Este texto descreve um pouco desta experiência e traz em seu arcabouço impressões, inquietações, quiçá discussões habitando a zona em que se borram arte e clínica. Um museu de grandes novidades? A intensidade experimentada nesses encontros me impulsiona esta troca com o público.
A proposta de iniciar esta oficina surgiu numa dobra – dentro e fora, um misto de necessidade e desejo:
A necessidade – a equipe de trabalho sinalizava que usuários estavam muito sedentários e que gostavam da ginástica, dos passeios daí a importância de um espaço para que o usuário exercitasse/movimentasse o corpo1. De que corpo estávamos falando? Corpos oprimidos por instituições?
O desejo – organizar tempo-espaço no cotidiano de trabalho como psicóloga inserida na equipe para poder partilhar este gosto pelo fazer teatral com quem ressoasse o desejo de se lançar a experimentação.
Antes de iniciar a oficina atravessava-me esta questão: como possibilitar o encontro dos usuários com a modalidade Teatro, afirmando a experimentação artística e não somente a terapêutica? A intenção inicial era a de utilizar a linguagem teatral como ferramenta, para que todos pudessem experimentar e ampliar formas de expressar-se, dando formas às sensações, produzindo movimentos corporais e vocais por meio dos exercícios cênicos e produzir montagem que pudéssemos circular pelo território, apresentando.
Inevitavelmente, a clínica atravessaria a arte e, a arte, a clínica. Essas inquietações emergem no trabalho cotidiano das oficinas terapêuticas na Atenção Psicossocial, especialmente em oficinas onde o espaço de encontro pede uma atmosfera de criação, onde não cabe processo ensino-aprendizagem.
Lembrando que a Reforma Psiquiátrica tendo conquistado tantos avanços continua com seus desafios no cotidiano do trabalho com a Saúde, cito a partir dessas questões que retornam, afirmações de Nise da Silveira, quando conta da experiência da Casa das Palmeiras, fundada em 1956, voltada ao trabalho de reabilitação de egressos do Hospital Psiquiátrico: “Fazemos constante apelo às atividades que envolvam especialmente a função criadora mais ou menos adormecida dentro de todo indivíduo. A criatividade é o catalisador por excelência das aproximações dos opostos. Por seu intermédio sensações, emoções, pensamentos são levados a reconhecer-se e associar-se.”
Assim, a proposta da oficina de teatro nasceu. O convite aos usuários e familiares foi feita na ambiência, nas assembléias, grupos, por meio de cartaz e nas outras oficinas. O método utilizado para elaboração do trabalho se confeccionou com linhas que dialogam: o Teatro Espontâneo desenvolvido por Moreno, criador do Psicodrama e o teatro de Augusto Boal e Grotowski e na minha bagagem que foi sendo alimentada de encontros afetivos no trabalho com grupos de teatro e em oficinas expressivas.
A oficina teve duração de dois anos (2009-2011). Acontecia semanalmente e era composta por momentos que se interpenetravam ao longo da experimentação:
• Aquecimento (sensibilização e descondicionamento): exercícios de respiração e voz, corpo em relação com o espaço, com o outro e com objetos, composição de máscaras.
• Expressão corporal e vocal: pesquisa do repertório de movimentos com exercícios de expressão corporal e vocal, jogos cênicos (com e sem máscaras) individuais, em dupla e em grupo, leitura de textos, criação de textos e/ou imagens.
• Dramatizações: construção de personagens, composição de cenas, trabalho com maquiagem e figurino.
• Compartilhamento: momento de finalização da oficina em que cada participante traz a sensação de como foi a experimentação do dia: como chegou e como está saindo. Com palavras faladas, escritas, cantadas ou silenciadas.
Além de usuários, familiares e pessoas da comunidade participavam estagiárias de psicologia da Unesp-Assis-SP.
Configurou-se como oficina aberta, então a cada encontro um grupo diferente se formava. E com espontaneidade possibilitada pelos encontros e jogos vivenciávamos um processo singular de produção coletiva. Para Moreno (1980), a saúde consiste em ter livre trânsito entre os planos da realidade e da fantasia. Os extremos adoecidos seriam a Loucura da Fantasia e a Loucura da Realidade.
Cada oficina produzia uma obra em si: cada ator e atriz, a partir de seus recursos corporais e vocais, expressava movimentos e sons com ritmos, volumes, freqüências diferentes que ora ressoavam produzindo respostas do outro que jogava com outros movimentos ou sons ou silenciava ou até respondia com canções “de cabeça” ou inventadas – um RAP, um sambinha, uma embolada. Explorávamos outras formas2 de nos comunicarmos para além do que estávamos habituados em nosso dia-a-dia.
Os jogos de espelho eram muito apreciados: um de frente para o outro ou em círculo. Uma pessoa inicia um movimento corporal, de forma livre, que é seguido pelo outro que faz o papel de espelho. Instantes de concentração, verdadeiros poetas da ação, como Burnier descreve os atores, de repente no meio do exercício uma pessoa da dupla saía para fumar ou dar uma volta ou simplesmente por querer observar, assistir, fazer o papel de público. O grupo, com seus movimentos próprios, suas idiossincracias…O processo grupal não se interrompia, uma linha contínua se tecia do início ao final do encontro.
Ao adentrarmos a atmosfera da oficina, a disponibilidade corpórea já se modificava, expandindo, em repouso ou contraindo cada movimento do corpo e da voz3 era co-criado, mesmo que realizado de forma individual. Havia espaço para a expressão do não –verbal, aliás no processo de experimentação era material para construção de diálogos e cenas. A montagem idealizada no início da proposta não ocorreu, o grupo se satisfazia em produzir uma obra a cada encontro.
Havia algo que nos fazia estar ali compartilhando os afetos em formas de pessoas, seres lunáticos ou interplanetários, animais, minerais, vegetais, estados da matéria, em estranhezas sem nome, sentimentos dos mais amenos aos mais intensos, em não saber, em pura vibração compartilhada. Corpo sendo pipoca estourando ou uma cachoeira escorrendo nas pedras, a voz de um pássaro voando no céu com corpo-pé batendo no chão, o som e o movimento vêm da mão batendo no peito entoando uma canção da infância, um tecido ser um cão correndo, o véu da noiva ou o pêndulo de um relógio, uma bola um chapéu ou um bebê de colo, com a máscara poder ser um palhaço e até mesmo um louco!
Risos e assombros. Lucidez e descompassos. Gritos e sussurros. Silêncios barulhentos e silenciados. A oficina, assim como a vida, se fazia na troca das multiplicidades que emergiam no aqui-agora.
E se entendemos Saúde como produção de vida, mesmo com a morte a nos espreitar com maior ou menor intensidade, esta experimentação na Oficina de teatro celebra a possibilidade de termos passeado de mãos dadas por outros mundos, nos movermos por paisagens nunca antes visitadas, habitar de outros jeitos o que insistia em ser o mesmo, termos produzido imagens que conversaram e produziram outras e outras.
Ficam registros no corpo-tempo-memória de todos que ali estiveram, experimetadores, inventadores, atores disponíveis, em seu sofrimento e alegria de viver, a esse fazer teatral precário e visceralmente orgânico – instância-artefato-possibilitadora de encontros, encontros potentes.
Sentados ali, à beira do abismo ou à beira do mar, quando num quintal interiorano do Caps nos estendíamos em roda – instalando um crivo no caos – a inscrição de uma poética livre, para além de protocolos ou diagnósticos, arando a terra do insondável mistério de comungarmos da condição humana. Com prosa e poesia, brindávamos a tarde podendo ser muitos. Um rito – a linguagem tornou-se universal e brinca!
Ao final das oficinas nos sentávamos e alguns livros ficavam ali disponíveis para lermos ou para quem quisesse consultar. Certo dia uma usuária pegou um livro pocket do Eduardo Galeano e folheou e lá se demorou, começou então a ler. Transcrevo um trecho:
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.
Pegamos fogo, meu povo!
Bibliografia:
Artaud, A. O Teatro e seu duplo. SP: Martins Fontes, 1999.
Burnier, L.O. A arte de ator. Campinas: UNICAMP, 2001.
Fonseca, J.S. Psicodrama da Loucura. SP: Ágora, 1980.
Galeano, E. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2008.
Lancetti, A. Clinica Peripatética. SP: Hucitec, 2009.
Lima, E.A. Arte, Clínica e Loucura. SP: Summus, 2009.
Rodrigues, J.C. O Corpo na História. RJ: Fiocruz, 1999.
Silveira, N. O mundo das imagens. SP: Ática, 1992.
1 “Menos que signo de um indivíduo, ou marca de sua diferença e distinção, esse corpo é exatamente onde o homem transborda de si, onde recusa a inércia e os confortos que o tornam passivo e dócil.” (Rodrigues, p.191, 1999)
2 “Para quem se esqueceu do poder comunicativo e do mimetismo mágico de um gesto, o teatro pode reensiná-lo, porque um gesto traz consigo sua força e porque de qualquer modo há no teatro seres humanos para manifestar a força do gesto feito.” (Artaud, p.91,1999)
3 “Este modo de existência corporal tem a ver com o fascínio que, por toda parte, os homens têm por romper os limites, pelo além, pelas viagens, pela transgressão das fronteiras, pela ida ao desconhecido, pelos transes, pela morte, pelo convívio extático com os deuses…Este outro corpo é isto: nele, o trágico nunca fenece; busca decididamente o que põe em perigo. Os contra-poderes e as ameaças são absorvidos por ele como positivos, para que usando-os como alimento, continue incessantemente a se renovar.” (Rodrigues, 191-192, 1999)