Tudo é Vaidade

Era uma vez um Deus e seu Anjo. Um dia o Anjo também quis ser Deus. Eis o início da vaidade.

Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade. […] Vi tudo o que se faz debaixo do sol, e achei que tudo era vaidade e aflição de espírito. Os perversos dificultosamente se corrigem, e o número dos insensatos é infinito.
(Bíblia Sagrada – Antigo Testamento. Livro do Eclesiastes)

 


Figura: Charles Allan Gilbert, All Is Vanity (1892)

 

Segundo o dicionário Houaiss, a palavra ‘vaidade’ pode ser compreendida como “a qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória; a valorização que se atribui à própria aparência, ou quaisquer outras qualidades físicas ou intelectuais, fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros”. No entanto, a análise conceitual de uma palavra vai além de um conjunto de significados que atribuímos a ela. Para Wittgenstein (1958), o princípio do uso é a base para o entendimento do significado de uma expressão, ou seja, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”. Isso dá ao conceito uma amplitude maior no que tange à sua análise, pois já não há um campo seguro de verdades finitas ou constantes.

Historicamente, a vaidade pode ser relacionada a uma categoria de pecado da qual ninguém está imune, ou seja, aquele pecado que permite ao indivíduo, por vezes ordinário, sentir e querer mostrar-se aos outros como alguém extraordinário. Há quem defende tal pecado como uma necessidade básica, pois a criação de personas em torno de sua “real” figura torna-se relevante para a definição e criação das mais infinitas obras e perfis, que vão desde a ascensão de impérios e estados até a imortalização de uma imagem (quando aquilo que a vaidade construiu se torna maior do que aquilo que a pessoa de fato é).

Em Os Irmãos Karamázov, vimos um dos personagens apresentar um questionamento que traz à tona a complexidade do conceito de liberdade, mesmo diante de um contexto que parece primar pelo pecado da vaidade, ou seja, pela possibilidade de recriar um “eu” segundo a sua imagem e semelhança.

“’Diante de quem se inclinar? Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar…” (Os irmãos Karamazov, Dostoiévski)

Parece que as palavras do Grande Inquisidor de Dostoiévski formam uma contradição à vontade de poder apresentada por Nietzsche em sua obra “Assim falou Zaratustra”, na qual ele diz que “onde encontrei vida, ali encontrei vontade de poder, e até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor”. Mas, para uma contradição vir à tona tem-se que ter um grau maior de entendimento da semântica dos enunciados. Assim, quando as frases ganham (talvez por vaidade) uma complexidade semântica, situá-las em polos extremos para entender conceitos como contradição torna-se, por vezes, uma tarefa não apenas incongruente, mas também sem sentido.  De certa forma, há a necessidade de ser senhor e, para tanto, a vaidade exerce um papel decisivo, mas, em contrapartida, há um desejo primitivo em ser guiado.

 

Foto: Hitler – Hulton Archive / Getty Images

 

A vaidade de Hitler, por exemplo, ajudou a criar a figura histórica responsável pelas maiores atrocidades do século XX. Sua vaidade foi estabelecida diante da fraqueza de um país em decadência econômica e publicamente humilhado depois da Primeira Grande Guerra. Assim, temos o início de uma espécie de vaidade gerada no indivíduo, mas defendida por toda uma população, sustentada por uma espécie de “loucura coletiva”. Essa passagem atribulada da história foi contada de forma crua (e polêmica) no livro do professor de Harvard Daniel Jonah intitulado “Os carrascos voluntários de Hitler”. Nele, o autor apresenta a corresponsabilidade do povo alemão nas ações que definiram o genocídio dos judeus. E, com isso, as palavras sombrias do Grande Inquisidor de Dostoiévski ecoam pelos séculos cada vez mais atuais:

Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis’. 

Marylin Monroe por Richard Avedon (1957)

“Nunca enganei ninguém, só deixei que as pessoas enganassem a si mesmas. Ninguém se preocupou em tentar descobrir quem eu era de verdade. Inventaram uma personagem para mim. Nunca desmenti”. Marilyn Monroe

 

Essas fotos da atriz americana Marylin Monroe feitas pelo fotógrafo Richard Avedon sintetizam a ideia da vaidade que reside em cada um de nós, mas especialmente apresentam o momento em que ela nos deixa a sós. Acostumar-se a vaidade não significa viver o tempo todo com ela. Parece que até a vaidade, o pecado que veio acompanhado pelo quantificador universal (todo) na Bíblia, às vezes afasta-se do seu hospedeiro. Avedon contou uma vez como aconteceu o momento decisivo para capturar uma imagem da Marylin sem a vaidade dos seus personagens. Ele disse que, depois de um tempo fazendo poses sensuais e luminosas, ela sentou-se em uma cadeira no canto do estúdio e pareceu se encolher, como uma criança assustada. Nesse instante, ele produziu a última foto do ensaio e, para o fotógrafo Vik Muniz, “o quadro final resultante está entre os retratos mais famosos de todos os tempos”. Roland Barthes, ao elogiar Avedon por captar esse momento, disse que essa foto “é a evidência de que, dentro da imagem, há sempre algo mais”. Talvez nem tudo seja vaidade.

 

Foto de Robert Doisneau, 1963

O orgulho é a consciência (certa ou errada) do nosso próprio mérito, a vaidade, a consciência (certa ou errada) da evidência do nosso próprio mérito para os outros. Um homem pode ser orgulhoso sem ser vaidoso, pode ser ambas as coisas, vaidoso e orgulhoso, pode ser — pois tal é a natureza humana — vaidoso sem ser orgulhoso.

Fernando Pessoa, in “Da Literatura Européia”

 

A última possibilidade apresentada por Pessoa (“ser vaidoso sem ser orgulhoso”), considerando sua definição de orgulho e vaidade, reflete a complexidade da natureza humana, que mesmo sem a consciência, de fato, dos seus méritos e virtudes, constrói um conjunto de disfarces para que possa ser exaltada, copiada e seguida. Na continuação desse texto, Pessoa diz que “o homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é”. Com essa última frase, ele apresenta um novo vislumbre dessa pessoa  vaidosa e sem orgulho, ou seja, esse indivíduo não é alguém que ignora seus méritos, mas apenas não os acha bons o suficiente para o tornar alvo de admiração dos outros, daí criam-se as máscaras.

 

Foto: Elizabeth Taylor em cena no filme ‘Ash Wednesday’ em 1973

 

Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

(Poesias de Álvaro de Campos, Tabacaria, Fernando Pessoa)

 

No livro “Os nus e os mortos” (publicado originalmente em 1948), Norman Mailer, ao apresentar sua visão dos campos de batalha na Segunda Guerra (a partir de sua vivência nas trincheiras), traz nas falas de seus personagens uma reflexão sobre a identidade humana: “Há aquele equívoco popular de considerar que o homem é uma coisa situada entre a besta e o anjo. Na realidade, o homem está em trânsito entre a besta e Deus”. E, novamente, tem-se o retorno ao início da vaidade, ao desejo da criatura em tornar-se o criador, mas com grande possibilidade de tornar-se o seu contrário, ao menos no que tange a representação dessas duas figuras no imaginário coletivo.

 

Charlie Chaplin por Richard Avedon (1952)

 

“Não é a religião, isso é óbvio, não é o amor, não é a espiritualidade. Todas essas coisas são engodos, propinas que inventamos para nós mesmos quando as limitações de nossa existência nos desviam do outro sonho: o de nos igualarmos a Deus. Quando entramos esperneando no mundo, somos Deus, o universo é o limite de nossos sentidos. E quando nos tornamos mais velhos, quando descobrimos que não somos o universo, sofremos o mais profundo trauma de nossa existência.”

(Os nus e os mortos, Norman Mailer)

 

A vaidade em seu aspecto mais conceitual é representada pelo vazio, pela inconsistência. No entanto, não há leveza nesse vazio, há uma luta constante em manter uma representação, em partir para o embate (seja com Deus ou com sua própria natureza), em refutar aquilo que É em nome daquilo que gostaria DE SER. Por que insistir em representar uma figura para os outros? Talvez porque Sartre tenha razão: “o inferno são os outros”. A vaidade existe porque há o outro. O anjo só se rebelou porque havia um Deus. Embora tenha iniciado esse texto buscando (internamente e, talvez, vaidosamente) refutar o axioma inicial (“Tudo é vaidade”), termino-o derrotada, isso porque há o outro.  Assim, se a existência do outro é condição suficiente e necessária para a concepção e base da vaidade, então que aprendamos a lidar com o pecado e, principalmente, a sobrevivermos a ele.

Referências:

A BÍBLIA SAGRADA, Velho Testamento, Eclesiastes.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2008. 2  volumes.

GOLDHAGEN, Daniel J. Os Carrascos Voluntários de Hitler: o povo alemão e o holocausto. Tradução de Luís Sérgio Roizman. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.

MAILER, Norman. Os nus e os mortos. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1976.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Silva. 9ª. Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos (Tabacaria). Disponível em:
http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.php

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Tradução Alcione Araújo e Pedro Hussak. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.