Quando o afeto esfria nas telas: relações humanas em um tempo de hiperconexão

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Vivemos em uma época marcada por uma contradição profunda: nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, nunca experimentamos vínculos tão frágeis. As tecnologias que criamos para aproximar se tornaram, muitas vezes, ferramentas que reorganizam a maneira como sentimos, nos expressamos e nos relacionamos. Como lembra Otieno (2025) em suas reflexões sobre tecnologia e vínculos sociais, as práticas digitais não surgem isoladas,  elas nascem de necessidades humanas e, ao mesmo tempo, passam a moldar nossos comportamentos. É um ciclo que começa em nós e volta para nós transformado. 

Nesse movimento, relações que antes exigiam tempo, presença e escuta agora se comprimem em telas que cabem na palma da mão. A rapidez das interações digitais nos condiciona a conversas curtas, respostas instantâneas e vínculos que se adaptam à disponibilidade do momento. A pesquisa divulgada pelo G1, realizada por um instituto internacional, reforça esse cenário ao mostrar que os brasileiros passam, em média, nove horas por dia conectados ao celular ou a outros dispositivos eletrônicos, ocupando o segundo lugar no ranking mundial de dependência tecnológica (G1, 2023). Se tanto do nosso tempo está voltado para as telas, não surpreende que nossos laços tenham perdido parte do calor que nasce da convivência real.

As tecnologias que mediam as interações, como redes sociais, aplicativos de mensagens, videochamadas e jogos online, ampliam possibilidades, mas também reorganizam a nossa sensibilidade. A ausência de pistas não verbais, como o tom de voz, o olhar e a pausa respirada, empobrece o que conseguimos perceber do outro. Emoções complexas são traduzidas em emojis, silêncios são interpretados como desinteresse e conflitos se dissolvem em mensagens apressadas. Além disso, a constante conectividade cria um ambiente de comparação e vigilância, em que curtidas, comentários e interações com terceiros podem despertar desconfiança e insegurança, especialmente em vínculos amorosos. Estudos indicam que o uso excessivo de redes sociais pode intensificar sentimentos de ciúme, aumentar comportamentos de monitoramento e, consequentemente, reduzir a satisfação nas relações afetivas (ELPHINSTON; NOLLER, 2011). Ao mesmo tempo, a performance constante nas redes cria um cenário em que sentimentos são exibidos, mas raramente aprofundados. Aproxima-se da imagem, mas se distancia da vulnerabilidade.

Essas mudanças não afetam apenas amizades ou conversas cotidianas; elas aparecem com força também nas relações íntimas. Como aponta Otieno, a mediação tecnológica pode fragilizar vínculos ao introduzir ciúmes, vigilância e ruídos de comunicação (OTIENO, 2025). A facilidade de ocultar conversas, a disponibilidade constante de contato com terceiros e a distração contínua por notificações criam um campo fértil para a desconfiança. Muitos casais relatam conflitos que começam nas redes sociais e se ampliam pela falta de conversa presencial, substituída por trocas rápidas e cada vez menos profundas. A intimidade, que depende de entrega e presença, acaba atravessada por inseguranças e mal-entendidos.

Mas reduzir tudo isso a “culpa da tecnologia” seria superficial. Como o próprio Otieno sugere, o impacto emocional desses meios não depende apenas do dispositivo, mas dos modos como escolhemos usá-lo, da frequência, do contexto e da forma como lidamos com nossas próprias necessidades afetivas (OTIENO, 2025). Cada rede social, seja para compartilhar imagens, conversar, jogar ou buscar comunidade, reflete nossos desejos, medos e limites. A tecnologia não nos torna frios por si só; ela apenas amplifica as maneiras como lidamos com o outro.

Ainda assim, é inegável que o ambiente digital favorece certo distanciamento emocional. A comunicação fragmentada, a velocidade das trocas e a sensação de substituibilidade criam relações mais voláteis. O excesso de estímulos diminui o espaço para a escuta profunda. A dependência do aparelho diminui a presença. Autores da área de comunicação interpessoal lembram que, no contato face a face, os vínculos se constroem não apenas por meio das palavras, mas, principalmente, pelas sutilezas do corpo, o tom da voz, o olhar, a expressão facial, a pausa que permite que a emoção respire (PALMER, 1995). Desde a infância, aprendemos que grande parte do afeto é transmitida por esses sinais não verbais, que permanecem essenciais para comunicar cuidado, empatia e proximidade ao longo da vida. Quando esses elementos se perdem ou são reduzidos a emojis e textos rápidos, o encontro humano perde camadas de significado, comprometendo a profundidade das relações e o cultivo da intimidade. E quanto mais tempo investimos nas telas, menos tempo dedicamos aos vínculos calorosos que exigem atenção, silêncio e presença real. 

Figura: Momento de desconexão presencial causado pela atenção dedicada aos dispositivos móveis.

Fonte: Veja 

Isso não significa, porém, que precisamos rejeitar a tecnologia para recuperar o afeto. O desafio atual talvez seja aprender a temperar as relações mediadas: dar pausa às notificações, desacelerar conversas, abrir espaço para fragilidade, escolher presença mesmo que seja através de uma chamada, e lembrar que, por trás de cada mensagem, existe alguém tentando se conectar da melhor forma que consegue.

Figura: interação remota entre familiares por meio de chamada de vídeo.

Fonte: freepik

A tecnologia pode facilitar encontros, mas não pode substituí-los. Pode criar proximidade, mas não pode sentir por nós. Em um mundo tão rápido, tão cheio de imagens e tão pobre em pausas, talvez a maior forma de resistência seja escolher vínculos mais lentos, relações mais quentes e afetos mais humanos.

Referências:

[1]HORA 1. Pesquisa mostra que brasileiros passam 9h por dia ao celular ou em outros aparelhos eletrônicos. G1, [S.l.], 25 ago. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/hora1/noticia/2023/08/25/pesquisa-mostra-que-brasileiros-passam-9h-por-dia-ao-celular-ou-em-outros-aparelhos-eletronicos.ghtml. Acesso em: 22 nov. 2025.

[2]PALMER, Mark T. Interpersonal communication and virtual reality: Mediating interpersonal relationships. Communication in the age of virtual reality, p. 277-299, 1995.

[3]ELPHINSTON, Rachel A.; NOLLER, Patricia. Time to face it! Facebook intrusion and the implications for romantic jealousy and relationship satisfaction. Cyberpsychology, behavior, and social networking, v. 14, n. 11, p. 631-635, 2011.

[4]OTIENO KARANJA, J. The Impact of Technology on Interpersonal Relationships. Newport International Journal Of Scientific And Experimental Sciences, v. 16, p. 172-178, 2025

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