CAPS Itapeva

CAPS Itapeva: 25 anos depois

Uma maneira interessante de nós, profissionais, avaliarmos o que andamos a fazer, em serviços de saúde mental, é sermos, nós próprios, acolhidos por esses serviços. Pretendo relatar a forma como fui acolhido no CAPS Itapeva, o primeiro do Brasil, e outros fragmentos que me chamaram a atenção e que formam minha percepção, parcial e limitada, acerca desse serviço, especial já por sua história.

O CAPS fica na esquina da Rua Itapeva com a Rua Carlos Comenale. A rua Carlos Comenale é declinada. O muro que está pintado fica na parte mais acima da entrada. O desenho é abstrato e apresenta escrito as seguintes expressões: “Intervenção Revolução Moledular” e “18 de maio de 2008”. Molecular é um conceito apropriado por Deleuze e Guatarri na Filosofia. O molecular abarca uma dimensão das relações que se conecta com a dimensão molar. A dimensão molecular é caracterizada pela flexibilidade, pelo primitivo e pelo micropolítico. Distingue-se do aspecto segmentar, duro e moderno do molar, mas coexistem, atravessam-se. De acordo com Liliana da Escóssia e Virgínia Kastrup, no artigo “O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade”, publicado em 2005 pela revista “Psicologia em Estudo”,

Deleuze e Guattari advertem que, ao distinguir as duas séries, devem-se evitar três erros: o axiológico, que consiste em positivar a molecularização em detrimento da molarização, uma vez que as duas podem ser extremamente perigosas, como é o caso do fascismo, que se apresenta também sob a forma de microfascismo; o psicológico, que consiste em confundir molecular com individual ou interindividual e reduzir o molar ao domínio social; e finalmente, tomar o tamanho como critério de distinção e considerar a forma molecular como pequena e a molar como uma forma grande. A distinção deve ser buscada na natureza do sistema de referência a que se remetem o molar e o molecular. Isto leva a reservar as palavras “linhas” e “segmentos” para tratar da organização molar, enquanto a palavra “fluxo” passa a ser utilizada para tratar da composição molecular. (p. 300)

Vemos, portanto, que o CAPS Itapeva possui incrustada, em sua epiderme, o fluxo, insinuando que em suas veias o cuidado revoluciona a relação entre as pessoas.

Em minha visita, ocorreu, de início, uma coisa interessante. A entrada do CAPS é assistida por um ou dois seguranças e mais um ou dois atendentes que ficam no primeiro posto de atendimento. Quando entrei, não fui abordado por nenhum deles e continuei entrando. O CAPS atualmente abrange uma estrutura que há anos atrás era dividida em duas: o CAPS Itapeva e o ambulatório de saúde mental, separados por um muro que foi abaixo quando se viu que a divisão entre esses serviços, que ia além da estrutura predial, passando pelos processos de trabalho, tornou-se caduca. A queda desse muro representa os processos interdisciplinares que vão compondo a nossa prática. Como não fui abordado por ninguém, fui entrando e passei da antiga estrutura ambulatorial, hoje reservada a algumas práticas clínicas, de acolhimento e administrativas e cheguei na parte em formato de casa e não de repartição pública, onde sempre foi o CAPS Itapeva. Nessa casa é onde ocorre a maioria das atividades de cuidado do CAPS, as técnico-terapêuticas, as de geração de renda, as de convivência, as de formação e etc. Mais abaixo essas atividades serão mais especificadas. Para encerrar o relato dessa minha primeira entrada gostaria de discutir mais dois pontos:

1- Primeiramente que em alguns momentos tive dificuldade de distinguir a função exercida por algumas pessoas, se usuários ou se profissionais; creio que isso seja um bom termômetro para se avaliar a qualidade das relações estabelecidas no cuidado; quanto mais horizontais e acolhedoras as relações, menos estigmatizados são os papéis sociais assumidos pelas pessoas. Nesse sentido, os profissionais não apresentam tantas defesas contra sua insegurança bem como o usuário não assume a posição de paciente.

2- Em segundo lugar que o fato de eu entrar sem ser percebido é exceção naquele lugar; quando me deram por minha presença, o estranhamento foi geral: como alguém passou sem ser de alguma maneira orientado dentro do local? Desse ponto, concluo também uma coisa positiva: mesmo que seja exceção, minha passagem desapercebida demonstra que o fluxo de passagem pelo lugar não é de policial e nem obsessivamente controlado como o é em muitas instituição públicas, de saúde inclusive. Isso também diz de um clima de trabalho acolhedor.

Por fim, fui muito bem recebido tanto pela equipe da segurança, quando pela equipe de atendentes e profissionais. Consegui marcar uma visita com o acompanhamento de alguém da equipe para o próximo dia, à tarde. Poucas vezes vi, num CAPS, seguranças e atendentes que demonstram atenção à pessoa que entra no serviço; poucas vezes também vi seguranças e atendentes que de fato orientam as pessoas dentro do equipamento. Isso, para mim, é mais um detalhe que diz de um acolhimento integral oferecido pelo CAPS Itapeva.

Em minha segunda visita, já reconhecido quando cheguei, pude conhecer com mais detalhes o CAPS Itapeva, mesmo que, certamente, eu não o tenha conhecido em um centésimo de sua complexidade, como o é todo CAPS, como são todos os encontros entre as pessoas.

A equipe do CAPS é dividida em três sub-equipes, formadas por, praticamente, os profissionais necessários para uma equipe de CAPS II – um psiquiatra, um enfermeiro, quatro profissionais de nível superior e 3 de nível médio. Cada uma dessas equipes possui duas reuniões semanais: uma para discussão de Projetos Terapêuticos e processos de cuidado e outra para discussões mais conceituais na qual as três equipes se juntam. A menor parte da demanda do CAPS é encaminhada pela Atenção Básica; a maior parte é formada espontaneamente, ou seja, o CAPS Itapeva funciona também como porta de entrada, orientando o fluxo das pessoas na rede de saúde. Para isso, de segunda à quinta há dois profissionais “avulsos” para o atendimento primeiro de quem chega ao serviço. Parte das pessoas das três sub-equipes se envolve, além do cuidado diário oferecido pela instituição, com apoio matricial junto às equipes de saúde da família da região para a qual o CAPS é referência de serviço. Há, nesse equipamento, um Núcleo de Ensino e Pesquisa que mantém uma estreita relação com equipamentos de formação, como as universidades, não só servindo como campo de estágio como também compondo os seguintes cursos de formação: aperfeiçoamento em saúde mental para técnicos de enfermagem e gestores e mini-cursos em saúde mental, nos fins de semana, abertos à comunidade. Além disso, a própria equipe promove o edital, a seleção e a supervisão de oito vagas para aprimoramento profissional, cujas bolsas são pagas pela Função de Desenvolvimento Administrativa, a FUNDAP. A aproximação com a educação é representada pela biblioteca do serviço exposta nas duas fotos abaixo:

   

Elas mostram dois armários com livros ligados à saúde, clínica, psicologia, medicina, enfermagem e Saúde Coletiva. Dentre eles, encontram-se a obra completa de Freud, monografias gestadas no próprio serviço, teses sobre a política de saúde mental bem como outros referenciais da Saúde Coletiva
De forma geral, a equipe é composta por profissionais de formação na área da saúde, incluindo, como já de certa maneira difundido no Brasil, o educador físico. Um profissional do CAPS Itapeva que não é comum encontrar e que possui um potencial de composição muito interessante para a Atenção Psicossocial é o professor de teatro. A inserção de pessoas diretamente ligadas à arte é um meio potente de agenciar a interdisciplinaridade em serviço. A arte está presente de outras maneiras naquele local: há uma oficina de mosaico que promove, junto com outros elementos, ambiência. Vê-se pelas fotos:

   

As fotos mostram mosaicos feitos não somente para enfeitar o CAPS, mas também para identificá-lo: a primeira foto mostra um mosaico que se encontra logo na entrada ao equipamento, desburocratizando o formato de apresentação de uma instituição pública.

   

Essas duas outras fotos mostram um trabalho desenvolvido pela oficina de teatro que anuncia uma adaptação da peça “ESGANARELO, O cornudo imaginário”, de Molière. A outra foto mostra uma estante em cujas prateleiras se encontram produtos de diversas oficinas relacionadas à arte. O primeiro livro, na parte superior esquerda, chama-se BULA POÉTICA (que está disponível no acervo do ENCENA, na sala 518). É uma Antologia Poética do CAPS Itapeva gestada na oficina chamada TARJA PRETA que também produz os folhetins que se encontram na parte inferior da estante. O livro que se encontra na parte superior esquerda é o “Reabilitação psicossocial no Brasil”, de Ana Pitta, que esteve presente na abertura do CAPS Itapeva, em 1987. Os colares são feitos na Oficina dos Anjos que é de geração de renda. É assim chamada, pois iniciou com a produção de velas aromáticas para depois diversificar a produção para colares, bolsas, brincos e cintos que atualmente estão expostos à venda no Conjunto Nacional, no cruzamento da Rua Augusta com a Avenida Paulista. A exposição ocorre em frente à Livraria Cultura e divide o espaço com outras entidades artísticas de São Paulo. As fotos abaixo mostram com mais detalhes os produtos expostos bem como a feira como um todo.

   

   

Há ainda outras oficinas como a do “Toque Mágico – A arte de cuidar” que lida com cuidados estéticos com o corpo. Outro espaço que achei potente e importante para a questão da inclusão social é o chamado “CAPS LOKI”: uma sala com computadores ligados à internet na qual as pessoas que freqüentam o CAPS podem navegar ou aprender a navegar na rede virtual.

Um evento organizado por 5 CAPS de São Paulo promove interação por meio de vários jogos como futsal, pebolin, bola ao cesto dentre outros. Trata-se do FAD, o Festival de Atividades Desportivas e Culturais cujos organizadores foram contemplados, recentemente, na I Chamada para seleção de projetos de Fortalecimento do Protagonismo dos Usuários e Familiares da Rede de Atenção Psicossocial.

 

Referências:

BULA POÉTICA: Antologia Poética do CAPS – Itapeva.

ESCÓISSIA, Liliana e KASTRUP, Virgínia. O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade. In: Psicologia em Estudo, Maringá, v. 10, n. 2, p. 295-304, mai./ago. 2005.

PITTA, AM (org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo (SP): Hucitec; 1996.