O balão de Maria: um conto da Amazônia

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Nunca entendi direito porque Papai Noel passava sempre na casa dos vizinhos e nunca, na nossa. Minha mãe também não sabia nos explicar. Por isso, eu e minha irmã, na pureza de nossas inocências da infância, acreditávamos que o “Bom Velhinho” não nos visitava porque fazíamos estrepolias que eram merecedoras daquele castigo do esquecimento na Noite de Natal. Isso, para nós, justificava o fato de nunca havermos ganhado nenhum presente naquela noite tão mágica.

Então, resolvemos brincar do que eu denomino hoje de “jogo do merecimento”. Esforçamo-nos para sermos as crianças mais obedientes do mundo, naquele ano. Eu pescava com meu pai, carregava água, molhava o jirau de verduras, colhia a mandioca, ajudava a fazer a farinha e não desrespeitava ninguém. Maria, minha irmãzinha, ajudava a mamãe nas “lidas do dia-a-dia”. Varria a casa de chão batido, dava comida para as galinhas no quintal, fazia roupas para todas as suas bonecas de palha de milho e, ainda, estava aprendendo a cozinhar no fogão de barro.

Não era possível que tanto esforço e dedicação não fossem recompensados com a visita do Bom Velhinho. Dessa forma, quando chegou a Noite Natalina em Brasília Legal, cidadezinha ribeirinha do Pará, nossos coraçõezinhos se iluminaram de esperanças, assim como se acenderam os lampiões e lamparinas nas casinhas de nossa pequenina cidade, às margens do Rio Tapajós.

Recordo-me que fomos dormir mais cedo, cada qual na sua rede que, naquela noite, foram embaladas pelo sonho de que ganharíamos nosso primeiro presente do Papai Noel. Acho que acordamos juntos, pela manhã, e, imediatamente, olhamos para debaixo de nossas redes, ansiosos pela surpresa. Mas não havia nada lá. Pulamos para o chão e a esperança ainda nos fez vasculhar os dois cômodos da casa. Talvez Papai Noel tivesse deixado o presente em outro lugar.

Ainda sinto uma ponta de tristeza quando recordo que não havia presentes em lugar algum da casa, nem no quintal, nem no galinheiro, nem no jirau, nem no roçado, nem dentro da canoa, o último lugar onde procuramos. Quando voltávamos, da beira do rio para casa, tão quietos como as aves que emudecem com a calada da noite, encontramos com o Seu Zé Bechara, o dono do único comércio da cidade. E, surpreendentemente, ele nos entregou dois balões, um verde-mata e outro azul-celeste, dizendo-nos que era nosso presente de natal.

Então Papai Noel não nos esquecera. Acho que, na noite anterior, ele encontrara a porta de japá da nossa casa fechada. Como ficara impedido de entrar e deixar o presente  debaixo de nossas redes, pedira ao Seu Bechara para nos entregar Como estávamos felizes com essa constatação. Maria dançava em pequenos saltos na minha frente, feito tucumã quando cai da árvore, brincando com seu balão azul-celeste. Estava tão contente correndo, saltando e dançando que, sem querer, soltou a linha e o balão subiu para o céu. Ainda corri para tentar pegá-lo, mas ele voou como se tivesse asas de gavião.

Ficamos parados observando-o voar para as nuvens até se confundir com o azul do céu. Maria chorou e suas lágrimas fizeram com que meu coração ficasse igual ninho de passarinho, todo emaranhado, mas querendo proteger minha irmã daquela tristeza, Decidi dar meu balão verde de presente a ela. Os dois brincaram até o balão ir murchando e morrer espetado por um espinho da laranjeira do quintal.

Depois dessa história, nas nossas conversas, antes de dormir, para espantar o medo da Matinta-Pereira, sempre nos perguntávamos para onde teria voado o balão azul-celeste. Minha irmã sempre dizia que um dia iria reencontrá-lo, mas, dessa vez, seguraria firme na linha para que nunca mais se separassem. Algum tempo depois, minha irmã faleceu. Nunca esqueci Maria nem do seu sonho de reencontrar seu balão cor do céu.

Outro dia, vendo uma foto, surpreendentemente, tantos anos depois, reencontrei o balão de Maria. Ele cresceu e vive na Capadócia transportando pessoas e realizando sonhos, assim como fez naquele longínquo e inesquecível natal de nossas infâncias. Meu coração está calmo como os igapós da Amazônia em noite lua cheia. Afinal, tudo está esclarecido agora. O balão azul-celeste voou primeiro para o céu para esperar por Maria. E minha irmãzinha está, finalmente, brincando com ele. Só que dessa vez, Maria segura bem firme na linha, para que o balão azul-celeste nunca mais voe sozinho.

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João e Maria: aspectos simbólicos do inconsciente

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João e Maria é um conto de fadas que foi coletado da tradição oral e transcrito pelos irmãos Grimm. E é um conto bastante popular, principalmente entre as crianças.

Todos nós carregamos uma imagem interna do que é a mãe, e nós nos confrontamos com essa imagem a todo o momento em nossas vidas. E essa imagem carrega em si o lado bom, protetor, afetuoso, que nos enche de carinho e prazer e o outro lado sombrio que é o da fome, do sofrimento e até da morte.

E esse lado sombrio é retratado nos contos de fadas, como uma madrasta, uma bruxa, uma feiticeira. Mas a verdade é que podemos encontrar os dois lados juntos em uma mesma pessoa. E o conto João e Maria trata do processo de encarar o lado terrível da mãe.

Aqui nesse ponto acredito que seja importante contextualizar o que ocorria com as crianças na época em que o conto foi escrito.

CORSO & CORSO (2006) nos contextualiza e mostra o clima da época:

Era um tempo em que os pais, só depois de encher bem a barriga, lembram que as crianças poderiam ficar com as sobras. O duro é que era bem assim. A criança como alguém que possui um valor mais alto que o adulto, alguém a quem se deve cuidar e preservar, é uma conquista da modernidade. Para nós é tão natural abrirmos mão do pouco para que não falte às crianças, quanto, para a sociedade tradicional européia, era deixá-las com as sobras.

Hoje nossos valores mudaram, mas como a estória sobrevive podemos supor que esse elemento da fome hoje está a serviço de um aspecto psicológico, senão haveria sido suprimido do conto.
Prosseguindo na análise psicológica, sabemos que enquanto bebês nossas mães nos alimenta e nos carrega no colo, mas quando crescemos deixamos de ser ninados e temos que passar a ser independentes. E isso traz uma sensação de abandono, que faz com que olhemos para nossas mães como bruxas.

Infelizmente aquela mãe protetora, que coloca no colo deve desaparecer para que a criança encontre seu próprio valor e se desenvolva como personalidade própria no mundo, senão ela será um brinquedinho e uma extensão da mãe.

O fato da família no conto passar fome significa que a mãe não pode mais dar o alimento, que é o colinho. Chega um momento em que o desmame é necessário. A comida é apenas um símbolo de que o indivíduo sente fome de novas vivencias. João e Maria estão crescendo e precisam ter novas experiências e contato com o mundo. Isso pode ocorrer com a ida à escola, onde a criança pode se sentir abandonada pela mãe e a vê-la como fria e cruel.

O pai resiste a princípio, mas se deixa influenciar pela madrasta. Essa é uma visão que a criança pode ter em relação ao pai: de que ele é fraco e sucumbe aos pedidos da mãe.

Outro ponto importante a ser analisado é o fato de termos um casal de crianças como protagonista. Maria é a típica menininha que chora e João é aquele que tenta resolver os problemas. Na verdade, sem entrar no mérito da questão dos gêneros, esses dois lados estão presentes em nós. Independente do nosso sexo, por vezes, em uma situação difícil, podemos sentir vontade de chorar, mas ao mesmo tempo podemos sentir algo pulsando em nós querendo resolver a situação.

A floresta, em geral, é um símbolo do inconsciente, aqui no conto podemos afirmar que quando a criança vai para o mundo automaticamente ela passa a separar o que é mundo interno e externo. A consciência separa os opostos, antes ela vivia em um estado de plenitude, mas agora além de enfrentar as demandas do mundo externo e do seu mundo interno inconsciente.

Crescer e ter de sair de casa tem um simbolismo para a psique de morte. A criança se sente condenada à morte. E realmente todo crescimento psíquico, toda mudança de vida exige uma morte simbólica. Aqui João e Maria devem deixar morrer seu lado bebê e sua ligação simbiótica com a mãe.

Após caminharem muito e já exaustos e com fome, eles encontram a casa de doces e a bruxa. A bruxa se mostra bondosa e generosa, mas sua intenção é devorar as crianças. Agora que a criança não está mais sob os braços da mãe, ela terá de lidar com a figura interna da mãe terrível, uma figura arquetípica presente no inconsciente coletivo. Ela é cega, portanto ela não quer ver que as crianças estão crescendo, ela quer “come-los”, devorá-los simbolicamente, para que voltem ao seu ventre e não cresçam. É um aspecto regressivo nosso que anseia voltar para a barriga da mamãe.

Essa separação mãe-filho nunca é fácil para ambas as partes. A criança sofre porque perdeu seu paraíso, mas vemos também nessa fase onde ocorre o desmame, ou quando o filho começa ir à escola, que muitas mães sentem culpa, fazem dramas e tentam sofregamente trazer de volta aquele paraíso idílico entre os dois.

Mas voltando a bruxa, observem que ela alimenta o menino e a menina lhe serve como escrava, limpando, cozinhando e lavando. Ou seja, seu animus deve continuar fraco e infantil, entretanto ao passo que ela deseja destruí-lo ela acaba fortalecendo mais seu lado masculino. Ao lhe dar mais comida ele adquire mais força.

Na verdade ela quer comer os dois, uma vez que manter o filho em um estado de bebê não é privilégio da relação da mãe com o filho.

Mas é a menina que engana a bruxa e a faz cair dentro do forno. Ou seja, a menina que vivia chorando agora adquiriu objetividade e astucia. A ingenuidade foi embora o lado infantil que se apavora agora confia em seus instintos (isso fica claro quando Maria adquire uma sensatez em relação ao cisne, seu lado animal, fazendo com que ele leve um de cada vez ao outro lado da margem do lago).

As crianças finalmente voltam para casa, agora trazendo as riquezas encontradas em seu inconsciente e compreendendo que foi necessário cortar o cordão umbilical para que pudessem amadurecer.

Referências:

BONAVENTURE, J. O que conta o conto?. São Paulo. Edições Paulinas: 1992.

CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

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A história de mais uma Maria

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Maria, Maria
É um dom, uma certa magia,
Uma força que nos alerta.
Uma mulher que merece
Viver e amar
Como outra qualquer
Do planeta.
Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que rí
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta.
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
(Maria, Maria)
Mistura a dor e a alegria
(…)
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida….

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Certamente pouquíssimas pessoas ouviram falar dessa mulher de nome comum, tão comum que quase caiu no esquecimento não fossem seus legados – concretos e simbólicos – como os escapes de uma vivência fervilhada de intensidades.

Legado é tudo aquilo deixado oficialmente (ou não) aos que sucedem quem o deixou. A Maria da qual tratarei neste texto deixou frases e pinturas que dizem de algo maior, ou dizem esse algo maior que foi sua vida.

Retirante nordestina, só de isso ser, ou assim ser rotulada, sofreu as primeiras durezas que alguém que sai de seu torrão natal (e bota torrão nisso!) em busca de melhores condições de vida sofre. Nessa empreitada, que vale quase tudo, alguns desfazem até de sua dignidade, o que não é o caso dessa Maria, adianto.


Maria do Socorro Santos retirou-se para o Rio de Janeiro muito nova, para ser doméstica. Teve uma filha de 4 anos atropelada e morta nas ruas da cidade maravilhosa. A Hora da Estrela (deClarice Lispector) serviria muito bem de roteiro pra dizer dessa vida que só durou quatro aninhos ou da vida dessa mãe que durou 52 anos. De qualquer forma, diria desse anonimato que a maioria de nós está fadada a viver… (nesses momentos me alegro com a possibilidade que a virtualidade nos dá de partilhar certas histórias).

E nisso de procurar jeito para vida ou se ajeitar do jeito que ela nos permite, Maria do Socorro Santos se ajeitou com a bebida como companheira fiel (porém não eterna) com quem dividia todos anseios, prazeres, medos, covardias, fraquezas, indignação e coragem. Mas há quem não veja (ou via) assim. Talvez ela pudesse ser uma vagabunda preguiçosa que não queria nada com a vida. De quê importa? Antes de tudo, a vida parecia não querer nada com ela… Ou quase nada. Preta, pobre, retirante, sem família e com pouco estudo. Parecia difícil, mas nunca esqueçamos que entre a impotência e a onipotência, há (e sempre haverá) a potência! Continuemos.

Maria foi internada 20 vezes em hospitais psiquiátricos e sofreu todos aqueles tratos (prefiro não colocar um prefixo numa palavra que, nesse caso, já designa como os tratos sucederam) que estamos carecas de saber e tentar combater com o nome de Luta Antimanicomial. Mas embora ela tenha passado por essas experiências, ou justamente por tê-las vivido, Maria do Socorro (mais conhecida como Socorro, mas preferi me referir aqui como Maria) aprendeu olhar a vida de outras formas. Em minha mera opinião, ela se descobriu e essa é, certamente, a maior fortuna que alguém pode ganhar na vida.

Maria começou o tratamento para suas crises psíquicas num Centro de Atenção Psicossocial. Acompanhou de perto o nascimento da proposta da Atenção Psicossocial e foi acolhida por esta proposta não mais do que ela à proposta acolheu. Só para constar, hoje o CAPS III da Rocinha, no Rio de Janeiro, recebe seu nome.

Em seu tratamento, Maria teve o primeiro encontro com aquilo que mudaria (e mudou) a sua vida: a pintura. Quando eu disse no início do texto sobre sua vivência fervilhada de intensidades, queria de fato chegar a esse ponto em que contaria do seu encontro com a pintura e de sua descoberta na vida, através da arte. Extrapolando o que comumente conceituamos como arteterapia, as palavras de Maria dizem melhor sobre esse encontro:

“Não devemos abrir mão daquilo que mais gostamos de fazer, seja o que for. Ao passar pelos sonhos mais difíceis, não devemos desistir de nada. Pois acredito muito no que cada um de nós escolheu para fazer e ter prazer, sem que nada nos impeça, não importa a idade. Não sei se posso chamar de terapia, mas uma coisa eu garanto: fazer um trabalho que a gente gosta é como se estivesse realizando cada minuto dos seus momentos mais felizes. Pois é assim que me sinto em cada uma das pinturas que faço.” (Maria do Socorro Santos)

Maria projetava-se em sua arte e, embora pintasse num quadro a sua dor, o ato de pintar lhe aprazia além da dor que estava pintando. É a coexistência dos afetos e as formas de lidar e con-viver com eles.

Nem tanto por sorte, mas sim por merecimento, Maria do Socorro Santos pôde ter, em vida, algum reconhecimento por aquilo que fez. Mas ela não só pintava. Quase me esquecia de dizer sobre como ela acolheu a proposta da Atenção Psicossocial (como disse acima). Maria promovia oficinas, palestras e conversas a respeito da inclusão social. O viés de sua militância foi o de dizer da riqueza que há em incluir o outro ao invés de excluí-lo. Maria dizia da riqueza que chega à uma pessoa quando esta está disposta a ver as coisas, como aconteceu com ela quando ela viu e sentiu o papel das cores em sua vida. Pintou sua vida da cor que quis, quando quis, porque quis…

Adotada pelo Instituto Franco Basaglia, Maria pôde desfrutar dos recursos afetivos e, por vezes, materiais para a sua militância. Acreditava que se pudesse despertar nas pessoas o sentimento de que elas também podiam se descobrir na vida, o sofrimento lacerante e cego que tanto rondava seus colegas usuários, podia ceder espaço à processos criativos vitalizantes. Maria teve algumas obras expostas, recebeu críticas e foi comparada à pintores renomados. Em vida empenhou-se à sua descoberta através da arte, ao seu prazer e à sua vocação. Aprimorou-se. Esforçou-se. Lutou. Por ela e pelos outros. Faleceu aos 52 anos, de enfarte. Mas disso tudo ficou um legado muito bonito e interessante. Hoje existe o projeto Maria do Socorro Santos, que a partir da venda de cópias das suas obras, angaria recursos para incentivar oficinas artísticas às pessoas portadoras de sofrimento psíquico, usuários de serviços de Saúde Mental. Além disso (ou inclusive), o projeto divulga a vida e obra dessa artista e lutadora que não só por ser Maria, e louca, nunca perdeu sua estranha mania de ter fé na vida.

Aos interessados no Projeto Maria do Socorro Santos, acessar:http://www.rubedo.psc.br/socorro.htm

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