O Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído no Brasil com o intuito de promover e regular em todo território nacional acesso integral, universal e gratuito à serviço de saúde. Na sua lei de criação, nº 8.080 /90 no art. 2º diz que a “saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. Assim, a criação do SUS também representa uma mudança na relação e conceito de saúde, que até então era relacionado ao tratamento de enfermidades e quadros de não-doença. Com o SUS a saúde e a prevenção passaram a ser promovidas e fazer parte do planejamento de políticas públicas, incluindo ações de vigilância sanitária, epidemiológica, saúde do trabalhador e assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica.
O número de usuários é cada dia mais crescente e as condições estruturais e de utensílios de saúde nem sempre correspondem a necessidade e a demanda da população, fazendo o labor do profissional de saúde um desafio diário. Contudo, segundo Guimarães (2020), entre desafios e contradições, os pesquisadores não têm dúvida do saldo positivo de se ter um sistema público e universal de saúde antes, durante e depois de uma crise sanitária como a que se está vivendo.
A Lei 8.080 que criou o SUS é uma referência mundial. No entanto, o êxito da sua aplicabilidade e a satisfação do usuário é diretamente relacionada a maneira pela qual os profissionais que a representa, sejam eles governantes ou profissionais de saúde, a aplicam. Neste contexto, sobre a aplicabilidade da Lei e a experiência do paciente, segue relato de uma usuária do Sistema:
“Em 2015, eu, Ana Paula Batista Ferreira da Silva, tive minha segunda gestação, foi uma gravidez planejada, fiz pré-natal antes e depois para que tudo ocorresse bem. O meu parto foi programado para dia 30/09/2015 onde fui internada pelo meu médico, no Hospital Maternidade Dona Regina em Palmas/TO, fiz uma cesárea, o bebê nasceu saudável e eu aparentemente estava bem.
Porém, no dia seguinte, eu percebi alguns hematomas na minha cirurgia, além de muito desconforto ao sentar, levantar e me movimentar, dores essas que eu não senti na minha primeira experiência de parto cesáreo. Questionei a médica se aquelas dores eram normais e segundo ela estava tudo dentro da normalidade. Mesmo com tanta dor e hematomas, o abdômen e a vagina pareciam querer expulsar algo de dentro de mim; eu recebi alta com três dias de internação, segundo a equipe médica eu estava com o quadro dentro da normalidade de um parto cesáreo.
Infelizmente depois de oito dias de alta hospitalar retornei ao hospital com muitas dores, logo meu médico já tinha orientado alguém para me atender. A médica que me atendeu no dia 07/10/2015 olhou minha cirurgia, fez um procedimento de drenagem em dois pontos da cesárea e falou que tinha um pouco de sangue acumulado, mas que com aquele procedimento tudo ficaria bem. Essa drenagem gerou muita dor, não sei nem descrever, ao terminar me liberou para casa. Retornei, mas no dia seguinte as dores continuaram, a cirurgia estava com sangramento pelos pontos. Eu me preocupei, mandei fotos para médico, e ele logo falou: “vai agora mesmo para hospital”.
Eu estava passando muito mal! Muita dor, tontura, palidez e inchaço na barriga. Chegando ao hospital logo fui atendida, por um médico que já estava me aguardando a pedido do meu obstetra. Ao me avaliar o médico falou que minha cirurgia estava ótima e que iria fazer a retirada dos pontos. Porém ao retirar os pontos da cesárea, ele levou um susto, a metade da cirurgia estava aberta, e com muitos hematomas. O médico logo falou que iria precisar fazer minha internação, para que eu pudesse refazer a cirurgia. Segundo ele, eu estava com infecção de parede e o tratamento iria demorar alguns dias.
Todas as vezes que eu tentava levantar, desfalecia, não conseguia ficar em pé, fiquei passando mal a noite inteira, parecia que eu estava com uma melancia dentro de mim, de tão grande que a minha barriga estava. Quando foi por volta das 5h da manhã o médico falou para me organizar e me levaram para fazer um ultrassom.
Quando o médico introduziu o aparelho na minha vagina, ele gritou: “meu Deus essa mãe está chocando[1]”. O médico ficou desesperado, ali naquele momento eu percebi a gravidade da minha situação. Imediatamente o médico pediu socorro, o maqueiro me colocou na cadeira de rodas, o médico falou para ele me levar direto para o centro cirúrgico, o maqueiro fez isso, porém ao chegar à porta de entrada do centro cirúrgico, a médica falou aqui ela não pode entrar, pediu para esperarmos um pouco, eu já estava perdendo as forças, a fala, muito fraca, muitas dores, pálida, já não conseguia levantar a mão. Então eu fiquei ali no corredor, à espera do socorro. A médica veio falar comigo, eu peguei na mão dela e falei me ajuda, me ajuda, me socorre. Logo me levaram para emergência do hospital onde começou meus primeiros socorros.
Os médicos pediram para me darem 3 a 4 bolsas de sangue, isso tudo porque eu tinha que ir para o centro cirúrgico, mas no momento estava muito debilitada, então passados umas 4 horas eu fui para centro cirúrgico, mas antes disso, ainda ali naquela sala eu ouvia minha mãe gritar e chorar lá fora.
O médico então chamou meu esposo e conversou comigo e com ele, explicando que eu precisava fazer uma curetagem urgente pois estava com muito sangue coagulado e que existia o risco de perder meus órgãos do sistema reprodutor. No dia seguinte quando acordei restabelecida na emergência, o médico que realizou o procedimento foi até mim e disse “ mãezinha em vinte anos de profissão eu nunca vi tanto sangue coagulado em uma só pessoa, mas deu tudo certo, não sei a que Deus você serve, mas esse Deus te salvou. Agora é só recuperar para realizar a outra cirurgia de fechar cesárea”. Então comecei o tratamento com antibióticos para tratar da infecção de parede e me preparar para a outra cirurgia.
Quando chegou o dia da outra cirurgia, tomei a primeira anestesia na coluna, porém ela não pegou, quando o médico foi cortar a cirurgia eu senti e falei para o doutor. Ele imediatamente parou e tivemos que aplicar outra anestesia. Já no quarto com um dreno na cirurgia, estava doendo muito. O médico olhou a cirurgia, ela estava cheia de sangue, ele cortou um pedaço do dreno, fez limpeza e a dor diminuiu, mas não passou. Com o passar dos dias me recuperei e recebi alta, podendo voltar para casa e criar uma rotina de cuidado com meu filho recém-nascido”.
No relato acima, percebe-se que os princípios da Lei 8.080 como aqueles que encontramos no art. 7 incisos II, III e V que tratam da integralidade da assistência, da defesa da integridade física e moral e do direito à informação, foram subtraídos no atendimento recebido por Ana Paula Batista. A paciente, mesmo relatando dores incomuns antes da alta, foi liberada, sendo seu estado considerado “dentro da normalidade”. Ao retornar à primeira vez ao hospital, recebeu o mesmo parecer médico, sem que em nenhuma das circunstâncias fosse oportunizada a ela o acesso a um exame de sangue para verificar alguma possível infecção ou mesmo a um ultrassom. Exames esses que poderiam ter evitado o avanço da infecção e agravamento do seu quadro.
Na Portaria nº 2.436 de 21 de setembro de 2017, é exposto que a atenção básica considera a pessoa em sua singularidade e inserção sociocultural, buscando produzir a atenção integral, incorporar as ações de vigilância em saúde – a qual constitui um processo contínuo e sistemático de coleta, consolidação, análise e disseminação de dados sobre eventos relacionados à saúde – além disso, visa o planejamento e a implementação de ações públicas para a proteção da saúde da população, a prevenção e o controle de riscos, agravos e doenças, bem como para a promoção da saúde.
No relato da paciente Ana Paula, essa assistência da Unidade de Atenção Básica na qual ela teria direito em seu território residencial, com os cuidados da equipe multidisciplinar perto da sua casa, durante o período de oito dias em que esteve de alta, também foi falho, pois não teve nenhuma visita domiciliar dessa equipe para orienta-la da maneira correta de agir em seus cuidados para a melhor assistência a sua saúde nesse processo curativo.
Como estudantes de psicologia, aprendemos sobre as subjetividades dos indivíduos e a importância desse olhar individual e contextualizado do profissional com seu paciente. Quando o médico normaliza a dor, sem considerar o histórico de cada paciente, neste caso uma mulher que já passou pela experiência da cesárea e possui um referencial de pós-parto, ele retira dela o direito à dúvida, à possibilidade de diagnóstico diferente do tido como “normal” em um pós-parto e com isso não lhe permite acesso a possíveis exames, cobertos pelo SUS e tem a necessidade de ser indicado por ele. Portanto esse processo de assistência a saúde teve varias atos falhos tanto da equipe médica quando do direito que essa paciente teria se tudo tivesse sido realizando de forma correta.
[1] chocando: o choque é um estado de hipoperfusão de órgãos, com resultante disfunção celular e morte. Os mecanismos podem envolver volume circulante diminuído, débito cardíaco diminuído e vasodilatação, às vezes com derivação do sangue para não passar pelos leitos capilares de troca.
REFERÊNCIAS
SUS completa 30 anos da criação, publicado em 21 /09 /2020 em: <https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020/setembro/sus-completa-30-anos-da-criacao> (Acessado em 15 /11 /2020)
LEI nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, Presidência da República, Casa Civil, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm
GUIMARÃES Catia – A importância de um sistema de saúde público e universal no enfrentamento à epidemia – EPSJV/Fiocruz | 25/03/2020 17h20 disponível em:
Integralidade na atenção à saúde: um olhar da Equipe de Saúde da Família sobre a fisioterapia < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mundo_saude/integralidade_antecao_saude_olhar_equipe.pdf > (acessado dia 16/11/2020)
PORTARIA Nº 2.436, DE 21 DE SETEMBRO DE 2017 file:///C:/Users/User/Downloads/portaria-n-24367d291e65f4602ace1eb1460c16d9b283.pdf ( acessado em 16/11/2020)