Uma mulher e suas frestas à feminilidade no contemporâneo: maternidade e outras estações do desejo

Carolline Rangel – carollinerangel@me.com

As formas de experimentar o mundo na atualidade para cada ser falante incluem novidades contemporâneas, também, para os caminhos das mulheres. As mudanças na cultura e na sociedade produzem incidências na experiência de um tempo, afetando os corpos e o modo como se vivencia uma época.

Há algumas décadas apenas, a trajetória ao longo da vida de uma mulher era valorada a partir do imperativo de um casamento e da maternidade no início da fase adulta, que desenhava seus anos futuros. Com raras exceções, a essa mulher eram reservadas as atividades domésticas, o cuidado com a casa, com o marido e os filhos.

“Ser uma mulher” frente ao Outro social englobava uma via principal para que esta pudesse ter seu lugar ao sol frente à família, aos pares e à sociedade: uma parceria amorosa, via casamento, e os filhos como resultado deste. A condição feminina de existência era ligada, então, a esse encontro amoroso e ao papel de cuidado, colado à sua identidade, e expressada pela via principal do “ser mãe”.

Alguns fatores contribuíram para um cenário novo para o campo feminino, dentre eles, pode-se citar a invenção da pílula anticoncepcional (início dos 1960), e o aumento do acesso ao mercado de trabalho por parte das mulheres (1970), e a possibilidade do divórcio como direito constitucional (na Constituição de 1988). Todo esse cenário, em efervescência a partir da metade do século anterior, construiu um território novo, produzindo uma fenda em uma lógica homogeneizante e alienante que ditava para os corpos femininos o que seria uma mulher. As possibilidades começavam a se abrir.

Fonte: Imagem de arquivo pessoal

O que quer uma mulher?

No campo da psicanálise, Freud se dedicou aos estudos em relação a sexualidade feminina. Uma questão, porém, permaneceu em aberto. Esta tocava o “continente negro” da sexualidade feminina, campo que o pai da Psicanálise se interessou ao longo de sua pesquisa e vida. Freud, embora tenha feito grandes contribuições ao tema, encontrou limites para os avanços em relação às questões da sexualidade feminina. Embora o desejo feminino, para Freud, tenha ficado em aberto, a feminilidade aparece ao longo de seus estudos se situando como uma pergunta.

A menina, para Freud, seria marcada em seu inconsciente de forma muito particular: experimentaria algo como o que chamou de Penisneid, ou a inveja do pênis. A partir dessa marca, a partir desse “não ter”, ou seja, dessa ausência, Freud compreende que as mulheres precisariam de alguma saída frente a essa lógica ter x não ter, sendo uma delas saídas, precisamente algo que produziria essa “miragem” fálica à mulher: a maternidade. Em muitos pontos dos textos freudianos, há um embaraço acerca do gozo e a sexualidade feminina, que Freud nomeia como “continente negro”.

Assim, a saída feminina primeira para a falta fálica seria a maternidade. As consequências dessa equação seriam, portanto, uma equação simbólica entre falo e bebê. Tratava-se de uma saída com diversas questões e impasses, e que ainda hoje, pode ser interrogada e atualizada. Desde muito cedo, assim, a maternidade parecia ocupar um lugar precioso e central na vida feminina, como essa possível saída ou resposta à falta fálica. Esses avanços freudianos que marcam a mulher com uma saída via maternidade nos deixam questões, mas se articulavam ao tempo e à cultura da época.

Se para Freud o falo se situava no centro da sexualidade humana, Lacan irá além: vai postular que o falo, ou a mediação fálica, não irá dar conta de drenar o gozo de uma mulher. Assim, essa correspondência não existirá. Há um ponto que é suplementar no gozo feminino, ou seja: mais-além do falo. Lacan avança também no apontamento de que tornar-se mulher e interrogar o que é uma mulher são coisas essencialmente diferentes. Há um receio, na histeria, segundo Lacan, de se aproximar daquilo que lhe falta, ou seja, de simbolizar o órgão feminino como tal. Vai sustentar que “A” mulher não existe, enquanto totalidade, grupo ou conjunto: as mulheres só poderão ser contadas uma a uma.

Frente a tantas sutilezas que tocam o campo feminino de forma estrutural, e tantas modificações no mundo hoje, como é possível pensar hoje as saídas das mulheres frente aos enigmas da feminilidade? Como se pode pensar, então, a relação das mulheres com a maternidade hoje? A maternidade no contemporâneo segue tendo o mesmo lugar que na época dos avanços freudianos? Ser mãe segue sendo uma saída para a feminilidade e para a falta fálica?

Fonte: Imagem de arquivo pessoal

Uma a uma

O modelo que circulava no social acerca dos caminhos femininos vem abrindo espaço, no contemporâneo, a saídas inventivas e artesanais para o ser mulher. O imperativo do casamento e do ser mãe cedem, a cada vez, espaço para projetos autorais, uma profissão como um caminho, e inclusive, abrem o campo para que muitas mulheres circulem a palavra sobre uma gestação tardia, por escolha, após os 40. Outras, ainda, se autorizam a dizer, cada vez mais, sobre a ausência de desejo pela maternidade.

Leda Guimarães, em seus estudos sobre a feminilidade no contemporâneo, marca que as mulheres na atualidade vêm se erguendo num fenômeno muito sólido e potente em nome de uma nova identidade feminina: a máscara da feminilidade contemporânea. Essa máscara teria muitos nomes: a profissional realizada, a supermãe, a amante liberada, entre outras. Há, de fato, uma pluralização nas possibilidades do ser mulher hoje e o que fazer com o próprio corpo – o que representa um imenso avanço e conquista feminina, por um lado. Por outro, gera um impasse: quando tantos caminhos são possíveis às conquistas femininas, o que cada uma vai desejar?

Fonte: Imagem de arquivo pessoal

Impasses

Miller, ao final dos anos 90, antecipou em sua conferência “O osso de uma análise” um fenômeno contemporâneo cada vez mais frequente: Se por um lado a conquista das mulheres pelos direitos de igualdade em relação aos homens se deu, por outro, esses avanços se traduzem em dificuldades no âmbito do amor. Podemos acrescentar, também, que contemplam as dificuldades femininas em relação ao que desejar do próprio corpo, de um parceiro, do futuro e mesmo da construção de um caminho.

Se não há uma orientação única de um caminho validado pelo social, e se esses ideais caíram no contemporâneo –  algo fundamental e estruturante para as subjetividades hoje – para por onde então seguir? Que saída construir para a feminilidade, uma a uma?

Essa pergunta é feita com maior frequência por mulheres que frequentam os consultórios e se endereçam perguntas sobre o próprio desejo. Não é simples optar pela maternidade, como também não é simples sustentar a ausência desse desejo.

O campo profissional, habitado com excelência pelas mulheres hoje, que são líderes, diretoras, coordenadoras e presidentes, oferece uma possibilidade de satisfação pessoal ao campo feminino, e para algumas, parece fazer uma função fundamental. Entretanto, uma pergunta segue em aberto: a realização feminina pode passar pelo campo profissional, prescindindo da maternidade? Eis uma resposta que só poderá ser inventada uma a uma.

Fonte: Imagem de arquivo pessoal

Frestas

Diante de tantos impasses para o desejo feminino, talvez seja importante marcar que nenhuma resposta, sozinha, irá responder completamente à satisfação. Talvez cada mulher possa se perguntar acerca do próprio desejo, construindo assim, uma saída que possa tocar algo da direção de seu desejo. Ser mãe, ser uma profissional realizada, escolher não ser mãe… As respostas são singulares, artesanais, e assim como cada mulher só pode ser contada uma a uma, também seu desejo só poderá ser tomado uma por uma. Se o mundo hoje permite a pluralidade de respostas para o desejo feminino, é fundamental não desejar responder sempre com soluções fálicas, mas deixar um espaço, uma abertura para o feminino. Não ser tratará, assim, de “uma” resposta que irá “completar” a mulher, mas do tecido que cada uma vai construir em torno de sua vida, da forma como lhe interessar. E como um tecido que tem em suas tramas pequenos furos, talvez seja interessante deixar essas pequenas aberturas também no campo da feminilidade: revisitar uma ideia, mudar de direção, encontrar outras saídas… Fazer do artesanal uma experiência viva, mutável, fluida: não tomar uma resposta como “a” resposta. Essa fresta, enfim, talvez ajude cada mulher – com ou sem filhos, profissional realizada ou dona de casa, numa parceria amorosa ou sozinha – a encontrar algo desse campo suplementar, aberto e por estrutura, vivificante: o campo do feminino.

 

REFERÊNCIAS:

FREUD, S. (1933 [1932]). Conferência XXX: Feminilidade. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, V. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

EULÁLIO, A. (2018). Amores loucos: a devastação materna e nas parcerias amorosas. Artesã: Belo Horizonte.

GUIMARÃES, L. (2014).  Gozos da mulher. Petrópolis: KBR

LACAN, J. (2003) Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

LACAN, J. (1972-1973/1982). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

LACAN, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

MILLER, J.-A. (1998). O osso de uma análise.