O poço

 

Um pouco da história

Quando as nuvens negras pestanejavam o céu, e o azul já se esvaíra do estado da minha alma dita boa, eu, ser humano já cansado de tudo, mais uma vez andava pelas ruas da cidade onde tudo iria enxergar e talvez boa parte de mim iria entender.

O ano era 1940. Quis permanecer longe, e buscar algo que até então eu ainda não havia visto. Eu morava em uma cidade pacata, onde homens e mulheres eram reservados e nada compartilhavam uns com os outros. Eu morava em uma casa isolada, afastada dos locais mais requisitados da cidade e fora do eco da voz de tudo e de todos.

Minha residência era extremamente simples, composta por poucos cômodos e mobílias. No fundo da casa, lá fora, no quintal, havia algo que sempre me perturbava e me intrigava. Isso era um poço. Ficava todo coberto por madeira e pregos por todo lado já em estado de decomposição e ferrugem. Devo admitir que a iluminação da rua era horrível, portanto, enchia a minha propriedade e consciência de luz. Era tudo em excesso. Ali dentro do local que me trazia um mero conforto era iluminado, enquanto o fundo era de fato tenebroso e sombrio. Eu já não sabia quem eu era e tão pouco no que queria me tornar. Tive uma infância difícil, fui uma criança desgarrada pelos meus genitores e o rosto deles era irreconhecível por mim. Leitor, só me sobrava isso: tentar entender quem eu fui e o que fiz, pois o passado me atormentava e o peso que eu sentia em meus ombros era das mãos de uma criança inconseqüente e de que nada sabia. Já cansado de nada fazer durante o dia, a noite como consequência chegou. Peguei no mais profundo sono e de nada mais lembrei.

A casa tem um segredo

Quando acordei, urrei por uma xícara de café e um trago de fumaça. Fui até o quintal para então poder apreciar a extensão da minha residência, e enquanto finda o cigarro entre os meus dedos, percebo que o amontoado de madeiras que cobria o poço já não mais o tampava. Quem havia retirado aquilo?  Que raios é que havia acontecido? A bravura então tomou o meu estado para me fazer ir ver. Tinha a oportunidade de ver o poço de perto e ver o que havia dentro dele, pensei comigo. Como não era longe, o pouco que caminhei não fez minha mente inquieta fantasiar e pensar no que tinha ali dentro. Fui despido de qualquer pensamento. Ao chegar lá, e curvar os meus olhos para dentro do buraco, nada consegui enxergar com total nitidez. Havia uma água preta, turva e nada mais.

Voltei para o meu negro que melhor representava minha alma e ali fiquei sem dar a mínima para tudo em volta. A noite novamente chegara e pude apreciá-la naquele dia. Chuva forte, marcada por tempestade sombria eram as características. Me comovi como nunca antes. Eu já me deparava com algo obscuro de mim, talvez a parte ou uma totalidade mais pura e livre de tempo e espaço organizado, mas parecia algo grande e ao mesmo tempo livre de explicações, era irreconhecível. Enquanto me embriagava de sono tedioso e monótono, ouvi aquilo que quis me contrapor a essa minha vontade. Um raio estrondoso vindo dos infernos altos rasgara o campo imenso e batera na árvore ao lado do poço. Aquilo já me despertara e tentei ir lá fora. Da janela que me possibilitava ver, percebi algo que não era só fenômeno natural. Eu iria me ver essa noite, e então o futuro me veio às mãos.

Respirei fundo para não cair e me agarrei nas grades da janela para não ser atacado pela moleza do corpo. O que vi saindo dentro do poço parecia uma peste encapuzada empunhando uma foice curva e afiada em seus ombros. Aquilo estava de costas e eu via partes dela sempre quando os relâmpagos me vinham aos olhos. Antes de entender totalmente o que era, aquela criatura tomou outras formas. O que a sucedeu foi um ser criança enorme, com um olhar morto, apático, e totalmente voltado para baixo, para o poço. Possuía tentáculos enormes presos em correntes que a puxavam para baixo e para o fim. Não tive a capacidade de me mover por aquele momento, mas meus olhos não conseguiam se desviar da situação. A casa parecia revelar algo de mim e o que eu buscara havia tempo.

Quando tomei a devida coragem, respirei, cerrei a janela e fui até à porta.

Tive uma bravura indômita de ir até o poço e ver de perto o que era aquilo. Tudo era silêncio e calmo agora. Chutei todas as madeiras e restos de árvore por perto e tentei enxergar ali dentro. Meus cabelos se eriçaram quando vi que a água do poço era limpa e me permitia me ver. Foi tão absurdo que não pude me conter. Ao curvar ainda mais para enxergar o meu reflexo, fiquei tão tomado com aquilo que caí naquele buraco e fui tomado inteiramente por mim e de mim no instante profundo. Bebi daquela água que antes era incompreendida e turva e que agora me revelara algo tão profundo. Como não possuía nada mais para me agarrar e sair dali, a última imagem que me vem à cabeça foi a da minha mão pedindo volta e socorro, mas quando me dei conta, já era tarde demais e acho que também não compensava. Afinal de contas, eu consegui encontrar o que eu queria.