Nunca fui artística. Nem perto disso, na verdade. Perceber isso ao longo da minha infância com a ausência de reforçamento (muito justa) do mundo e das pessoas que me rodeavam me fez distanciar cada vez mais da prática do desenho.
Sempre admirei a forma como as pessoas conseguiam colocar seus sentimentos em traços. Parecia mais simples do que encontrar narrativas para o não dito. Quase como se fosse possível desenhar aquilo que é indizível.
Um dia, em uma das aulas da faculdade de Psicologia, foi pedido que os alunos desenhassem como estavam se sentindo no momento presente. Bufei. Simplesmente não conseguia materializar o que se passava na minha cabeça. Um eterno: mente manda, corpo não reproduz.
Acabei cedendo à frustração e comecei a rabiscar o papel. Como quem não tem intencionalidade. Como quem não pensa. Quinze minutos depois, esse rabisco apareceu. Digo que apareceu porque, para mim, foi como se houvesse um lapso na realidade dividido em “lápis na mão” e “desenho pronto”. Me despertei do que foi quase uma espécie de transe quando uma das minhas amigas me olhou surpresa e disse “caramba, você TEM que comentar esse desenho”.
Como poderia? Eu via a porta aberta? (spoiler, via, sim) Escolhia não sair, ainda que me sentisse presa? Não via a porta bem na minha frente? O que era a prisão? O que era lá fora? Que piada desagradável meu inconsciente tinha me apresentado naquele momento. Nauseante, para falar a verdade. Vem aqui o aspecto difícil da terapia: ela exige que as pessoas se enxerguem de maneiras que, normalmente, escolhem não se enxergar.
Esse desenho é de anos atrás. E, a partir dele, eu tive que tolerar esses sentimentos profundos por tempo suficiente para entendê-los e escutar o que eles estavam tentando me dizer (porque o evitamento, até então, era uma maneira “simples” de aguentar sem ter que enfrentar). Já faz um tempo que não estou mais nessa caixa.
“…um prisioneiro balançando as grades, tentando desesperadamente escapar, mas à sua direita e à esquerda, a cela está aberta, não há grades… o prisioneiro só precisa dar a volta, mas mesmo assim ele balança freneticamente as grades. Isso acontece com a maioria de nós. Sentimo-nos completamente impactados, presos em nossas celas emocionais, mas existe uma saída… desde que estejamos dispostos a vê-la.” (Lori Gottlieb)
Estar disposto a ver a saída é uma tarefa extremamente difícil para alguns. Primeiro porque a liberdade envolve responsabilidade, e existe uma parte na maioria de nós que acha a responsabilidade assustadora. Depois porque a possibilidade de uma saída, por vezes, pode parecer ainda mais intolerável do que o próprio sofrimento. Ainda, pode ser muito difícil contornar as barras da prisão quando não se sabe para onde ir. A perda do antigo e a ansiedade do novo.
A mudança gera perdas. E é muito rico reconhecer os lugares que não nos cabem mais.
De outro ponto de vista, eu adoro caixas. E, afinal, não é sobre isso? o paradoxo infindável numa busca desesperada por liberdade e segurança. Se não gera sofrimento, que caixa bonita a sua. Mas, com sinais de incômodo, aprisionamento e redução de vivências, dar uma espiadinha pro lado de fora pode ser muito curativo.
Carl Jung disse: As pessoas farão qualquer coisa, por mais absurda que seja, para evitar encarar suas próprias almas.
Mas ele também disse: aquele que olha pra dentro, desperta.
(e, uau, olha só pra mim, citando Jung)
E por aí, como estão as olhadas para o cerne?