A história de mais uma Maria

Maria, Maria
É um dom, uma certa magia,
Uma força que nos alerta.
Uma mulher que merece
Viver e amar
Como outra qualquer
Do planeta.
Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que rí
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta.
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
(Maria, Maria)
Mistura a dor e a alegria
(…)
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida….

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Certamente pouquíssimas pessoas ouviram falar dessa mulher de nome comum, tão comum que quase caiu no esquecimento não fossem seus legados – concretos e simbólicos – como os escapes de uma vivência fervilhada de intensidades.

Legado é tudo aquilo deixado oficialmente (ou não) aos que sucedem quem o deixou. A Maria da qual tratarei neste texto deixou frases e pinturas que dizem de algo maior, ou dizem esse algo maior que foi sua vida.

Retirante nordestina, só de isso ser, ou assim ser rotulada, sofreu as primeiras durezas que alguém que sai de seu torrão natal (e bota torrão nisso!) em busca de melhores condições de vida sofre. Nessa empreitada, que vale quase tudo, alguns desfazem até de sua dignidade, o que não é o caso dessa Maria, adianto.


Maria do Socorro Santos retirou-se para o Rio de Janeiro muito nova, para ser doméstica. Teve uma filha de 4 anos atropelada e morta nas ruas da cidade maravilhosa. A Hora da Estrela (deClarice Lispector) serviria muito bem de roteiro pra dizer dessa vida que só durou quatro aninhos ou da vida dessa mãe que durou 52 anos. De qualquer forma, diria desse anonimato que a maioria de nós está fadada a viver… (nesses momentos me alegro com a possibilidade que a virtualidade nos dá de partilhar certas histórias).

E nisso de procurar jeito para vida ou se ajeitar do jeito que ela nos permite, Maria do Socorro Santos se ajeitou com a bebida como companheira fiel (porém não eterna) com quem dividia todos anseios, prazeres, medos, covardias, fraquezas, indignação e coragem. Mas há quem não veja (ou via) assim. Talvez ela pudesse ser uma vagabunda preguiçosa que não queria nada com a vida. De quê importa? Antes de tudo, a vida parecia não querer nada com ela… Ou quase nada. Preta, pobre, retirante, sem família e com pouco estudo. Parecia difícil, mas nunca esqueçamos que entre a impotência e a onipotência, há (e sempre haverá) a potência! Continuemos.

Maria foi internada 20 vezes em hospitais psiquiátricos e sofreu todos aqueles tratos (prefiro não colocar um prefixo numa palavra que, nesse caso, já designa como os tratos sucederam) que estamos carecas de saber e tentar combater com o nome de Luta Antimanicomial. Mas embora ela tenha passado por essas experiências, ou justamente por tê-las vivido, Maria do Socorro (mais conhecida como Socorro, mas preferi me referir aqui como Maria) aprendeu olhar a vida de outras formas. Em minha mera opinião, ela se descobriu e essa é, certamente, a maior fortuna que alguém pode ganhar na vida.

Maria começou o tratamento para suas crises psíquicas num Centro de Atenção Psicossocial. Acompanhou de perto o nascimento da proposta da Atenção Psicossocial e foi acolhida por esta proposta não mais do que ela à proposta acolheu. Só para constar, hoje o CAPS III da Rocinha, no Rio de Janeiro, recebe seu nome.

Em seu tratamento, Maria teve o primeiro encontro com aquilo que mudaria (e mudou) a sua vida: a pintura. Quando eu disse no início do texto sobre sua vivência fervilhada de intensidades, queria de fato chegar a esse ponto em que contaria do seu encontro com a pintura e de sua descoberta na vida, através da arte. Extrapolando o que comumente conceituamos como arteterapia, as palavras de Maria dizem melhor sobre esse encontro:

“Não devemos abrir mão daquilo que mais gostamos de fazer, seja o que for. Ao passar pelos sonhos mais difíceis, não devemos desistir de nada. Pois acredito muito no que cada um de nós escolheu para fazer e ter prazer, sem que nada nos impeça, não importa a idade. Não sei se posso chamar de terapia, mas uma coisa eu garanto: fazer um trabalho que a gente gosta é como se estivesse realizando cada minuto dos seus momentos mais felizes. Pois é assim que me sinto em cada uma das pinturas que faço.” (Maria do Socorro Santos)

Maria projetava-se em sua arte e, embora pintasse num quadro a sua dor, o ato de pintar lhe aprazia além da dor que estava pintando. É a coexistência dos afetos e as formas de lidar e con-viver com eles.

Nem tanto por sorte, mas sim por merecimento, Maria do Socorro Santos pôde ter, em vida, algum reconhecimento por aquilo que fez. Mas ela não só pintava. Quase me esquecia de dizer sobre como ela acolheu a proposta da Atenção Psicossocial (como disse acima). Maria promovia oficinas, palestras e conversas a respeito da inclusão social. O viés de sua militância foi o de dizer da riqueza que há em incluir o outro ao invés de excluí-lo. Maria dizia da riqueza que chega à uma pessoa quando esta está disposta a ver as coisas, como aconteceu com ela quando ela viu e sentiu o papel das cores em sua vida. Pintou sua vida da cor que quis, quando quis, porque quis…

Adotada pelo Instituto Franco Basaglia, Maria pôde desfrutar dos recursos afetivos e, por vezes, materiais para a sua militância. Acreditava que se pudesse despertar nas pessoas o sentimento de que elas também podiam se descobrir na vida, o sofrimento lacerante e cego que tanto rondava seus colegas usuários, podia ceder espaço à processos criativos vitalizantes. Maria teve algumas obras expostas, recebeu críticas e foi comparada à pintores renomados. Em vida empenhou-se à sua descoberta através da arte, ao seu prazer e à sua vocação. Aprimorou-se. Esforçou-se. Lutou. Por ela e pelos outros. Faleceu aos 52 anos, de enfarte. Mas disso tudo ficou um legado muito bonito e interessante. Hoje existe o projeto Maria do Socorro Santos, que a partir da venda de cópias das suas obras, angaria recursos para incentivar oficinas artísticas às pessoas portadoras de sofrimento psíquico, usuários de serviços de Saúde Mental. Além disso (ou inclusive), o projeto divulga a vida e obra dessa artista e lutadora que não só por ser Maria, e louca, nunca perdeu sua estranha mania de ter fé na vida.

Aos interessados no Projeto Maria do Socorro Santos, acessar:http://www.rubedo.psc.br/socorro.htm