criação de novos produtos, serviços e especialistas voltados à gestão do risco etc. Relacionado a isso, Dumit (2012) aponta para a emergência de um novo tipo de saúde, no qual ser normal é ter sintomas e fatores de risco com os quais se preocupar. Ser normal, atualmente, é estar sempre inseguro – duplamente inseguro, tanto por não saber o suficiente sobre o futuro e sobre a própria saúde como por não saber o que se pode ou se deve fazer para permanecer ou tornar-se saudável. E quando mais inseguros e medrosos ficamos, mais ações preventivas e medicamentos precisamos. E, com isso, surge todo um novo mercado de produtos e remédios voltado para a prevenção de doenças e redução dos riscos. E isto, por sua vez, gera, no linguajar de Dumit, novos “modos biomédicos de viver”, ou seja, formas com que as pessoas se relacionam com as medicações e com os riscos da vida.
O primeiro tipo definido pelo autor é o “paciente expert”, que engloba pessoas sedentas por informações sobre a própria saúde. Os pacientes experts são, por assim dizer, experts em serem pacientes. Sabem todas as suas taxas de glicose e colesterol e tentam se manter sempre atualizados com relação à elas. E para atingirem a tão desejada saúde adotam uma abordagem um tanto hipocondríaca, que Dumit chama de “abordagem da poli-pílula”: com o objetivo de serem saudáveis, tomam uma série de medicações.
Assim, o lema dos “pacientes experts” é: “se você pode tomar remédios que te ajudam, então você deve tomá-los”. O segundo tipo definido por Dumit são os “sujeitos assustados”. Estas pessoas não tanto procuram a saúde quanto evitam doenças e riscos, mas nunca estão certos se de fato conseguiram o que pretendem. Tais sujeitos vivem permanentemente tensos e inseguros – e mesmo assustados – diante das incertezas e controvérsias da área da saúde. “Os médicos dizem que comer salmão faz bem para o coração, mas li no jornal que os salmões estão contaminados com dioxina, o que aumenta o risco de câncer. O que eu faço? Como ou não como?”. É esse tipo de crise em que vive permanentemente os sujeitos medrosos. “Como chocolate porque faz bem para o coração ou não como porque aumenta o colesterol?” A alimentação, neste caso, é tratada como remédio, num processo chamado por Dumit de medicalização da comida. Segundo o autor, a oposição entre o que é prazeroso e o que é saudável é uma característica essencial dos sujeitos medrosos. Finalmente, o último tipo definido pelo autor são as pessoas que “vivem melhor através da química”. Estas pessoas estão bem resolvidas com o fato de que a vida pode (e portanto deve) ser regulada quimicamente. Não há nessas pessoas qualquer culpa ou receio com relação às medicações. Elas simplesmente as incorporaram em suas vidas e em suas identidades.
Todos estes modos biomédicos de viver apontam, segundo o autor, para uma definição de saúde cada vez mais relacionada à redução de riscos e à promoção de bem-estar, mais do que simplesmente o tratamento de doenças, o que abre novas e lucrativas possibilidades para a já lucrativa indústria farmacêutica.Seguindo esta tendência mais ampla, a Psiquiatria tem cada vez mais incorporado a noção de risco em seus discursos e práticas, ainda que em menor intensidade se comparado com outras áreas da medicina. E isto tem relação com a intenção da Psiquiatria contemporânea em se legitimar enquanto uma especialidade biomédica. O DSM-III, e agora o DSM-5, sinalizaram exatamente para o movimento de uma psiquiatria dinãmica para uma psiquiatria biológica baseada em critérios e fundamentos definidos, pretensamente, de forma objetiva.
Um consequência deste movimento mais amplo foi a multiplicação, na atualidade, de estudos que visam estabelecer marcadores que indiquem o risco do desenvolvimento de transtornos mentais, assim como propostas de intervenção precoce. Um importante exemplo foi proposição e discussão do diagnóstico de Síndrome do Risco de Psicose (Psychosis Risk Syndrome) pela força-tarefa do DSM-5. Na versão final, publicada em Maio de 2013, o diagnóstico, renomeada como Síndrome da Psicose Atenuada (Attenueted Psychotic Syndrome), foi incluído na seção 3 em que constam as condições que exigem mais pesquisas antes de serem consideradas oficialmente transtornos mentais
Como aponta Oliveira, a ideia de risco relacionada à psicose não é recente. No entanto, é somente no processo de construção do DSM-5 que surge o interesse em se construir uma categoria nosológica específica baseada na noção de risco para psicose. Ainda que a expressão “risco” tenha sido abandonada na nomenclatura que prevaleceu, a noção de risco continua presente. Segundo este mesmo autor, o interesse de pesquisadores do campo em tal diagnóstico pode ser explicado tanto pela gravidade dos quadros psicóticos quando instalados quanto pela possibilidade de realizar intervenções precoces/preventivas para estes quadros. McGlashan, acrescenta que outra razão pela qual tem se pesquisado sobre tais questões, que é o fato de os tratamentos medicamentosos atuais terem ainda significativas limitações. Dentre elas está o fato de ajudarem significativamente no controle dos sintomas positivos da psicose (alucinações, delírios, etc), mas pouco contribuírem no tratamento dos sintomas negativos, como os déficits nas capacidades mentais e emocionais.
Como aponta este autor, intervenções precoces para quadros psicóticos não eram seriamente consideradas até meados da década de 1990. Anteriormente, aponta, era considerado ética e clinicamente equivocado intervir antes do quadro já ter se instalado. Recomendava-se cautela na realização do diagnóstico, mesmo diante dos chamados pródomos, que são sinais ou grupo de sintomas que podem indicar o início de uma doença antes que sintomas específicos surjam. Posteriormente, aponta o autor, foram publicados numerosos estudos sobre o primeiro episódio de psicose demonstrando a forte correlação entre tratamentos precoces (tanto farmacológicos quanto psicossociais) e um melhor prognóstico. Tais resultados corroboravam a hipótese de que intervenções na fase prodrómica poderiam prevenir o desenvolvimento da psicose, o que abriu o campo psiquiátrico para a possibilidade de intervenções que fossem além de tratamentos pcurativos/paliativos. Neste momento, final da década de 1990, foram desenvolvidas também novas medicações que demonstraram ser mais eficazes e ter menos efeitos colaterais. McGlashan aponta ainda para um importante estudo realizado por uma equipe australiana que encontrou que entre 20 e 41% dos pacientes definidos como prodrômicos se tornariam psicóticos dentro de um ano. Tal dado, de certa forma colocava em cheque a estratégia do “esperar para ver”, dominante na Psiquiatria naquele momento. Diante da possibilidade de identificar sintomas prodrômicos e intervir precocemente, tal estratégia se mostrava, agora, equivocada e mesmo antiética.
No entanto, um problema persistia – e ainda persiste: grande parte daqueles identificados como prodrômicos, entre 60 e 80% segundo a pesquisa relatada, não desenvolviam quadros psicóticos no decorrer do ano seguinte, ou seja, os sintomas prodrômicos identificados através de avaliações clínicas não levam, necessariamente, à psicose. Trata-se de uma possibilidade, de uma associação, não de uma relação de causa e efeito. Desta forma, qualquer intervenção precoce está baseada, ainda, em uma grande incerteza. Além disso, como aponta Oliveira “não se comprovou ainda, empiricamente, se a intervenção precoce pode contribuir para a diminuição da gravidade do quadro psicótico quando instalado ou ainda se pode mesmo prevenir o desencadeamento do transtorno”. Desta forma, atuar com base em tantas incertezas traz alguns perigos, como a possibilidade de submeter os pacientes falsos positivos inutilmente aos riscos e efeitos colaterais inerentes a uma terapia medicamentosa. Além disso, o risco do estigma associado aos transtornos psicóticos não pode ser descartado. Por tudo isso, é importante se refletir bastante ainda sobre a noção de risco e sua aproximação com o campo psiquiátrico. Porque ainda que o interesse de prevenção dos transtornos mentais seja legítimo, ainda pairam muitas dúvidas sobre os reais benefícios e prejuízos da medicalização do risco.