Carl Gustav Jung (1875-1961) foi o idealizador da Psicologia Analítica, e com ela propôs uma série de conteúdos revolucionários acerca da psique humana. Estes diziam respeito ao inconsciente pessoal e coletivo, também a inúmeros aspectos acerca da personalidade individual de cada um, permitindo explorar com precisão a individualidade dos sujeitos, mesmo que estes imersos em instâncias psíquicas tão complexas. Dentre tantos conceitos, também postulou a ideia dos arquétipos, como sendo imagens ancestrais enraizadas no inconsciente coletivo às quais nós temos acesso e com os quais entramos em contato ao longo da vida (JUNG, 2018).
Dentre os diversos arquétipos existem o Animus e a Anima. Esses arquétipos contrassexuais foram denominados assim por Jung com o objetivo de representar respectivamente as partes masculina e feminina dentro de cada indivíduo, sendo assim condutores da consciência feminina e masculina para o mundo interior da psique. De maneira simbólica, cada homem teria contido em si certo aspecto feminino e cada mulher um masculino.
Anima significa o componente feminino numa personalidade de homem, e o animus designa componente masculino numa personalidade de mulher. Ele tirou tais palavras do termo latino animare, que quer dizer animar, avivar, porque sentiu que a anima e animus se assemelhavam a almas ou espíritos animadores, vivificadores, para homens e mulheres (SANFORD, 1987, p.12).
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Pensando em questões contemporâneas ligadas à experiências pessoais de quem produziu esse artigo na clínica escola, surgiu então a indagação acerca do tema, pois muitos pacientes que ingressaram na clínica no período de tempo anterior recente, encontravam em suas demandas uma raiz fortemente ligada a questões de animus e anima. Desde a maneira como esses pacientes lidavam pessoalmente com esse aspecto em si mesmos, até em questões fundamentais imagéticas ligadas a como estes concebiam os conceitos nas suas relações familiares basilares.
A partir daqui as atenções se voltam ao arquétipo masculino e seus conceitos, implicações, mitos e histórias relacionadas a este que ajudaram a difundir no inconsciente coletivo da humanidade ao longo das eras, em uma abordagem mais presentificada em sua correlação com o cotidiano do ser humano moderno e suas implicações para a vida psíquica dos possíveis pacientes clínicos do século XXI.
O ANIMUS – A MASCULINIDADE INTRÍNSECA NA MULHER
Ao se debruçar em suas primeiras definições acerca do arquétipo de Animus, C. G. Jung afirma que “(…) a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus. Se não é simples expor o que se deve entender por anima, é quase insuperável a dificuldade de tentar descrever a psicologia do animus” (JUNG, 2011, p. 98). As descrições de animus no texto original de Jung vão ser extrapolações do conceito de anima, com o autor a todo momento mostrando ao leitor as oposições e conceitos comparativos entre a psique masculina e feminina. Segue outro exemplo:
O homem atribui a si mesmo, ingenuamente, as reações da sua anima, sem perceber que na realidade não pode identificar-se com um complexo autônomo; o mesmo ocorre na psicologia feminina, só que de um modo muito mais intenso, se é que isto é possível. A identificação com o complexo autônomo é a razão essencial da dificuldade de compreender e descrever o problema, sem falar de sua obscuridade e estranheza (JUNG, 2011, p.98).
Em ambos os casos fica clara a mensagem intrínseca que Jung quer escrita: existe uma instância arquetípica imagética masculina dentro dos seres humanos pertencentes ao sexo feminino. E que essa imagem arquetípica compensaria determinados pontos da personalidade dessas mulheres – em um sentido pendular quase de enantiodromia – em diversos pontos da sua vida social familiar e afetiva ao longo de todo o processo de seu ciclo vital.
Emma Jung (2006), expandiu as noções de animus, ela começa descrevendo o animus e buscando referências em literatura clássica para identificar o mesmo. Aqui a autora nos aponta que o masculino é caracterizado por 4 aspectos, ou estágios: de força, ato, verbo e sentido, todos estes dependentes da consciência e cada um individualmente associado a um tipo de masculinidade e de imago masculina. Em todo o seu texto ela aponta que as mulheres em seu âmbito são movidas pelo princípio do Eros, algo que pode ser traduzido como ligação sentimental ou a estas se voltarem a relações e afetividades, enquanto o homem seria regido pelo princípio da Logos, associado a razão. Deixando claro no fim que, para consciência da mulher o que seria mais importante se consiste no que tange às relações pessoais e as nuances que costumam escapar das percepções dos homens.
“O animus serve – em seu aspecto positivo – como elo entre o ego feminino e a sua criatividade. Já em seu aspecto negativo, o animus pode se expressar por meio de preconceitos e ideias destrutivas nos relacionamentos que estão presentes na vida da mulher” (GONÇALVES, 2018, p.13). Se o indivíduo não consegue integrar os aspectos opostos em si de maneira saudável, se tem alguma experiência traumática durante seu desenvolvimento, ou se na tenra infância falta alguma figura de referência, isso pode gerar um Complexo futuro. Assim, podendo incorrer no chamado animus negativo, as implicações disso para a vida pessoal do paciente podem ser tremendas. Marie-Louise Von Franz disserta sobre:
Em geral, o primeiro homem que uma mulher conhece é seu pai, que portanto tem uma influência muito grande sobre a menina. Se a relação com o pai se constela de um modo negativo, a menina reagirá negativamente a ele. (…) se a relação for negativa, mais tarde ela provavelmente terá dificuldade com os homens e não descobrirá seu próprio lado masculino. No extremo, ela ficará completamente incapaz de abordar os homens. (…) Se o caso não for tão extremo, ela será o que se costuma chamar de uma mulher difícil. Discutirá com os homens, tentará sempre desafiá-los, criticá-los e pô-los para baixo. Ela esperará negatividade da parte deles, e essa expectativa naturalmente criará dificuldades para o parceiro (VON FRANZ, 1988, p.163).
Para construção de uma psique saudável, a mulher deve ter a capacidade de integrar o animus, a parte masculina, à sua consciência. Mas para que isso ocorra, ao longo da vida diversas experiências devem ser vividas de maneira adequada, para que o animus seja positivo e as características masculinas não gerem sofrimento interno a paciente, gerando um bom futuro relacionamento com as imagos do sexo oposto, e logo, relacionamentos sociais funcionais (JUNG, 2011).
A SIMBOLOGIA EM ANIMUS
No oriente a simbologia de animus e anima pode ser constatada mais evidentemente nos conceitos Taoístas, vindos de onde hoje se localiza a China. Para o Taoísmo e sua cosmologia o conceito de Yin-Yang compõe o universo e todas as suas coisas, sendo forças de oposição que representam respectivamente a passividade, escuridão, o feminino versus a atividade, luz, o masculino (BIZERRIL, 2010).
Gonçalves (2018) destaca que essas constatações se dão pela observação da natureza pelos camponeses, sendo que o dia (luz, Yang) fica associado a atividade e a noite (escuridão, Yin) a passividade e ao descanso. Sendo a dualidade um conceito intrínseco à visão de ser humano e reconhecendo que dentro de cada ser existe o aspecto oposto, complementar, a similaridade com o conceito de animus e anima fica claro, mais uma vez, na busca pela enantiodromia.
A alternância yin-yang nomeia uma pulsação básica do cosmo – expansão/recolhimento, ascensão/declínio, dia/noite, movimento/serenidade – descrita no Daodejing. Posteriormente, foi elaborada uma descrição mais detalhada dessas alternâncias cíclicas na dinastia Han, por meio da combinação da cosmologia yin-yang, descrita por Laozi, ao sistema de correspondências entre as coordenadas do tempo, do espaço, da experiência sensível, e os aspectos do corpo humano, e as cinco energias ou modalidades do qi que forma o mundo, conforme descritas no Huangdi Neijing Suwen, o primeiro clássico da medicina tradicional chinesa, atribuído ao mítico Imperador Amarelo, Huangdi. (BIZERRIL, 2010, p.296)
Já no Xintoísmo japonês podemos encontrar a dualidade representada em seu mito de cosmogonia. Silva (2016) expõe o registro mais antigo xintoísta japonês, que é conhecido como Kojiki – em tradução pode ser lido como ‘Registro dos Assuntos Antigos’ – e nele constam as principais narrativas mitológicas nipônicas, incluindo a história das divindades criadoras, os irmãos Izanami e Izanagi. Eles seriam os responsáveis pela vida e pela criação do próprio Japão.
Na última geração, surgiram as entidades o “Macho que convida” e a “Fêmea que convida”, respectivamente Izanagi-no-Mikoto e Izanami-no-Mikoto. À estas duas entidades foi concebida a tarefa de “criar, consolidar e dar vida (…)” à terra que ainda estava cercada pelo oceano primordial, ainda sem forma. (SILVA, 2016, p.32)
Em diversas histórias são essas duas figuras divinas que se confluem para gerar os seres vivos. Comparativamente a outras culturas o equivalente dos pólos opostos sexuais se tratarem de seres primordiais de criação e que movem o universo de seu estado de inércia existencial não é incomum, na xintoísta não diferente, vemos a narrativa primordial da tentativa do nipônico tentando compreender essa simbologia. Vide esse autor que coloca Izanagi e Izanami em um paralelo com o cristianismo:
Há uma lenda que ainda é contada em uma região de Okinawa: há muito tempo, as pessoas da terra não sabiam como fazer filhos. Algumas dessas pessoas viram dois botos acasalando no mar. Elas imitaram a atividade dos botos e aprenderam a fazer filhos. É a história de Adão e Eva de Okinawa, uma história com muito mais apelo do que a que temos no Kojiki, a antiga narrativa dos mitos japoneses. Lá, lemos que Izanami e Izanagi estavam circundando um pilar. Eles observam um ao outro como se estivessem observando uma máquina. Um deles diz: “Aqui há uma protuberância, aí há uma depressão; vamos encaixar um no outro e ver o que acontece”. Eles acabam tendo filhos (…) (DE ABREU, 2017, p. 207)
Izanami a esquerda e Izanagi a direita tocando a lança no mar e criando o Japão – Fonte: encurtador.com.br/jJV15
Conclui-se então que, em se tratando especificamente da cultura oriental – pois esta foi usada de base filosófica e direcional por Jung na elaboração de sua maneira de enxergar o mundo – o masculino estar presente no feminino é um conceito que vem sendo passado no inconsciente coletivo a milênios. Os povos orientais tinham uma compreensão da psique simbolicamente falando, muito evoluída e isso se reflete em todas as suas práticas culturais, lendas e espiritualidade. Um não pode existir sem o outro e para o equilíbrio, a enantiodromia, a equivalência de yin-yang, deve existir luz na escuridão, e um pouco de masculino dentro do feminino.
REFERÊNCIAS
BIZERRIL, José. O caminho do retorno: envelhecer à maneira taoista. Horizontes Antropológicos, v. 16, n. 34, p. 287-313, 2010. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ha/a/YHHJ8YBsxTJxbhqLxhzWpZk/?lang=pt>
CHAGAS, Maria Inês Orsoni; CAMPOS, Terezinha Calil Padis. O complexo paterno na psique feminina e a sua influência nos relacionamentos heterossexuais numa perspectiva da Psicologia Analítica. 2000. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCBS/Cursos/Psicologia/boletins/1/artigos8.pdf>
DE ABREU, Lúcia Collischonn. Tawada Yôko Não Existe. Translatio, n. 14, p. 203-217, 2017. Disponível em:<https://www.seer.ufrgs.br/translatio/article/view/76739/45635>
GONÇALVES, Grazieli Aparecida; DE OLIVEIRA LOPES, Adriana Goreti. O matrimônio sagrado yin-yang. Self-Revista do Instituto Junguiano de São Paulo, v. 3, 2018. Disponível em:<https://self.ijusp.org.br/self/article/view/31>
JUNG, Emma. Animus e Anima. São Paulo: Cultrix. 2006
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Editora Vozes Limitada, 2011.
MENIN, Fernanda; LOUREIRO, Lilian; MORAES, Noely Montes. A maldição de Eva: a face feminina da violência contra a mulher. Psicologia Revista, v. 16, n. 1/2, p. 51-71, 2007. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/18057/13417>
SANFORD, John A. et al. Os parceiros invisíveis: O Masculino e Feminino em cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.
SILVA, Guilherme et al. Xintoísmo e produção de presença-a espiritualidade no mangá Mushishi. 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/179738>
VON FRANZ, Marie Louise. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix. 1988.