Temos que reagir, temos que nos indignar

Carlos Rivoredo, no Seminário Norte da Política Nacional de Humanização (PNH), ocorrido em Manaus, nos dias 20 e 21 de março, dá uma chamada a todos nós no momento da abertura do evento. Pede para nos indignarmos com os desvios de verba pública e diz que toda a rede de hospitais privados foi financiada pelo Fundo da Assistência Social da época da ditadura. Afeto marcado, emoção expressa e um contágio silencioso. As pessoas ficaram caladas, bateram palmas e passaram a outro assunto como se uma brisa apenas tivesse passado antes de alguém fechar a janela. Aquele homem num repente foi ele todo, humano, pois lembrava de fatos, por todos os seus sentidos, com um foco atento ao que falava, afetado, indignado com a fraqueza humana, com nossa passividade.

A chamada de Carlos Rivoredo é para usarmos nossa atenção e nossa memória ao que fazemos em busca de uma vida coletiva sem vistas grossas à corrupção, aos fascismos que se encontram na relação entre governo e população. A comunicação deve ser ampliada, gerando clínicas ampliadas. A comunicação deve gerar protagonismo, movimentar nossa atenção para pontos em comum, que, se mudados, se geridos de outras maneiras, a vida pode ficar mais fácil, mais produtiva, mais criativa, menos sofrida, menos queixosa.

É pela comunicação que fazemos nossas próprias revoluções, o humanizar inicia-se por ela, com ela e para ela. O que queremos comunicar quando falamos de um exercício político e ético? O que se quer comunicar quando se capilariza a humanização como política nacional? A PNH visa exercitar a atuação política em torno das redes de assistência, começando pela rede de saúde.

Exercitar a atuação política na e da rede de saúde significa transformar uma prática despolitizada numa politizada, ou seja, transformar uma prática reprodutora em prática criadora, descartável em cultivada, sem sentido em projetada, corrupta em gerida.

A PNH é uma política de saúde de educação, de cultura, de gestão, de trabalho, de questões e não de respostas. Questiona a pólis, na pólis, com a pólis, mas não para a pólis. Sua ação é capilar. As políticas de respostas prescrevem, a PNH processa, compõe, agencia. Busca agenciar os afetos e a formação integral das pessoas, o desenvolvimento do fazer do humano ligado a uma ética coletiva, que cultiva filhos, cultiva laços, cultiva nossas percepções, nossos talentos, nossas potencialidades, nosso tempo, nosso desenvolvimento, não em números de PIB, mas em territórios de existências solidárias, o que não é o mesmo que assistencialistas, e ético-praticantes, o que não é o mesmo que caretas.

E o Fundo de Assistência Social continua a financiar hospitais privados. Se comunicação é o que fundamenta a humanização, nosso silêncio é um analisador. Talvez por que ainda buscamos humanizar os outros, e não a nós mesmos. Processo de trabalho nenhum é condição suficiente para manter tantos desencontros nas práticas de cuidado e da formação ao estilo ainda, eminentemente, bancário. Os processos de trabalho são raízes podadas de um tronco que mais cedo ou mais tarde vai cair. Se as raízes não crescerem, a árvore vai cair; se não desenvolvermos nossos processos de trabalho, não desenvolveremos nossa humanidade. Não me refiro aqui ao trabalho assalariado, mas ao trabalho como constituinte da humanização. O trabalho que cria culturas, ao invés de descartáveis, junto à educação; que trabalha os sentidos, a língua, a fala, a escrita, a lógica, o corpo, o sexo, as percepções, a arte e o esporte. Desenvolver seres humanos, na concepção que sustenta esse texto, não significa direcionar o homem para um rumo evolutivo-progressivo…desenvolver não é direcionar; o homem não precisa de direção, ele traça direções. O desenvolvimento deve se dar na apropriação de nossa capacidade criativa, gestora da vida e das coisas. Sem isso, nossa coletividade vai ruir, nossa humanização será a insistência de uma rede que se constitui quase sempre com dificuldades.

A formação da rede de serviços públicos não pode se sustentar na diferenciação entre usuário, gestor e técnicos de serviços. Não importa essa diferenciação, quando a questão é a gestão do coletivo. Isso não quer dizer que as funções-trabalho necessariamente devem ser banidas, mas a forma de trabalhar deve mudar. Os processos de trabalho possuem sua cota de importância nas características de nossa sociabilidade. Portanto, aqueles devem visar essa última. Fazer os Conselhos de saúde funcionar com potência é função de todos, não por que todos devem estar presentes nos conselhos, mas sim pelo fato de ser função de todos contagiar nossas relações com o bem público com transparência, solidariedade e co-gestão.

Carla Bressan (2002) faz uma análise política em seu artigo intitulado “Fundo de Assistência Social” parte integrante dos Anais do Seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”. Seu trabalho retrata a maneira como os equipamentos do controle social funcionam aquém de sua real função que é estratégica na política pública da saúde, no SUS.

O Conselho é propositivo, avaliativo, deliberativo sobre os recursos, mas a execução não está na instância do Conselho. A gestão do Fundo não é do Conselho, mas do órgão público responsável pela assistência. No entanto, a proposta orçamentária deverá ser aprovada pelo Conselho e sua aplicação fica sob acompanhamento e controle do Conselho. Eis aqui um dos pontos centrais: o Conselho precisa discutir e analisar a proposta e o que se percebe é que, normalmente, a proposta orçamentária vem do gestor e muitas vezes, os conselheiros sequer têm elementos para discuti-la. Ou ainda a proposta vem com a referência explícita de que não seja discutida por falta de tempo porque “é perda de tempo discutir”, pois o recurso é muito pouco frente às necessidades. É muito comum acontecer isso, o gestor encaminhar para que o Conselho apenas aprove. O que quero chamar a atenção é que nossa função não está em meramente aprovar, pois existe uma responsabilidade nessa atitude – não é apenas uma formalidade eque muitas vezes, acabamos aprovando questões que nem sempre receberam o tratamento de debate e análise que demandariam. Isso não quer dizer que a proposta que vem do gestor seja ruim, mas a referência está na operacionalização do Plano e suas prioridades. Se a proposta é boa, não se tem que ter medo de que seja discutida.” (BRESSAN, 2012, p.16)

O sítio www.portaltransparência.gov.br/# apresenta as despesas e as receitas geradas nos Fundos Municipais de Saúde. Essas despesas e receitas precisam ser geridas pelos Conselhos. Os participantes do Conselho são os que diretamente podem ligar o orçamento municipal a um planejamento amplo. Como é planejado o uso desses recursos? Eu não sei.

Mas vejamos um exemplo de como a verba pública é administrada. O sítio da “Conexão Tocantins” mostra um projeto de lei que visa instituir auxílio-moradia para procuradores e promotores do Ministério Público Estadual. Os promotores e os procuradores recebem em torno de 25 mil reais como salário e pedem, das verbas públicas, mais 2 mil reais como auxílio-moradia. Para quê? Gostaria realmente de saber! O custo desse pequeno adicional (maior do que o salário bruto da maioria da população), por ano, para os 12 procuradores e para os 100 promotores, girará em torno de 2.900.000 reais (dois milhões e novecentos mil reais) A soma dos salários dessas 112 pessoas, juntamente com a soma do possível auxílio, resulta em cerca de 32 milhões de reais o que corresponde a um décimo dos recursos oriundos do governo federal para o município de Palmas que girou em torno de 290 milhões de reais. Isso quer dizer que 112 pessoas que trabalham para e no Estado recebem, como salário, um décimo do que o município recebe para criar políticas públicas para em torno de 220 mil pessoas, se pensarmos apenas no município de Palmas, sem contar as demais pessoas que, mesmo que parcamente, beneficiam-se com o retorno federal ao Estado do Tocantins. Não consigo compreender o exercício ético que sustenta uma realidade dessa. Vejamos a justificativa apresentada na reportagem do “Conexão Tocantins”:

“O projeto é apresentado após polêmica causada com a decisão dos deputados de também receberem auxílio-moradia, mesmo maioria deles tendo residência própria na capital. O valor que os parlamentares vão receber é de R$ 3.429,50.”

Ou seja, o argumento gira em torno de uma birra, como de crianças diante de um saco de pirulitos: o outro tem, quero ter também. Esse é o argumento apresentado na reportagem. Desconheço o real argumento, mas não creio ser diferente desse. A ética que sustenta uma realidade dessa é iníqua, não poupa vidas para se manter desigual assim. O bolsa-família gira em torno de, no máximo, 306 reais, por família. Analisemos bem, 306 reais por família, para todas as despesas, contra 2000 reais para deputados que já possuem casas e recursos para terem mais casas. Palmas possui em torno de 6500 famílias contempladas pelo programa bolsa família, ou seja, Palmas recebe em torno de 1 milhão e novecentos mil reais, por mês, para melhorar as condições de vida de mais ou menos 30 mil pessoas que moram em Palmas. Enquanto o salário de 112 pessoas contabilizam 32 milhões de reais por ano, o bolsa família atinge, com 24 milhões, 30 mil pessoas ao ano. Existe uma massa imensa de trabalhadores das universidades e dos serviços públicos, nós todos, eu inclusive, que sabem disso e se organizam apenas por sindicatos burocráticos e datas base que mais parecem um jogo histérico do qualquer outra coisa. Santa psicose, dai-nos forças contra as perversões, contra as fantasias e contra as depressões.

O ser humano é um manancial de vida e se deprime pelo fato de não saber onde deve atuar para injetar vida nessa pólis com marasmo, na qual sempre estamos em dívida. Devemos sempre…devemos dinheiro, devemos técnica, devemos conhecimento, devemos, devemos, devemos. Devemos fazer mais, devemos votar, devemos trabalhar, devemos deveres, devemos dever. Quando se deve, sempre se está num tempo que não o livre… a vida gira em torno da dívida. Quem deve, paga…quem paga trabalha à força.

Assim financiamos o Fundo da Assistência Social, mas não o gerimos. Estamos atarefados demais para conseguirmos pagar pelo o que fazemos. E quando fazemos nos sentimos, constantemente, em dívida. Trabalhamos mais e o ciclo se fecha assim, numa escrita sem fim.

Referência:

BRESSAN, Carla. Fundo de Assistência Social. In: Fundos Públicos e Políticas Sociais.MAGALHÃES JÚNIOR, José César; TEIXEIRA, Ana Claudia C. (Org.) Fundos Públicos. — São Paulo: Instituto, Pólis, 2004.. (Publicações Pólis, 45) Anais do Seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”; São Paulo, Agosto de 2002.