Atuais e instigantes, “convencionalismos” do matrimônio são abordados na adaptação “o vasto silêncio”

Adaptado do clássico norueguês “Casa de Bonecas”, de Henrik Ibsen, a peça teatral “o vasto silêncio” ficará em cartaz durante todo o mês de agosto, no Sesc, em Palmas. As apresentações ocorrerão durante os cinco sábados do mês, sempre às 20h (mais informações abaixo), e é fruto de um longo período de estudos realizado pelo grupo Três Marias Teatro.

O público deve experimentar variadas sensações com a obra, pois apesar de o texto original ter sido escrito há mais de um século, a “tensão” gerada pela vida matrimonial e os “convencionalismos” que orbitam os casais ainda são assuntos atuais e não superados, seja pelo senso comum, seja pela própria produção acadêmica. Além disso, os atores e integrantes do Três Marias, Isilda Sales e Tales Monteiro, são casados na “vida real” e libaram um verdadeiro “mergulho” existencial durante a adaptação e tratativas da peça. Isso porque as mesmas temáticas presentes nas provocações de Ibsen também povoa o imaginário dos atores, algo que, à peça, certamente resultará em forte impacto (estético e performático).

“O vasto silêncio” conta a estória de Nora, uma mulher do século 19 (período em que em que a luta pela equiparação de direitos entre homens e mulheres já constava da pauta social) que vive um grande conflito por esconder um segredo do marido. Para piorar, começa a receber ameaças de um agiota, funcionário do marido no banco em que este é diretor. A situação foge do controle e traz à tona as verdadeiras intenções que sustentavam o casamento. Há, na trama, um importante componente relacionado à luta pela equidade de direitos: a mulher, num caso inusitado, acaba por tomar uma decisão (decisão esta, inclusive, que permeia toda a série de mal-entendidos que sustenta a estória).

Na constante dialética entre segurança e liberdade, pontos que na visão de Bauman são incompatíveis (ao se optar por um, tem que abandonar o outro), Nora decide então deixar a casa, esposo e filhos, delineando assim o caráter trágico da obra, num movimento que “atualiza” a disputa pelo poder levantada desde Shakespeare, ainda no Iluminismo. Agora, não se tratava da mera contenda política de um reino. O poder em questão é mais “atomizado” e menos difuso, se encontra nos limites do lar. Veio à baila, então, a constante “guerra dos sexos” cuja genealogia remonta a períodos imemoráveis, com a até então inquestionável sobreposição do patriarcalismo. Quem quiser se aprofundar sobre este tema – para fúria da “família tradicional” – há o livro “A Sagrada Família”, de Karl Marx e Friedrich Engels.

Dupla dentro e fora do palco

Os atores utilizaram de suas múltiplas referências de formação na composição deste espetáculo. Focaram e amadureceram em torno de uma pesquisa que prioriza a atuação dos intérpretes, que transitam numa linha tênue entre variadas formas de narrativas cênicas. Partindo do tema proposto por Ibsen o grupo buscou inspiração em fontes paralelas, como textos literários e filmes. O resultado é uma encenação original e tipicamente contemporânea. A produção optou por um espaço alternativo a fim de criar um ambiente intimista com o público, mantendo-o próximo da cena.

Casados há três anos e formados pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul, Isilda Sales e Tales Monteiro perceberam em “o vasto silêncio” uma possibilidade de avançar sobre questões existencialistas, dentre outras abordagens. Questionaram, a princípio, até que ponto um casal poderia manter a liberdade, mesmo que “alinhado” a uma estrutura antiga, “quadrada” (no sentido de que prescreve uma série de “dogmas”), que abre margem para que se exclua a pulsão criativa de que fala Nietzsche, onde criação e destruição não são antagônicos – antes, indispensáveis aos processos criativos. Como, num relacionamento conjugal, evitar que o “contrato implícito” (de lealdade e “afinidades”) se torne um castrador do “tempo liso” deleuziano, onde o “estriamento” convencional retira a originalidade? De acordo com Tales Monteiro, a dupla tem muitas “vontades de dizer no palco”. Uma delas é sobre o “caráter burguês” do casamento. Mas há alternativas viáveis para evitar cair nas mesmas produções (de intensidade) cíclicas.

E apesar de não concordarem com todo o fundacionismo que envolve esta instituição, não são contra as uniões afetivas. “O problema está quando convenções sociais, às vezes de fundo religioso, ditam regras que são reproduzidas há séculos e que tolhem a liberdade e a capacidade criativa do casal. É necessário reservar um espaço para a individualidade, mesmo estando casado”, diz Tales.

Para Isilda Sales, o contato com o texto de Ibsen, quando ainda morava em São Paulo, despertou-lhe grande interesse. Isso por se tratar de uma temática que, para a atriz, é fonte de constantes investidas filosóficas e existenciais. O próprio casal de atores discutiu a relação matrimonial tendo como pano de fundo a obra norueguesa, procurando romper com as limitações impostas por padrões rígidos, numa tentativa de imprimir originalidade a uma dinâmica como o casamento, cujos padrões são ditados “de fora para dentro”, numa luta onde, até o momento, a visão transcendente se sobrepõe a imanente. Mas é nesta última, na introspecção e autogestão, que a força criadora se expressa (há quem discorde, obviamente). E o casal sabe bem disso. “A ideia é não reproduzir os mesmos modelos gerais, apesar de estarmos no bojo de um esquema que já está traçado. Há, neste sentido, a possibilidade de ter escolhas diferentes. Assim, o texto [de Ibsen] é extremamente potente e atual”, comenta Isilda, para lembrar que as facetas sociais “quadradas” (ou estriadas, na visão deleuziana) são reforçadas não apenas pela religião, mas também pelos meios de comunicação e até no ambiente de trabalho. “Só para ter uma ideia, onde eu trabalho percebo claramente que sou mais respeitada por ser casada… e dá para perceber um desrespeito velado para quem não é casado. São situações que, o tempo inteiro, perpassa a sociedade. A peça, em alguma medida, abre margem para se questionar estas construções”, lembra.

Tales Monteiro diz que o texto é atual porque a instituição [do casamento] é a mesma. No entanto, a dupla não põe em xeque necessariamente a existência do matrimônio (eles mesmos são casados), mas as estruturas que são impostas e que tornam a relação enrijecida, numa luta de poder em que ao homem ainda se espera a provisão, e à mulher, sobra a aceitação. “Não por menos, apesar de as mulheres terem se lançado no mercado de trabalho há décadas, ainda não ocupam com equidade os mesmos cargos de chefia e tampouco recebem a mesma média salarial dos homens”, destaca. Mas Tales ressalta que a peça não é uma porta-voz do feminismo (como foi interpretada, dentre outras coisas, quando de seu lançamento). “Antes, é uma forma de alertar para a beleza da diversidade, para a necessidade de se buscar novas formas de se relacionar com as pessoas e com o mundo, tendo por base padrões criativos menos formatados e estereotipados, que sempre deságuam em lugares comuns, reproduzindo modelos arcaicos”, arremata o ator.

União em torno do projeto

Isilda Sales diz que o que move o trabalho da dupla é a perspectiva de desenvolver uma poética cênica própria. “Ao mesmo tempo em que questionamos o pano de fundo desta trama, que é o casamento, também nos debruçamos sobre uma intensa pesquisa para experimentar uma linguagem teatral adequada. O objetivo é ultrapassar a estética do teatro tradicional influenciado pelo palco italiano, onde o espectador assiste passivamente, e lançar uma dinâmica de múltiplas interpretações, que não cabe um discurso linear. Então, há uma tentativa de romper com a forma de contar a estória”, comenta Isilda.

Há, portanto, uma dramaturgia composta como um “quebra-cabeças”, e ao final a plateia “constrói de acordo com a perspectiva de cada pessoa, sem que haja prejuízo do entendimento da fábula original”, arremata. Daí o próprio nome da peça, “o vasto silêncio”, onde o diálogo apresenta a trama, mas o pano de fundo é mostrado de outras maneiras, através da performatividade dos atores e do silêncio, que se configuram como poderosas formas de expressão.

Isilda comenta que este “vasto silêncio”, na peça, pode ser visto de muitas formas. “Trata-se destes vazios que ficam… do vazio que ocorre no silêncio ausente de confrontação. Num casamento, por exemplo, isso ocorre quando não há entendimento [entre ambas as partes] porque também não há diálogo e interação, numa dinâmica em que o casal parece anestesiado”, comenta Isilda, para destacar certo caráter niilista que se impõe sobre a maior parte das relações (afetivas, sobretudo). “No entanto, é perfeitamente possível quebrar estes ciclos viciosos e estabelecer campos de criatividade dentro das uniões afetivas. Para isso, é necessário estar aberto ao diálogo, preservar um senso de liberdade e, claro, projetar-se para o mundo de forma criativa, onde a contingência e a constante redescoberta (do mundo e de si próprio) são vistos como elementos naturais à vida”, finaliza Tales.

Mais sobre “o vasto silêncio”

“O vasto silêncio” é fruto de uma ampla pesquisa realizada pelo grupo Três Marias Teatro, fundado em Palmas no ano de 2011, já contemplado com o prêmio Arnaud Rodrigues de apoio ao teatro, que resultou numa primeira montagem. Desde então mantém sua pesquisa de forma autônoma e independente. Para esta peça em particular, conta com o apoio cultural da Quavi e da Miss Li, além do Sesc (que cedeu o espaço). Não houve subvenção estatal.

A peça permanecerá em cartaz sempre aos sábados do mês de agosto, às 20 horas, no Sesc Palmas (502 Norte). Os lugares são limitados a 40 pessoas e recomenda-se chegar com antecedência.

Os ingressos poderão ser adquiridos antecipadamente na loja Quavi, localizada na Avenida Teotônio Segurado, 102 Sul, de segunda a sábado no horário comercial. Informações pelo telefone 3215-5648. (Com informações da assessoria de imprensa do evento)

SERVIÇO:

Temporada: de 01/08/2015 a 29/08/2015
Sempre aos Sábados, 20h
Local: SESC Palmas (Quadra 502 norte)
Ingressos: R$30,00, R$24,00 e R$15,00 – vendidos na loja Quavi (Tel 3215-5648) ou na bilheteria do evento
Lotação máxima: 40 lugares
Classificação: 12 anos
Duração: 90 minutos
Mais informações:
http://www.tresmariasteatro.wordpress.com
tresmariasteatro.to@gmail.com
https://www.facebook.com/tresmariasteatro

FICHA TÉCNICA:

Encenação e Dramaturgismo: Três Marias Teatro
Elenco: Isilda Sales, Tales Monteiro
Cenografia e Cenotécnica: Renata Oliveira
Preparação musical e desenho de som: Heitor Oliveira
Figurinos: Aline Hiert
Iluminação: Lúcio de Miranda
Recepção e Bilheteria: Alana Serra
Operação de Luz e Som: Dayhan Lopes
Realização: Três Marias Teatro

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.