“Trabalho, obra e ação” como “tríade” representativa do ser humano em Hannah Arendt

Foto: Lewis Hine

A partir da Revolução Industrial, um dos mais fascinantes e intrigantes temas levantados pela Filosofia, Sociologia e, mais recentemente, pelas Ciências Políticas, é a eterna busca pelo real significado do trabalho na vida cotidiana dos homens e mulheres. Achincalhado por uns, mas fortemente defendido por outros, o trabalho é fonte inesgotável de interesse.

Na Sociologia, Karl Marx e Max Weber deixaram contribuições que ainda hoje influenciam as gerações. O Capital, de Marx, por exemplo, está entre as principais obras do século XX. Não se pode, no entanto, passar incólume aos pontos de vista de uma pensadora judia-alemã que lançou novas luzes sobre o tema: Hannah Arendt.

No texto “Trabalho, Obra e Ação” Arendt pontua observações que até então não haviam sido levantadas, como o fato de ser impossível atingir a “vida contemplativa” sem, ao menos, existir um lastro cimentado pela “vida ativa”.

A alemã alerta para o fato de que qualquer definição de vida ativa, passa pelo prisma do ideal de vida contemplativa deixado pelos gregos. De certa forma, haveria no imaginário (tanto de parte dos pensadores como da religião, sobretudo da Igreja Católica Romana) a ideia de que o trabalho subverte a condição humana, enquanto que a contemplação é o objetivo a ser atingido.

A filósofa radicada nos Estados Unidos (que não gostava de ser definida como filósofa) tenta, então, desconstruir tais premissas ao dividir o “viver” humano numa tríade de trabalho, obra e ação, tríade essa que estaria imbricada na própria constituição representativa do que é “ser humano”.

Especificamente sobre a dicotomia entre a vida ativa e a vida contemplativa, Arendt induz para um olhar menos conflituoso, já que ao mesmo tempo em que constata ser na vida ativa a condição em que a maioria das pessoas está engajada, também conclui que “ninguém pode permanecer em estado contemplativo durante toda sua vida”. Ou seja, a ação, em qualquer caso, precederia a contemplação. “Pois é próprio da condição humana que a contemplação permaneça dependente de todos os tipos de atividade”.

Ao tocar nesse ponto, Arendt chama a atenção para o fato de que faz parte da nossa constituição biológica criar as condições para que o corpo permaneça estável. E esse “eterno” movimento em busca da estabilidade já demanda, em si, trabalho. A filósofa, no entanto, parece não se preocupar muito com nuances que outros pensadores levantaram, como a “mais valia”, o “lucro” e a “diferença de classes” decorrentes dessa potencialidade de trabalho que representa o próprio homem. Isso não quer dizer que neste texto ela tenha negligenciado as relações de dominação, pelo contrário. Ao citar a imposição de trabalho forçado a terceiros, por uma classe dominante, Arendt deixa claro que reconhece tais distorções. Mas a análise desse fato, em contraposição a Marx, se dá pelo viés da busca pela fuga do trabalho (daí se impingir aos outros o que, para alguns, é uma tortura: o próprio ato de trabalhar). No entanto, a princípio, conceitos como a elevação/manutenção de status social, como próprio ato de viver a partir do acúmulo de bens, não entra no raio crítico da autora.

Voltando à “tríade”, é necessário fazer uma rápida diferenciação entre seus componentes. A começar pelo “trabalho”, Arendt o define como atividade repetitiva, laboriosa (por vezes com uma conotação penosa) e que serve para, de seu fruto, manter as condições adequadas do corpo. A “obra” é a própria produção e representação dos bens duráveis, e que o homem tenta “cristalizar” para, implícita ou explicitamente “construir” um mundo que, aparentemente, se mostre de forma mais fixa, durável. Mas aqui a alemã pontua que nem todos os bens são duráveis, e faz uma comparação do ciclo de identificação (das demandas de consumo), produção, consumo e/ou descarte de tais “obras” com a própria dinâmica da natureza. Há também nessa dinâmica, uma semelhança enorme com o ciclo de existência humana. Por fim, a “ação”, ápice da tríade, representa a própria forma como as pessoas se inserem no mundo. É uma definição direta do papel político do homem, que não apenas trabalha e produz, mas que deliberadamente (porque esta condição lhe é peculiar) interage com o mundo para que as demandas dessa interação sirvam de referência para a sua própria representação de “ser”. Voltemos a falar mais à frente sobre a “ação”.

Retomando as assertivas de Arendt sobre o trabalho, a pensadora diz que o Cristianismo valoriza a contemplação em detrimento do trabalho, uma vez que o “deleite” prometido no pós-morte lembra a “superioridade” do estilo de vida apregoada pelos filósofos gregos clássicos, que recusavam o “labor” e até consideravam-no um modo de ser “degradante”. Desta forma, Arendt usa como referenciais não os filósofos socráticos, ou neoplatônicos, lembrados por seus pontos de vista pró-contemplação, mas os pré-socráticos e atomistas. Há, nesta escolha, uma clara demonstração de que a alemã entende o trabalho e o mundo, de um lado, e a vida contemplativa, de outro, não como objetos antagônicos, mas entrecruzados numa espécie de “oposição complementar”.

Provavelmente ao situar o Cristianismo nestas fronteiras, Arendt está se referindo ao Catolicismo, pois o Protestantismo (sobretudo o Calvinismo) já havia sido intimamente ligado ao Capitalismo (A Ética Protestante e o “espírito” do Capitalismo), em Max Weber, e o trabalho saiu dos patamares inferiores para tornar-se a égide da ligação/intimidade com os aspectos do sagrado. Ou seja, sob este ponto de vista de Weber, o trabalho e seu fruto não apenas passaram a ter representação enobrecedora para parte da humanidade, como se configurou como um fim em si.

Apesar de enquadrar o Cristianismo (Católico Romano) na esfera do ideal de contemplação, Arendt não deixa de relacioná-lo (o Cristianismo) à “ação”. Isso porque a filósofa lembra que o Mandamento de “Amar ao próximo” requer um movimento por parte do agente em direção ao interlocutor, típico de uma “ação” socialmente inclusiva (e construtiva), marca das “teias” de relacionamentos próprias do homem.

Por fim, Arendt diferencia “trabalho e obra” dos aspectos da “ação”. Isso porque, para a pensadora, se os homens forem definidos apenas como “criaturas vivas” (e aqui Arendt deixa transparecer sua influência habraâmica – “criador e criatura”), o trabalho nada mais é do que a reprodução dos padrões cíclicos da natureza, sendo que o constante “labutar” e descansar podem ser perfeitamente comparados ao próprio movimento do dia e da noite, eternamente intercalados. No entanto, a “ação” é o campo libertador do ser, pois é através dela que a alteridade se manifesta e, pelas palavras, o homem se insere no grande grupo de sua própria espécie, em sentido de unicidade. E diferente do “trabalho”, que se dá como condição indispensável para a sobrevivência do corpo, a “ação” não é imposta pela necessidade mas, antes disso, é incondicionada.

Ou seja, para Arendt a “ação” surge desde o nascimento do homem/mulher e se perpetua cada vez que esse “ser” inicia novos processos criativos. Uma visão “libertadora” que retira os homens/mulheres dos extremos da negação do trabalho, por um lado, ou da entrega total a ele, por outro.

Referência:

ARENDT, Hannah. Trabalho, Obra e Ação – Tradução de Adriano Correia – Revisão de Theresa Calvet de Magalhães. Texto disponibilizado em <http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp7/arendt.pdf> ; visualizado em 08/05/2013.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.