Deitando-se nalgum momento perdido ao fim de um longo dia de trabalho, está o iniciado dos liceus, em vias de finalizar sua passagem por aqueles corredores, escadarias e prédios cinzas, residências de um saber continuamente (des)construído, e poucas vezes imprescindível ou necessário. Sua condição é esta, agora não mais com os olhos brilhantes de seu verdejar pela incontáveis páginas amarelas, encolhia-se em meio aos seus cobertores estragados, uma pequena luz adentrava seu quarto minúsculo, velado pela claridade turva do luar ao longe, um único desejo o preenchia: apagar, ao menos por alguns instantes, as tormentas elucubrativas que habitavam sua mente.
Aos inícios dos arrebois, lá estava novamente, perscrutando epitáfios e lápides, a partir das quais encontraria o que lhe convinha, esse era apenas o introito ao execrável ritual, após a abertura e escavação dos túmulos. Feita a exumação dos restos mortais era preciso, agora, escolher, pausada e calmamente, membros, tecidos e demais partes do finado, a serem levados em sua antiga carruagem, encostada às margens do lago próximo ao olvidado cemitério. Findada mais uma ida na terra da carne pútrefa, aguarda-se no reduto longínquo, em meio a turvos pesadelos e frios suores, o próximo ciclo notívago. Em seu laboratório, havia três grandes divisões dos materiais coletados todas as noites.
Nas prateleiras postas à parede mais escura, repousavam os fluídos necessários ao seu trabalho, de formol a ácidos, diferentes tipos sanguíneos e misturas rotuladas com códigos entendíveis apenas pelo executor do intento. Amontoados em caixotes de madeira, estavam partes diversas dos corpos vistoriados em longas horas passadas na necrópole: braços, pés, pernas, troncos inteiros ou repartidos, ocos ou ainda com remanescências do que eram, outrora, camadas de tecidos internos dos mais diversos. Em uma bancada mais limpa e apartada do restante da sala, estavam enfileiradas as cabeças, crânios, olhos e cérebros, submersos em pequenos potes, dentições e diversos tipos de cabelo, como se fosse possível extrair desta seção uma beleza moldada a passo lento dos escombros das vidas não mais existentes. Por fim, também cuidadosamente organizados em armários com portas de vidro, estavam os órgãos e demais repartições internas do que viria a ser a opus magnum do criador inominável, ao menos esse era o pensamento que o habitava e fazia suas pernas e braços, dedos e olhar ficarem magnetizados durante todo o processo de montagem da sua criatura singular e inigualável.
Na beirada da mesa central estavam todas as ferramentas, utensílios, manuais, e demais quinquilharias necessárias para se fazer toda a andadura do mise-en-scène do ser em nascituro, às agulhas, de diferentes tamanhos e espessuras, cabia um lugar especial, já que a costura das membranas, músculos, ossos e tendões, demandava mais apuro e precisão em cada uma das perfurações e incisões. Após dias e noites inteiras insones, o trabalho começava a chegar ao seu tão esperado fim, e com o monstro chegando (im) perfeito à sua plenitude, eis que o seu mostrar-se como tal, começava a esboçar os traços, feições e silhueta inconfundível.
Até então, não se sabia a decifração do éter espiritual, o sopro de vida que nos vem ao primeiro choro e derradeiro suspiro, mas em anos de estudos nos livros dos mestres mais sombrios, o aflito aprendiz chegara a chave da aldrava: eletricidade. Uma carga impensável mesmo naquela época, de ampla evolução tecnológica, capaz de deixar a mais iluminada das cidades em completa penumbra, e assim ocorreu no momento em que o botão fora, enfim, apertado. Acabado todo o processo, grita-se “Está vivo!”, no entanto, não há orgulho ou calmaria nas têmporas, o que restou à enrugada tez é o questionamento, louco e incontrolável, ao fitar o corpo costurado, preso à tábua defronte: a criatura aqui trazida à existência, em condições tão condenáveis e desprezíveis, é tão horrível quanto aquele que a recolheu da atemporalidade para este reino mundano?
Uma respiração sôfrega e pesada inicia-se. Agora, é tarde, está feito, por entre as feridas e costuras, o sangue ainda goteja, frio e denso, e movimentos frenéticos habitavam os olhos sedentos de liberdade abaixo das pálpebras. As horas da noite sem fim ainda passavam, e o prospecto de novo membro dos círculos acadêmicos ainda suava gelidamente, em meio aos espasmos musculares, sabendo que ao raiar a primeira luz do dia vindouro, havia de ter ainda muitas idas aos seus mestres mortos, aos textos ininteligíveis e à prisão linguística a que estava sujeito há anos, sem saber, sequer da validade ou propósito do que lia, via e, principalmente, escrevia.