Sobre a memória na escrita ou sobre a escrita da memória

Escrever é tornar registrada uma ideia. Somente uma ideia cultivada em seu próprio ciclo de vida IMPULSO-SIGNIFICAÇÃO-MEMÓRIA-PENSAMENTO pode, no transcorrer da tinta, do impulso eletrônico ou do lance sináptico, tornar-se escrita.

A arte de memória é como uma escrita interna…os locais são como tábuas de cera ou papirus, as imagens como letras, o arranjo e a disposição de imagens, como o script, e a fala, a recitação, como a leitura… Os lugares permanecem na memória e podem ser usados novamente, muitas vezes (…) (Smolka, 171).

Com isso, é clara a ideia de que a escrita ocorre independente do registro externo, o do papel ou do computador, pois se dá no próprio pensamento. As ideias são escritos que foram mais apropriados, mais memorizados, mais editados pelo pensamento, não necessariamente mais velhos. Quando se passa a escrita para o papel, apenas se repete o que se escreveu no pensamento. Ao mesmo tempo, esse passar (refazer um registro) cria uma reação espelhar do/no próprio pensamento que se projeta no infinito microcosmo do registro, tanto o neuronal quanto os de “fora”, das tintas, do carvão, dos sistemas eletrônicos, do vinil, dos cristais e etc. Em suma, escrever é apenas um momento de um pensar que não cessa até a sua morte. Portanto, a escrita é também um exercício da memória, mesmo antes da existência dos papéis, de papiro, de cânhamo, não importa. Seligmann-Silva (2006) faz um estudo histórico acerca de como o conceito de memória modifica-se ao longo do tempo. Esse autor afirma que

Na Antigüidade não só não existia a impressão de livros, como tampouco havia papel tal como nós o conhecemos hoje; daí a importância da memória para o orador. Também em Cícero é patente o valor atribuído à visão dentro da técnica de memorização. O princípio central da mnemotécnica antiga consiste na memorização dos fatos através da sua redução a certas imagens que deveriam permitir a posterior tradução em palavras: a realidade (res) e o discurso final (verba) deveriam ser mediatizado pelas imagens (os imagines agentes). Essas imagens por sua vez, deveriam ser estocadas na memória em certos locais (loci) imaginários ou inspirados em arquiteturas de prédios reais. O importante era que o retor tivesse domínio sobre esses espaços da memória que deveriam ser percorridos no ato de sua fala, quando cada imagem seria retraduzida em uma palavra ou em uma idéia. (Seligmann-Silva, 2006, p.35)

O que é a memória? Qual é sua unidade de medida? O vinil, o cristal e o carvão não armazenam nada além de deformações microscópicas em sua estrutura concreta. É na interação com outros instrumentos que eles se mostram em imagens e em sons dos aparelhos. Talvez a memória seja assim também. Seligmann-Silva (2006) escreve que

Em Aristóteles, portanto, encontramos tanto uma concepção da memória como escritura na nossa placa mnemônica das impressões do mundo, como também uma forte concepção de reminiscência ou recordação, como um procedimento de leitura — e, como é evidente, a comparação com as letras do alfabeto não é de modo algum casual aqui. O elemento ativo da memória é comparado ao modo de ação de um pesquisador ou viajante que busca a inscrição mnemônica pelos labirintos de nossa memória-arquivo. A noção de associação também é essencial no nosso contexto: a estruturação da recordação – e portanto do discurso de um modo geral, que sempre está recuperando informações arquivadas – funciona a partir de um princípio de leitura de semelhanças que não deixa de lembrar a definição aristotélica, da sua Poética, do homem como um “ser mimético” (Seligmann-Silva, 2006, s/p).

Distinguem-se, portanto, duas maneiras mnemônicas: uma que imprime micromarcações sinápticas e outra que é posta em movimento quando as buscamos em nossos “arquivos”. A primeira parece que comunica algo quando na presença de estímulos parecidos com os que estiveram no momento de sua impressão, como faz o vinil. A segunda comunica algo que intentamos comunicar. A ordem da intencionalidade é assunto para outro artigo, mas, para quem tem interesse, ver o artigo chamado “A Importância da Act-Psychology de Franz Brentano”, de Saturnino Pesquero Ramón (Ramón, 2006), professor da Universidade Católica de Goiás.

Autores como Seligmann(2006), Smolka (2000) e Myrian Sepúlveda dos Santos (1989) escrevem sobre o caráter individual e coletivo da memória. Seu caráter individual abarca a forma como um indivíduo acessa o seu banco de dados ou como ele é de outra maneira acessado; seu caráter coletivo caminha desde a tradição oral da passagem do conhecimento, passando pelas artes em geral, em especial as imagéticas, chegando ao registro eletrônico interativo. Todos eles ressaltam, com ou sem críticas, os trabalhos de Halbwachs, sociólogo francês que desenvolveu o conceito de memória coletiva durante as décadas de 30 do século XX. Por exemplo, Sepúlveda dos Santos afirma que

No primeiro de seus trabalhos sobre memória, Les cadres sociaux de la mémoire, Halbwachs estabeleceu os aspectos principais de sua teoria, reafirmados em trabalhos posteriores, que, a meu ver, consistem, primeiro, da afirmativa de que memórias só podem ser pensadas em termos de “convenções” sociais, chamadas por ele quadros sociais da memória; segundo, de que o passado é reconstruído continuamente; e, terceiro, de que o estudo de quadros sociais ou memórias coletivas pode ser realizado empiricamente e de forma autônoma à intenção dos indivíduos. (Sepúlveda Santos, 1989, p. 149).

O levantamento acima é apenas para mostrar que a memória é mais um amplo tema sobre o qual há tantas divergências quanto convergências. Como a colocamos para rodar? Todas as pessoas talvez saibam a resposta para essa questão, mas não a sabem escrever, nem no pensamento. Parece que a memória se trata de um lugar que está em vários outros lugares, no cérebro, nos músculos, nas células, nos genes. Questiono-me se isso tem alguma coisa a ver com o fato de um dos mais eficazes exercícios psicológicos associados ao desenvolvimento da memória possuir, como comando básico, o uso da imagem de lugares. O exercício é chamado “Palácio da Memória” e tem Matteo Ricci, um italiano fazendo missão jesuítica na China, como reconhecido por ter usado e desenvolvido tal método, no século XVI (Smolka, 2000).

As janelas que definem o Windows são os lugares vistos por dentro, possivelmente uma analogia à ideia de que a indústria cibernética enraíza-se, capilariza-se dentro do pensamento humano. A cibernética lida com o governo dos sistemas físicos automáticos, que podem pensar sem saber que estão pensando. Se sabem ou não, a questão mais contundente na cibernética está no fato de que se trata da área que lida com a disseminação da comunicação de valores sócio-culturais de maneira mais eficaz que conhecemos. Vivemos num mundo que, mesmo que gire em torno do capital fortemente, gira também, de maneira acentuada, em torno da comunicação. A internet pode não ser um sistema de ensino, mas é certamente o que mais educa hoje em muitos centros urbanos. Pelo menos a tendência parece ser essa. Por ela se propagam jeitos de escrever, de falar, de andar, de vestir, de comer, de sentir, de pensar, de viver, da mesma maneira que ocorre no uso dos lugares usados no exercício da memória. Roque Theóphilo (s/d) afirma que

A cibernética nasceu do estudo comparado das máquinas eletrônicas automáticas sobre os processadores do sistema nervoso dos seres vivos e as suas respectivas conexões nervosas. A simulação deste comportamento pelo computador gerou, na prática, o surgimento da cibernética. Com o desenvolvimento da tecnologia o termo estendeu-se às máquinas que efetuam movimentos diferentes segundo alguma condição interna. Com o advento da eletrônica e a sua grande evolução foi possível a utilização das condições elétricas, magnéticas e óticas, bases dos processadores digitais e da cibernética atuais.

A internet reconfigura de maneira significativa a forma como escrevemos. E se reconfigura de maneira significativa a forma como escrevemos, alteração de alguma ordem deve trazer também à memória, recurso usado, como já visto, diretamente no exercício da escrita. Benjamin (1994) trata do declínio da tradição oral e da ascensão da novela dos livros como uma das condições pelas quais um povo perde sua memória. A análise de Benjamin nos traz à cena a questão da estratégia comunicacional que liga pessoas por meio de uma determinada troca coletiva na qual partilham de significados, leis, convenções e rituais cuja articulação é chamada “cultura”. Para Roque Theóphilo (s/d)

Assim, a comunicação é regida por um processo de controle, que é a habilidade para fazer que algo se comporte exatamente como se deseja. O homem tem sido considerado pela psicologia, implícita ou explicitamente, um sistema de controle adaptativo pela aprendizagem, explicando-se, pois, como se desenvolve o processo de controle. A teoria do controle tem recebido severas críticas por sua origem mecanicista, não se perdendo de vista que o processo do controle é essencial para a comunicação. A relevância do processo de controle em psicologia é percebida quando a sua ausência se reflete nos processos que são afetados quando surgem erros de comunicação (entropias) que causam sérios transtornos. Evidentemente que o processo de controle, quando efetuado por sistemas eletrônicos sobre o comportamento humano e sobre as demais funções humanas, deve ser regido por severos princípios éticos, porquanto poderiam derivar-se, invasivamente, no condicionamento humano, tão a gosto dos regimes de intolerância para a prática da famigerada lavagem cerebral.

Theóphilo levanta uma questão importante à Psicologia e trabalhada por Benjamin quando trata da narrativa: a constituição de uma sociedade cujos membros, por possuírem pouco uso da memória, encontram-se escravizados. A discussão acerca disso é infindável: abrange desde o condicionamento respondente experimentado por Pavlov ao sistema religioso, científico e capitalista, todos eles aprisionadores.

Contudo, o intuito desse texto não é abarcar conceitualmente a memória, tão pouco o árduo tema do controle e do poder. Esse texto é fruto de um exercício de escrita sem temas. Às vezes escrevo sem ter, primeiramente, um tema. Há, nesse exercício, um sentido diferente no caminho da palavra, do que aquele percorrido por ela em busca de temas, quaisquer. O sentido do fluxo da palavra, na escrita sem tema, é aquele em que elas próprias moldam o pensamento e não ao contrário. Escrever sem temas é deixar ser guiado pelas palavras. E elas foram-me saindo, como se elas próprias fossem a memória em si, fazendo sua função de lembrar e, ao mesmo tempo, de criar o mundo. O sair das palavras me levou ao tema da escrita, da memória, da sociedade, dos sistemas e, de novo, ao da escrita para, por fim, como no início, se não me falha a memória, deixar-me sem tema.

Referências:

BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

Ramón, Pesquero Saturnino. A Importância da Act-Psychology de Franz Brentano, in: Psicologia:Reflexão e Crítica, 19 (2), 340-345, 2006.

Roque Theóphilo.  A história da cibernética, s/d. Acessado no sítio:http://www.psicologia.org.br/internacional/ap10.htm, no dia 26 de dezembro de 2012.

Seligmann-Silva, Márcio. A escritura da memória: mostrar palavras e narrar imagens, in: Remate de Males – 26(1) – jan./jun. 2006

Sepúlveda dos Santos, Myrian. O PESADELO DA AMNÉSIA COLETIVA: UM ESTUDO SOBRE OS CONCEITOS DE MEMÓRIA, TRADIÇÃO E TRAÇOS DO PASSADO.  in: CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA Nº 19, 1989.

Smolka, Ana Luiza Bustamante. A memória em questão:
uma perspectiva histórico-cultural, In: Educação & Sociedade, ano XXI, nº 71, Julho/00.